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segunda-feira, 25 de julho de 2011

A vida a preto e branco

Algures num tempo passado quando eu era ainda uma activista convicta no Bookcrossing alguém se terá mostrado muito admirado por eu gostar de José Saramago e de António Lobo Antunes ao mesmo tempo. Este categorização da vida e esta necessidade de viver em alternativas, ou um ou outro, e a preto e branco foi algo que sempre me intrigou. E muito. Nenhum deles se exclui e não há nada num que me faça odiar o outro. Não entendo. Nestes últimos dias em que as notícias da fome no Corno de África, o terrorismo na Noruega e a morte de Amy Winehouse convergiram, esta dicotomia regressou em força, como se lamentar um excluísse um outro e houvesse quotas para a indignação e choque. E eu continuo sem entender.



sábado, 23 de julho de 2011

Feminino e intemporal

A voz inversamente proporcional à figura excessivamente magra, o cabelo armado com um penteado a que Nicolau Tolentino não ficaria indiferente, beehive, chamam-lhe, Karl Lagerfeld já o lhe teceu comentários elogiosos, considerando-a um ícone do estilo, o corpo esquálido enfiado num vestido que habitualmente lhe sobra, as pernas esguias e finas sobre sapatos de salto alto e a sensação de que os passos sobre os saltos são tão instáveis e periclitantes como o caminho que vai trilhando pela vida pessoal e profissional. E de Amy Winehouse já muito se disse, ou não nos brindasse a estrela que se teme subitamente cadente, com uma verdadeira novela em torno da sua vida pessoal, um enredo trágico prenhe de drogas e álcool, escândalos e amores sofridos, destemperos e hedonismos, conflitos familiares e problemas conjugais que se fundem e forjam as letras de que são feitas as suas canções, particularmente em Back to Black, o segundo trabalho que lhe valeu seis nomeações para os Grammys e que lhe fez arrecadar cinco. Recentemente a sua figura consta entre os notáveis do Museu de Cera mais famoso do mundo, o Madame Tussaud’s em Londres e em Maio último viu a letra de Love is a losing game ser objecto de análise nos exames de Cambridge. Muito, portanto, para uma mulher de apenas 24 anos.
Com cinco milhões de cópias, apenas do último CD, vendidas em todo o mundo e um sucesso retumbante e ascensão meteórica, a frágil e jovem diva espalha e desperdiça o talento e divide o mundo entre críticos e solidários, puritanos e admiradores, uma panóplia de adivinhadores da desgraça tal como acontece no site em que são feitas previsões sobre a morte da cantora e uma imensidão de vaticinadores do infortúnio. Amy é tudo menos consenso e se consenso se lhe aplica tem lugar num único ponto: o talento de que a belíssima voz é parte imprescindível.
Esqueçamos então a figura controversa, a imagem da mulher desalinhada e desesperada que exibe em palco a tragédia da sua própria vida, patética e decadente, e ouçamos apenas a voz portentosa. Esqueçamos também o seu percurso pessoal e ouçamos o que tem para nos dizer. Love is a losing game, por exemplo, é um hino às adversidades do amor, Back to black, o lamento da perda e do amor infeliz, Wake up alone, a solidão que se abate como o sol poente no quotidiano, Tears dry on their own, um tema perfeito para as mulheres que já experimentaram as lágrimas secar por si, muitas de nós, acredito. Há mais em Amy do que apenas Amy. Existe um sentimento muito feminino, intemporal e transversal de perda, solidão e rejeição. Quanto de nós não é Amy também?

Crónica escrita há uns anos e republicada hoje em jeito de homenagem a Amy Winehouse que nos deixou hoje. 

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Happy Birthday, Madiba!


If you talk to a man in a language he understands, that goes to his head. If you talk to him in his language, that goes to his heart.

Nelson Mandela

terça-feira, 12 de julho de 2011

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Cinquenta bordoadas na língua de Camões

Aqui. Sigam com atenção.

