Páginas

quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Espelhos

Os dias correm tranquilos mas os olhos da minha mãe dizem-me que a tristeza que manifesta é infinitamente menor do que a que verdadeiramente sente.

terça-feira, 29 de novembro de 2005

Matemo-la então...

É preciso saber por que se é triste
é preciso dizer esta tristeza
que nós calamos tantas vezes mas existe
tão inútil em nós tão portuguesa.

É preciso dizê-la é preciso despi-la
é preciso matá-la perguntando
porquê esta tristeza como e quando
e porquê tão submissa tão tranquila.

Esta tristeza que nos prende em sua teia
esta tristeza aranha esta negra tristeza
que não nos mata nem nos incendeia

antes em nós semeia esta vileza
e envenena ao nascer qualquer ideia.
É preciso matar esta tristeza.

Manuel Alegre

sábado, 26 de novembro de 2005

Loopings

Há seis anos, tal como hoje estava um frio de rachar e há seis anos a minha vida era outra. Há seis anos descansava a alma do cansaço da montanha-russa da vida. É sabido que as descidas são ainda piores que os loopings.... Há seis anos não queria compromissos nem laços, nem nada que me atrapalhasse nem coisa alguma que me prendesse nem homem algum que me aferrolhasse. Há seis anos tinha cá o meu pai e éramos juntos. Há seis anos o meu pai encontrou no H. um filho que acompanhou e acarinhou nestes seis anos.
Há seis anos feitos hoje conheci o H., num bar lá da terra numa noite gélida e chuvosa, e desde então, às turras ou aos jinhos e xis, somos felizes.

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

Das gravatas e da vida

E porque no Domingo vamos a um baptizado e porque o H. precisava de uma gravata, fui hoje comprá-la. E depois de ter visto umas quantas e de ter eleito entre essas tantas uma e depois da empregada a ter embrulhado cuidadosamente numa pequena caixa de cartão, lembrei-me, ao vê-la encerrada, que não havia mais quem lhe fizesse o nó e a sua existência pareceu-me patética, a da gravata sem o nó, tão patética como me parece por vezes a minha sem a do meu pai.

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

Alguém olhará por mim

No decorrer desta semana, recebi um mail cujo assunto era apenas Olá.. Fiquei feliz pelo remetente. Com a A. sinto existir uma cumplicidade inexplicável. Cruzámo-nos virtualmente inúmeras vezes e partilhámos momentos vários, alguns felizes, outros nem tanto, mas julgo termos sido companheiras nessas situações.
O primeiro mail que com ela troquei terá sido sobre um livro. Em sua opinião, o dito livro seria exagerado na existência de expressões exclamativas decoradas com o ponto que lhes dá o epíteto no final. O autor, contrariamente a Saramago, António Lobo Antunes e outros contemporâneos, abusara do ponto de exclamação. Talvez por isso falte agora aos mencionados. Eu mesma fui comparar o original e a tradução e verifiquei que tal se devia a um excesso do tradutor e não do pobre autor, completamente inocente neste caso. Respondi então à A. dando-lhe conta do descoberto e rematando com uns comentários incriminatórios aos tradutores. Nada de mais, não fosse a A. tradutora… Elegi-me de imediato a Rainha da Gaffe. Tivesse eu a mesma pontaria certeira noutras ocasiões e a vida ter-me-ia sorrido mais. Sei que a A. não levou a mal e esta é uma das características que mais lhe aprecio: a capacidade de trocar e aceitar opiniões sem que tal implique escolher armas para o duelo, a escolha de campo para a batalha.
No início da semana tinha então deixado aqui mesmo um texto. Li-o e reli-o. Pareceu-me bem. Mas não estava e, mesmo após esse cuidado, uma gralha pairava rapioqueira bem em frente ao meu nariz e ao de todos nós sem que eu disso desse conta. É sabido que se o meu querido pai tivesse revisto o texto, como sempre fez, a gralha seria um nado-morto, executada à nascença sem piedade. Tal não foi o caso. Com o meu pai desapareceu também o zelador das minhas faltas, o protector das minhas incorrecções, o guardião da minha escrita.
O erro por aqui andou sem que eu reparasse. O mesmo não aconteceu com a A. , que além de o detectar, teve a generosidade de me comunicar a falha, com todo o carinho e tacto. Fiquei sensibilizada. Quem amamos, não queremos ver errar.
Acredito que ela e o meu pai teriam conversas infindáveis em torno desta língua de Camões e de todos nós. Imagino-o de igual forma, abeirando-se dela tranquilo, formulando-lhe um pedido Olhe, é o seguinte, a minha filha publica os textitos dela lá na Internet e, como eu sei que ela tem muita estima por si, agradecia-lhe muito se lhe desse um recado meu. É que ela deixou escapar um errito… Veja lá que escreveu inclino em vez de inquilino. É que o São Pedro não me larga por causa do boletim celestial e ela agora está em aulas. Fazia-me esse favorzito? A A. ter-se-ia prontificado de imediato, estou certa, caso ela própria não me tivesse já protegido da minha falibilidade e da falta do meu querido pai. É bom saber que alguém olhará por mim.

