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sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Amanhã

A voz da minha mãe estava embargada quando me ligou. Não estranhei. Hoje, quando fui comprar um último presente, dei por mim a chorar enquanto o trânsito passava e senti-me perdida entre a estrada e as lágrimas e os carros que rodavam indiferentes à água que me escorria inevitavelmente cara abaixo. Apenas os óculos de sol ajudaram a proteger-me da exposição. Tinha acabado de encontrar a mãe do R. e, de repente, pareceu-me que por mais que fugisse da morte, ela punha-se no meu caminho, à minha frente, como quem joga à apanhada. A mãe do R. confortou-me complacente atestando que este primeiro Natal é sempre o pior, recorrendo à sua trágica experiência de perder o R. com tanta vida pela frente e tão pouca atrás, mas sem nunca pronunciar o seu nome. Os olhos são velas em sintonia na cumplicidade e na dor. Tinha vinte e três anos, era jovem e sonhava com projectos imensos e belos na medida da sua idade guerreira. Atravessei a estrada, não sei ainda se consegui fintar a morte.
A minha querida mãe tinha recebido um telefonema especial de alguém muito especial e chorava não só pela tristeza da partida do meu pai mas pela comoção de esse alguém lhe ter vindo falar, consolar, ouvir e dar aquilo que sempre soubemos ter – a sua amizade – mas que com a divergência de caminhos e não de sentimentos acabou inevitavelmente por ficar mais ausente. O Z. é uma pessoa diferente, talentosa como muito poucos, inteligente e sensível, um homem de alma grande, peculiar na sua forma de ser e estar e a quem nunca tive a oportunidade de dizer isto antes. Amanhã fará anos que o Z. connosco esteve, com o meu pai também, claro, que gostava de o receber em nossa casa e oferecer-lha como se fosse sua e a quem sempre admirou pelos seus bonecos. Amanhã, enquanto consoarmos, estaremos todos juntos e à mesa seremos mais dos que os vemos.

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