Risotto de coentros

Enquanto ajeito o molho de coentros trazido como contrapeso de um quilo de pêssegos e uma meloa sinto o aroma fresco do sul, uma contradição de dias quentes que me afagam sempre e me enchem a alma de alento para os dias sombrios. E o Norte a que cheira?
Rumo ao frigorífico e retiro sem enlevo a cebola congelada, a salvação de donas de casa atarefadas e contemporâneas pouco dedicadas a processos morosos de misturar sabores entre afazeres múltiplos, a casa que fica decididamente arrumada para dias que não vêm nunca. Derramo no tacho sobre a cebola um fio de azeite e meia folha de louro. Lá fora há um Verão por cumprir. Um vento frio que sopra no canavial e pela janela, pela mesma onde vejo passar barcos e navios, tarjas de cor diferente, ora prateadas em dias de Estio, ora cinzentas quando este emigra algures e outras um manto azul e intenso, há um chamamento para nele navegar, desconhece-se até onde. Volto ao fogão e mexo com calma a cebola lentamente em namoro com o azeite, um aroma leve que se liberta acompanhado de um frigir pequenino, um sussurro singelo. E o arroz então. Arbóreo de bagos voluptuosos.. E misturo. Meio copo bem medido. E mexo até ficar enlaçado na cebola e no azeite. Um copo de vinho branco frutado sem cerimónia nem o rigor de cozinhas espartanas. A minha cozinha é feita de momentos de libertação e transgressão, espelho inequívoco de quem sou. E envolvo até o vinho branco se sumir lentamente. O momento ideal para mais um copo de água bem quente, esse sim, deitado com carinho e calma enquanto os aromas se casam. O ritual repetido como o remanso dos Domingos de manhã. A tranquilidade de que faz parte abrir e fechar as portas às gatas, o ladrar sedento de festas do cão do vizinho, mesmo ali ao lado. E por fim o Verão. O cheiro inequívoco desse Sul que sou. O molho de coentros lavado em água corrente e abundante e cortado com a tesoura das ervas aromáticas para o tacho. E mexer. E rectificar.Mais coentros. Deixar que a generosidade cumpra o seu propósito de temperar, comida, almas, vidas. E sentir o aroma que se liberta, esse cheiro de gentes do Sul, de conquilhas comidas na esplanada com céu azul levemente em decadência do dia que adormece e as gaivotas que se fazem ouvir ao longe, de sopa de cação contra as searas de casas brancas bordejadas de azul forte. E o Norte a que cheira?

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Sensibilidade e bom senso ou a falta deles

Angélico Vieira, músico e actor celebrizado por uma série de televisão, morreu na passada terça-feira. Era jovem, bem parecido e amado por uma legião de fãs, compreensivelmente femininas e deixou um rasto de consternação. O curioso foi a panóplia de notícias que se foram sucedendo. O rapaz esteve em morte cerebral muitas vezes, respirou por seu próprio pulmão algumas outras, depois deixou de respirar frequentemente, afinal desligaram-lhe a máquina uma ou outra vez e acabou por morrer definitivamente. Umas vezes usava cinto de segurança, aquando do brutal acidente, outras nem por isso, outras ainda houve em que o acidente havia acontecido por falha técnica do carro em que seguia, ora um pneu que rebentou ora um eixo que se partiu, e segundo se apurou ultimamente afinal ia era em excesso de velocidade. Por último, e quando a morte cerebral foi decretada, levantou-se a questão de doação dos órgãos. Houve um jornal que anunciou que a mãe se havia oposto, quando à luz da lei portuguesa todos somos dadores até termos provado o contrário no Registo Nacional de Não-Dadores, outros que se ocuparam na descriminação dos órgãos. Ao que parece a doação foi mesmo feita e vidas salvadas mas havia necessidade deste título no Jornal de Notícias: “Moranguito cremado de chapéu mas sem coração, pulmão, rins, córnea e fígado."? Um bocadito de sensibilidade e bom senso não se arranja por esses lados?