terça-feira, 22 de novembro de 2005

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

And now for something completely different…

Estávamos à mesa pela hora do almoço, quando a minha mãe anunciou O Sr. A. comprou um peixinho para o lago. Naquela altura o Sr. A., nosso fiel jardineiro tinha dado em fazer criação de peixes num daqueles lagos que ocupam um lugar de destaque nos jardins. Isto foi antes das cegonhas, mas depois dos leões e da réplica do Manneken Piss, triunfalmente aspergindo os peixes, no alto do lago, bem no centro do jardim.
A minha mãe continuou dando novas do recém-chegado inquilino ...e chamou-lhe Meia-Leca. Era dia de Primavera precoce, lembro-me. Na rua os carros passavam e a refeição desenhava-se tranquila na página daquele dia ensolarado. Eu e o meu pai entreolhámo-nos e eu soltei vá lá, não lhe ter chamado outra coisa... O meu pai retribui-me um olhar cúmplice e malandro, muito característico, talvez reminiscência de alguma maroteira infantil.
Continuámos saboreando o almoço quando a minha mãe inquiriu Outra coisa o quê? Voltámos a olhar-nos e respondi Ó Mamã, meia... socorrendo-me de algumas expressões não verbais na tentativa de me fazer entender. E ela continuou não estou a perceber! Meia quê? Desta vez tentou o meu pai Ó filha, meia..., meia... e ela não se deixou ficar mas meia quê? Não sei o que é que vocês estão a dizer... então, mas que outro nome o homem havia de pôr ao peixe? O meu pai socorreu-se de olhares bem expressivos, das mãos, como que à espera da palavrinha seguinte, como se faz quando se tenta que alguém adivinhe a palavra depois de dadas as devidas dicas e achegas.
O almoço estava em suspenso. Agora era a minha vez Mamã, meia… meia coisa… A minha mãe não se deu por satisfeita e questionou meia-coisa?? franzindo a testa. Sim disse-lhe meia…, ó mamã, meia… Nada, rigorosamente nada conseguia encaminhar a minha mãe na direcção da palavra perdida. O meu reincidiu Luisinha, meia…, acompanhando a verbalização com alguns auxiliares que se queriam mais eloquentes do que a palavrita em falta. O meu pai e eu riamo-nos perdidamente e a minha mãe permanecia perplexa, curiosa, talvez pensando que mistério era aquele ou que nome seria esse que não se deixava pronunciar por nenhum de nós.
Começava a pressentir-se uma certa impaciência por aquela hora, da minha mãe, por não entender o nosso comportamento e minha e do meu pai por ela não entender por meias palavras o outro nome que o peixe do Sr. A não podia ter. Mais uma tentativa Mamã, meia, meia… e a mamã, zero, continuava longe da tão necessária palavra por desconhecer a expressão. O almoço ia já longo e depois de tantas estratégias utilizadas e das incontáveis tentativas infrutíferas, frustradas, falhadas, goradas, o meu pai rematou-lhe, impaciente e em desespero absoluto de causa MEIA-F**A!!!! Olhámo-nos e nada mais nos restava, senão rir, rir, rir a bandeiras despregadas, não só pela inocência e ingenuidade de minha mãe como pela explosão imprevisível do meu pai, visto que nunca antes lhe tinha ouvido sequer a mais inofensiva das palavras feias. Há palavras que fazem muita falta no vocabulário de uma mulher.

domingo, 20 de novembro de 2005

Subitamente

Hoje enquanto olhava para as embalagens de Natal penduradas num escaparate de uma grande superfície, deu-me uma vontade incontrolável de chorar. A música começou a tornar-se subitamente irritante e o bulício das pessoas à minha volta um verdadeiro suplício. O H. chegou-se a mim e disse esta música está a chegar-me aos nervos! Concordei e debandámos rapidamente para as indispensáveis compras domésticas, razão única da curta visita ao local em questão a um Domingo.
O povo passeava de carrinhos ainda não muito cheios, a música continuava tilintando e a cada esquina esbarrávamos com pirâmides de caixas de chocolates e bombons. Não se observava grande alegria nos rostos dos transeuntes, mas no ar pairava a ainda comedida histeria desta ocasião festiva, as luzes e as cores, as novidades e os brinquedos. E enquanto os pobres domingueiros continuavam no seu périplo consumista, tive vontade de lhes gritar Estão a rir-se de quê, seus parvos? Não sabem que o meu pai MORREU? Não vêem como isto me dói? Como me comprime o coração, seus imbecis domingueiros? Não perceberam que este ano não há Natal?
Deixei a mágoa escorrer-me rosto abaixo no caminho de casa e contraditoriamente regozijei-me por sentir que, para os imbecis no seu périplo dominical, este Natal será um mais, com todos às suas mesas.

Escrita

Repesquei também este texto de uns antigos. Data de quando, sem perceber muito bem como, comecei a escrever. Nessa mesma altura questionavam-me frequentemente a razão da escrita, talvez surpresos pela novidade. O meu querido pai também. Aqui fica:

Isto de escrever vem como um não-sei-quê que me possui. Não sei de onde vem, nem sei para onde me leva.
Vezes há em que tranquila me encontro, com a alma recostada na quietude do quotidiano e o corpo estendido na espreguiçadeira da vida, e repentinamente, como do nada, surgem palavras e ideias, e mais palavras e mais ideias, fundidas com impressões e sentimentos.
Palavras com cores e imagens, cheiros e sons, fragrâncias e sussurros. Palavras que se desenvolvem como se desenvolve a febre, quente e intensa. Surge então em mim uma vontade compulsiva e inevitável de me abeirar de qualquer sítio, usando um qualquer papel e lápis, e soltar a mente e o corpo, que quando solto a mente, liberta-se-me o corpo e sou finalmente livre nos campos em que se desenha minha escrita.
Um dia disseram-me: anda, conta-me, porque escreveste tu este texto? Ter-lhe-ei eu perguntado porque respira? Ter-lhe-ei eu perguntado, porque come, fala, se lhe apetece, e se cala quando lhe convém?
Porque escreves assim, minha filha, que me pareces agora tão plena? De onde vem esse sentir que pões nas palavras? Será de teu tio? Virá de meu pai? Não, não vem. Vem de mim mesmo, pensei, que não me achava parecida ainda que aparentada com os dois ilustres, e não entendia porquê esta minha verborreia inesgotável teria necessariamente de ser herança de qualquer dos dois. Nem do tio, que por via das obrigações e num acto de altruísmo questionável desposou, ainda que no papel, uma sopeira gorda e sebosa, mestre na arte de fazer arroz doce, nem de meu avô, devoto incondicional de minha achacada e desequilibrada avó. Alma sensível, sem dúvida, meu avô, mas para quem os netos se dividiam em dois: os outros e eu. Exactamente por esta ordem.
Escrevo porque escrevo e isso basta-me. Imagino um vaso romano a jorrar néctar translúcido e avermelhado e assim vejo a minha alma, transbordante de letras que formam palavras, que me brotam pelo corpo quando escrevo. O que há em mim? Não sei. Talvez um filho de letras feito, que concebo com amor a cada passo que dou. Isto de escrever, não sei de onde vem, nem sei para onde me leva.

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

A Love Story

Hoje o H. ligou-me e disse-me estás a ouvir? Do outro lado soava a voz inconfundível de Maria Bethânia num dos temas que mais me enchem a alma. Descobri-o, quando no Cool Jazz Fest deste ano, ela brindou o público com mais uma das suas bênçãos tendo o Convento como cenário e o Jardim do Cerco a seus pés. O H. não esteve comigo contudo. Nesse preciso momento liguei-lhe e disse-lhe contagiada pela baiana temos mesmo de ir a Salvador, paixão. No seu silêncio sei que concordou. Bethânia continuava evocando a bênção de dona Canô, o Joãozinho Beija-Flor, o Olodum e o Pelô . A partir desse instante esta música integra a banda sonora da nossa existência em comum. Foi talvez por isso, de resto, que hoje soou.
Conhecemo-nos por acaso, mais por acaso seria impossível. Estava frio e chuva. Era uma noite escura de Novembro, com o halo gótico a pairar sobre o Convento, o nevoeiro miudinho a entrar-nos nos ossos e o Natal a espreitar nas montras. Usava ao peito um crucifixo com um lápis-lazúli. Terá sido das raríssimas vezes que usei crucifixos em toda a minha vida. Claro que, como acontece muito frequentemente nas relações, não estávamos nem aí um para o outro. Através de um conhecido, a conversa encetou-se em torno de uma reportagem sobre astrologia com um astrólogo que pairava cá pela terra. Céptico, muito céptico, assim se mostrava aquele que, sem saber, que sem nenhum de nós sequer suspeitar, iria esperar-me no altar da Basílica uns escassos dois anos depois e receber-me do meu querido pai com o seu sorriso largo e todo o orgulho de papai coruja .
Nessa tal noite que modificaria a minha vida para sempre e que me mostrou verdadeiramente o que é ter alguém ao nosso lado e o verdadeiro significado de certas palavras, cuja sonoridade me era apenas familiar, o H. não articulava palavra. Mantinha-se aparentemente tranquilo, um pouco alheado junto ao balcão, bebendo um whisky, cogitando não se sabe o quê, sabe-se lá o quê… O mistério é das armas mais sedutoras e poderosas. E depois a conversa continuou, sem mistério algum, tendo ele advertido que não acreditava em nada disso. Signos para cá, signos para lá, e nem sei como, tentei adivinhar-lhe o signo. Será isto? Será aquilo? E depois rematei que perante aquela atitude só podia ser Gémeos… Bingo! Às vezes acho que tenho jeito para bruxa encartada. E foi a partir dali que não mais nos separámos. Timidamente sempre e claro sem que o outro soubesse procurávamos os locais e horas onde julgávamos encontrar o outro e num tórrido e belo dia de Setembro, incontáveis momentos felizes a dois depois, trocámos as oficiais juras de amor eterno.
Quando foi anunciado que Bethânia viria cá decidimos de imediato ir. Depois o meu pai adoeceu e depois o meu pai piorou e depois foi assim que o H., abdicando de tudo e sem sequer permitir que fosse de outra forma, não conseguiu ouvir a Bethânia ao vivo, explodindo o Reconvexo em todo o seu esplendor para que o meu pai não ficasse sozinho e a minha mãe pudesse ela ver e ouvir a grande Bethânia. Um simples obrigada é tão pouco... Pessoas assim são difíceis de encontrar.

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Há dias assim

Tudo começou logo pela manhã, quando, pela janela, vi alguém com quem precisava de acertar uns assuntos. Nada de pessoal, diga-se de passagem, considero apenas a contenda uma coincidência intrínseca do viver pasmacento neste rectângulo à beira-mar plantado. Ai andas aí… pensei. O pior mesmo foi quando na trajectória da porta de minha casa para o também meu carro, ele lá estava plantado. Ora vem mesmo a calhar pensei e estendendo-lhe a mão, que sou rapariga de cortesias mesmo nestes dias, arremessei-lhe as palavras que cá me andavam a ocupar tanto espaço, espaço esse, útil, quiçá para outras palavras menos agrestes e corrosivas. Se não libertarmos palavras como temos espaço para outras? Às vezes as palavras abandonam-me, outras sinto-me cheia delas, a abarrotar de frases e textos.
Aos bons dias e na esperança de que tudo se resolvesse a contento e que eu pudesse usufruir do meu terraço antes de bater a bota, era esse o busílis, retirei-me e rumei para o meu local de trabalho, umas palavras e frases mais aliviada, cantarolante até.
Uma vez chegada, troquei impressões, de raspão, sobre um projecto que desde ontem tinha em mente, projecto esse não muito bem recebido pelo que se viu. Ele é o timing, ele é a burocracia, ele é isto e mais aquilo. Percebi então como tão diplomaticamente se bate com a porta nas trombas das pessoas. Na verdade, ainda tinha por aqui umas palavritas soltas daquele tal lote e achei por bem soltá-las assertivamente. Que não, não concordava e ainda que tanto impedimento estava errado no contexto em questão, argumentando, argumentando sempre, consubstanciando, exemplificando e assim sentia as palavras deslizarem pela estrada da minha determinação e alguma calma a invadir-me, liberta que me sentia do enleio de sorrisos e palmadinhas nas costas.
Umas boas duas horas mais tarde, surgiu desta feita um pedido, juntando-se a minha resposta ao ramalhete dos dois desbocanços anteriores. Não, disse eu. E como pode ser libertador, catártico e terapêutico um não. Não. A outra embrulhou a manipulação na bolsa da hipocrisia e lá se foi. O não permite-nos a lealdade a nós próprios. Sinto-me leve agora.
Como não me arremesso na cama aos uivos pela ausência do meu pai, como não me afogo em lágrimas nem me entupo em anti-depressivos, como não me permito sequer mergulhar nas trevas do desalento ou no descaminho da mágoa tenho ultimamente dias como este. A saudade tem caminhos misteriosos.

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

terça-feira, 15 de novembro de 2005

Desta condição perene

Jedes Jahr sollte um einen Tag länger sein als das vorangegangene: ein neuer Tag, an dem noch nie etwas geschehen ist, ein Tag, an dem niemand starb*
Elias Canetti

*Todos os anos deviam ser um dia mais longo do que o anterior, um dia novo no qual algo inédito aconteceria, um dia em que ninguém morreria.

Enquanto Canetti viveu obcecado com a ideia da morte em virtude da perda prematura do pai quando ele era ainda criança, tal como é narrado no primeiro volume da sua autobiografia Die gerettete Zunge, Saramago começa o seu último romance exactamente nesse tal dia imaginado em que ninguém morreu, em que a morte decidiu renunciar ao seu poder e que Canetti esperaria ter sido o dia da morte do seu pai, tal como eu do meu.

sábado, 12 de novembro de 2005

Do baú

Este texto foi repescado entre outros escritos há uns dois anos. O final agrada-me particularmente agora...

Stress
Ele olhou-a de forma peculiar, sem ser recriminadora, com uma acentuada ironia no rosto ao que ela perguntou impelida pela expressão facial “Que foi, papá?” e ele respondeu “olha lá, onde é que aprendeste a escrever stress com um e no fim?” A filha não se ficava facilmente e retorquiu em sua defesa “Pois olha que no Doutoramento do João chamaram-lhe à atenção…“ E o pai, mais persistente que a filha, ripostou “Pois está bem, mas agora digam-me onde é que isso vem, onde foram buscar essa ideia…” Que lhe interessava que fossem professores, doutores ou mesmo professores doutores.
Os seus instrumentos de trabalho eram simples: um lápis ou uma lapiseira, por vezes uma lupa para decifrar caracteres ínfimos, e uma borracha atada a um objecto volumoso, para que não se perdesse, como já tinha acontecido a muitas. E por assim ser, sempre que viajava, a filha presenteava o pai com lápis e borrachas oriundos desses locais, que ostentavam, garbosas, as letras indiciadoras da sua origem. Ás vezes também imagens. O pai ficava sempre muito feliz e a filha também, pensando, exactamente como o pai muitas vezes afirmava em situações análogas “Como é fácil fazer a felicidade de alguém!”
Esta sua profissão tornou-se, de certo modo, uma forma de vida. Por conseguinte, mantinha-se permanentemente alerta. Corrigia inclusive, com o seu lapitos, os folhetos de supermercado ou os rótulos das garrafas. Vezes havia em que se ofereciam como passatempo, “Há aqui uma gralha, vê lá se a descobres…”. Só ele é que as descobria, pois desenvolvera tal perícia, aliada ao conhecimento sólido do qual era um detentor respeitado e aclamado, que apenas ele tinha capacidade para distinguir e identificar o certo do errado numa simples garrafa de azeite.
Quando se ocupava, por exemplo, de uma obra literária, aguçava-se-lhe a sensibilidade e, dando largas ao seu talento, fazia sugestões que extrapolavam a forma dos escritos. O autor ficava surpreendido e muito grato, acatando sempre aquelas alteraçõezitas, “Isto assim não está bem… Não acha, Sr. Fulano de Tal, que fica melhor assim?” Que mais poderia desejar o Sr. Fulano de Tal? Punha-lhe vírgulas, corrigia-lhe os erros e ainda lhe dava uns toques no estilo… A filha retorquia-lhe “Nem sei porque não apareces como co-autor…” O autor Sr. Fulano de Tal agradecia-lhe, agradecia-lhe muito e, quando lhe era oferecida a obra já publicada, podiam ler-se palavras reconhecidas, elogios rasgados, louvores sentidos e também muitas, mas muitas palmadinhas nas costas, que além de co-autor era um ser muito generoso, um benemérito genuíno. Detestava que se usassem galicismos, anglicismos, quaisquer estrangeirismos. Sim, onde é que já se viu chaise-longue? Que pretensiosismo! Vamos lá ser moderados! Assim quando alguém se aventurou a dizer que não-sei-o-quê ou não-sei-quem estava sedeado não-sei-onde, ele questionou humildemente “Olhe que tenho a impressão que essa palavra não existe…”
De dicionário na mão, iniciou-se, naquele momento, uma pesquisa intensa, na busca incessante da palavra. Em vão! Descobriu-se que o último grito dos dicionários, recentemente adquirido, à data do acontecimento, tinha uma falha grave. Faltavam-lhe cadernos inteiros, cadernos INTEIROS e, com eles, tinham-se sumido inúmeros vocábulos, todos os começados por s. Assim, sempre se poupou mais uma tertúlia conturbada e a filha comentou com os seus botões que pena era que, às vezes, não se sumissem mais partes do dicionário…
Tinha igual resistência a neologismos, sendo peremptório no seu juízo final: NÃO EXISTE NA LÍNGUA PORTUGUESA. A filha enfurecia-se “não existe COMO? Então que palavra usas para designar…?” E o pai sempre convicto e resiliente “Ó filha, pões em itálico! Queres ver?” Rodeava-se dos seus canhenhos e manuais da especialidade e, com o lapitos, apontava e lia a explicação. E a filha ripostava “por essa ordem de ideias, ainda falávamos português medieval”, concluindo irónica “Ai, Deus, e u é?”
O pior de tudo foi quando apareceu um Dicionário afamado. Dizia-se conter as últimas actualizações da língua portuguesa. Mas que actualizações? Sim, quais actualizações? Não se deu por vencido, muito pelo contrário, às vezes, dava-se por ele e estava enfurecido. DICIONÁRIO NÃO FAZ LEI, bradava e a última actualização da língua portuguesa tinha sido em 1945 e, para mais, o dicionário não foi homologado, e mais uma vez, lá vinham os seus manuais de consulta, onde constavam, preto no branco, os factos irrefutáveis.
E porque a vida mais não é que uma viagem, a filha imaginava que um dia, sem dia nem local, um dia além, ela e o pai, quando já não partilharem este dia e este tempo, voltarão a encontrar-se nesse dia além. Se puder, leva-lhe revistas, como faz todas as semanas “Papá, tens aqui para ler.” O pai voltará com uma revista na mão “Olha lá, quando partiste já tinham homologado o Dicionário da Academia?” ao que ela responderá “Não. Porquê?” e o pai, categórico como sempre, “Então stress é em itálico. Isto é que são burros! Que mania! E agora tenho que ir que o São Pedro pediu-me para fazer a revisão do boletim celestial e há lá umas alterações que ele tem que ver. Então não é que me quer escrever stress com um e no fim?”

sexta-feira, 11 de novembro de 2005

Da Ciência e outras inquietações

Quando o meu pai ao tomar conhecimento de que alguém sofria de cancro, ou outra doença conhecida como incurável, lamentava sempre, impressionado e consternado Coitado, está condenado.... O meu pai era do tempo em que quase todas as doenças do foro oncológico eram incuráveis. Julgo que essa preocupação esteve sempre presente na sua vida. Lá teria a sua razão porque ironicamente morreu de neoplasia do pulmão, condenado, portanto o meu querido pai. E como dói dizer isto…
Nesses momentos em que se solidarizava com o infortúnio alheio, eu tentava sempre iluminar o meu pai com a candeia da Ciência, dizendo-lhe Ah, papá, a Ciência evoluiu muito… hoje em dia há muitos casos de sucesso. Apontava-lhe alguns também para o tranquilizar. O meu pai tinha pavor da ideia de morte, dos rituais da morte, da morte em si. Nunca dei conta que tivesse medo de morrer, contudo.
A Ciência sempre teve um papel importante nas minhas crenças. Surge sempre como um recurso para corroborar pontos de vista frequentemente, estendendo-se esta atitude à minha prática lectiva. Foi isso que aconteceu, quando um deste dias no início da semana, a propósito da vida das baleias e de outros cetáceos afirmei que havia evidência que a Moby Dick seria uma sperm whale. Os alunos estranharam a palavra sperm e pediram-me que repetisse pensando estarem a ouvir mal. Esclareci que era científico, que era o nome científico daquele género de baleia Daí até aos documentários da National Geographic foi um tiro e dai até aos rituais iniciáticos e outros que envolvem a ablação do clítoris e a circuncisão outro. Os únicos três rapazes da turma, não familiarizados com a prática, tomaram como verdade que tal consistia na amputação do dito membro viril. Expliquei-lhes que não e isto, pois claro, com uma série de constrangimentos semânticos não vá algum paizinho aparecer e acusar-me de ser uma badalhoca desavergonhada. Rematei, no entanto, que era científico que os homens circuncidados tinham menos probabilidades de contrair o VIH. Como é tranquilizante o apoio da Ciência. A dor infligida pelo acto tinha pelo menos a contrapartida da alguma clemência da pandemia contemporânea.
Foi também na dita Ciência que me apoiei para atestar peremptoriamente o género dos meus gatinhos. Diz a Ciência que as tartarugas são sempre fêmeas e os amarelos, numa proporção imensa, machos. Ontem de manhã, enquanto arrumava os despojos do dia anterior na bancada da cozinha e ao ver passar, garboso, o meu gatinho amarelo, feito e parido cá em casa, atravessou-me o pensamento que os pequenotes atingiam já a idade púbere, seis meses no fim deste mês, e que, por conseguinte, o amigo Jobim devia ser já portador de duas observáveis protuberâncias viris. Tal não se observava e de repente vi-me a braços com uma questão importante: o Jobim não era um Jobim! Virei-o e revirei-o em busca das bolas perdidas. El@ não se mostrou incomodad@ mas eu cá por mim, senti-me mais uma vez traída pela Ciência.

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Luisinha

Tudo foi rápido. A doença do meu pai, a morte do meu pai e o arrumar das questões burocráticas daí decorrentes: papéis e papeladas, escritórios e repartições. A minha mãe é uma mulher forte, determinada e sensível como conheço poucas. Esteve permanentemente ao lado do meu pai, atendendo-lhe a todos os pedidos e necessidades.
Esqueceu-se sempre, durante esse período, que também ela existia além do universo algo apocalíptico que se anunciava e da atenção exclusiva que ele ininterruptamente lhe solicitava. Esqueceu-se que o cansaço se pode abater sobre nós e que o corpo cede. Esqueceu-se dela mas jamais do meu pai.
Nunca nada foi impedimento para que a minha mãe não se entregasse abnegadamente ao meu pai e não lhe dedicasse o seu carinho e ternura, não obstante as noites mal dormidas, o imenso desgaste psicológico, o cansaço físico dos últimos meses. Acredito que o meu pai terá partido feliz, exactamente por a ter tido a seu lado a vida quase inteira. Caso uma última palavra lhe tenha sido permitida terá sido indubitavelmente o nome de minha mãe ou se é verdade que quando morremos as vivências passadas deslizam em filme no projector da nossa vida, uma pessoa estaria SEMPRE presente nesses momentos: a minha mãe.

terça-feira, 8 de novembro de 2005

Certezas

Se viajar lhe for concedido, esta terá sido das primeiras escapadelas do meu pai...

Minha alma canta
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudade
Rio, teu mar, praias sem fim
Rio, você foi feito pra mim

Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar
Rio de sol, de céu, de mar
Dentro de mais um minuto estaremos no Galeão
Rio de Janeiro
Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar
Aperte o cinto, vamos chegar
Água brilhando, olha a pista chegando
E vamos nós
Aterrar


Tom Jobim, Samba do Avião

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

Cheiro a Ipanema

Hoje cheiro a Ipanema, dei por mim a pensar, enquanto os alunos escreviam o sumário e eu olhava para o campo de jogos pela janela da sala. Um casal de alunos muito jovens namorava sofregamente sobre as escadas e o mar revolto do Atlântico deixava-se avistar lá bem no fundinho.
Sei porque me achei a cheirar a Ipanema. Não porque Ipanema se situasse do outro lado, um pouco mais abaixo contudo, daquela fresta de mar que se mostrava tímida no horizonte. Usava hoje o perfume que usei pela primeira vez no Brasil, enquanto ajeitava as bagagens para me poder esgueirar para a janela do quarto do hotel onde me esperava o calçadão de Ipanema, o mar e o Morro Dois Irmãos do lado direito. A caminho da janela abri o saco do duty-free do aeroporto de Lisboa e borrifei-me com o novo aroma. Não sei porque o fiz. Dizer que foi para que a Cidade Maravilhosa me sentisse perfumada é um absoluto disparate. Sei apenas que o momento mágico de avistar Ipanema e sentir que estava finalmente no Rio de Janeiro ficou indelevelmente conotado com a fragrância que usei nesses dias e que hoje escolhi de entre os vários frasquinhos em cima da cómoda.
A cidade acordava, cariocas de todas idades faziam jogging a seu ritmo no calçadão, o Toni dos Cocos recebia um carregamento dos mesmos, as cangas começavam a espreguiçar-se na areia, dando as boas-vindas aos gringos estremunhados nas janelas de hotel. Devíamos preparar-nos para tanta beleza. Também ela, como a tristeza, tem o poder incontrolável de nos assomar a alma, deixando-nos prostrados, indefesos, impotentes. Nestes momentos, e são muitos, ecoa-me mentalmente vou-te contar os olhos já não podem ver, coisas que só o coração pode entender... e ouço o mar da praia de Ipanema a lamber o areal. Esperei toda a minha vida para me encontrar com o Rio de Janeiro. O meu pai não foi alheio a isso. A sua mãe era brasileira tal como a tia, que tinha morado em Copacabana até aos anos 90, embora fossem paulistanas.
O Brasil não é apenas um país distante para onde os portugueses se deslocam em hordas histéricas nos meses de Verão. O Brasil não é só o tráfego das favelas, a violência urbana no imenso país. O Brasil é um linguajar doce, é uma pletora de sabores, um punhado de sorrisos abertos, uma cor de canela, uma anca bamboleante, um abraço do Cristo Redentor, o Deixa a vida me levar do Zeca Pagodinho cantado por um taxista com todos os tons do crepúsculo carioca abraçado pelos morros e lagoas. O Brasil é um pedaço de mim, um sentimento que trago comigo todos os dias da minha vida tal como trago o meu querido pai.

domingo, 6 de novembro de 2005

Buços, bigodes e bigodaças

Sempre conheci o meu pai de bigode embora as fotografias atestem que nem sempre assim foi. Não tenho memória desse tempo e, mesmo quando dele me lembro, o meu pai está claramente ostentando a sua volumosa bigodaça no álbum das minhas memórias.
Quando a partir de certa altura os indefectíveis bigodudos começaram a abandonar as suas pilosidades aos cuidados devastadores dos barbeiros, senti que a alvorada de uma nova moda se estava aproximando. Agradeço a meu pai ter com ele aprendido que não devemos nunca sucumbir de imediato a uma moda, correndo o risco de não nos reconhecermos no espelho ou perante o outro e de nos tornarmos tão uniformizados e standardizados que mais não somos que aquilo que todos os outros são, sem o serem também, visto que na globalização se dilui irrecuperavelmente a essência do ser. Pois, enquanto os homens abandonavam o seu bigode, agora motivo de chacota e risada, muitas vezes o dito comparado com algum desdém aos machos magrebinos, o meu querido pai manteve fielmente o seu. Não me lembro sequer de o ter sentido alvitrar a hipótese de dele se desfazer. Acho bem. Devemos sempre fazer aquilo que nos faz sentir quem somos e não quem os outros querem que sejamos. Tal como o cabelo, o bigode era farfalhudo e teimoso. Tal como o cabelo fui eu que lho aparei das últimas vezes antes da partida. Espero que tenha agradado lá em cima. Acredito que a minha avó ter-lhe-á dito “Que lindo continua o teu cabelo, Fernandinho, mas esse bigode…” atirando-lhe um certo ar reprovador. O meu pai poder-lhe-á ter retorquido “Não gosta? Foi a sua neta que mo cortou…” Enquanto efabulamos os espaços em branco da ausência de quem amamos, aligeira-se-nos a saudade.
Certo dia, sendo eu púbere mas batendo violentamente às portas da adolescência e também por haver visto na minha mãe aquela prática, decidi que havia de tirar umas míseras pilosidades no lábio superior. Não que se notassem à distância. Acredito mais que aquele fosse um ritual iniciático na minha passagem para uma outra idade, uma afirmação peremptória do abandono da infância. Nesse mesmo tempo não havia tiras de cera fria nem tiras de coisa alguma que não fosse cera quente, bem quente, levada quase ao ponto de fervura num canequito de metal. Com uma toalha de rosto à minha frente para que eventuais pingos de cera não danificassem a roupa e na casa de banho, a minha mãe iniciou cuidadosamente a extirpação do buço. Estava calma, ainda que um pouco atabafada com os calores da cera. De repente, a minha mãe puxou de uma só vez, como mandam os requisitos, a primeira tira de cera. Gritei alto, bem alto, MUITO ALTO, iniciando uma corrida pelo corredor acompanhada de queixumes vários. O pior foi quando me neguei, entre choros e lamúrias, a que a segunda tira fosse removida. O meu pai andava lá por casa e mediante a gritaria apenas retorquiu em tom jocoso “Deixa lá, Luisinha, se depois ela ficar com uma bigodaça como a minha que não se venha queixar…” Lá diz o povo, contra factos não há argumentos e, portanto, perante a possibilidade de também eu ser portadora tamanha bigodaça, digna de atracção circense, deixei conformada que a minha mãe me removesse em definitivo o quase inexistente buço.

sábado, 5 de novembro de 2005

Passeios

Hoje, ao passear pela poesia, encontrei isto:

Canção para a minha filha Isabel adormecer quando tiver medo do escuro

Nem sombra nem luz
nem sopro de estrela
nem corpinhos nus
de anjos à janela

nem asas de pombos
nem algas no fundo
nem olhos redondos
espantados do mundo

nem vozes na ilha
nem chuva lá fora
dorme minha filha
que eu não me vou embora.


António Lobo Antunes in Letrinhas de Cantigas

Quero acreditar que também o meu pai não se foi embora...

quinta-feira, 3 de novembro de 2005

Lado B

Os livros têm a mais excelente qualidade de nos fazer sentir e crescer. Também foi o meu querido pai que me ensinou isso. No início do ano lectivo era ele quem me encapava os livros para que não ficassem danificados, era ele quem me fazia as etiquetas, munindo-se para tal de um aparelhómetro semelhante a uma régua com cavidades formando o abecedário, para identificar qual era qual e foi ele quem me ensinou a folheá-los, com todo o carinho e paciência, para não ferir o papel como ele dizia. Devia ser crime mal tratar os livros. Infelizmente não saem das minhas mãos incólumes, não como eu gostaria, pelo menos. Quando era criança ia para a cama dos meus pais e, antes de dormir, o meu pai lia-me histórias de BD originárias do Brasil, presente da tia dele e minha em segundo grau. Depois eu regressava à minha cama.
Foi também num livro vindo do Brasil, presenteado pelo A. de São Paulo, a quem agradeço a gentileza, que me deparei com esta frase e que, desde então, me tem acompanhado em situações diversas Os seres humanos, assim como os LPs, têm lados A e B *. Nada mais certo. Para quem é desse tempo dos LPs a metáfora não oferece dúvida alguma. Sendo o Lado A o lado dourado, o mais bonito e melodioso, aquele que dificilmente nos cansaríamos de ouvir, o Lado B limitava-se apenas a desempenhar um papel secundário, quase um bónus e, embora contendo aqui e ali boas canções, uma ou outra faixa interessante, não era no seu todo alvo do nosso desejo e da nossa satisfação.
Atrevo-me a dizer que não só as pessoas têm Lado A e B. As vidas também o têm. O Lado B da minha vida insiste em tocar no gira-discos do presente, esperando, no entanto, que o Lado A volte a soar um dia, num futuro talvez inexistente.

*in Ruy Castro, Chega de Saudade

quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Subidas e descidas

É impressionante o que pode acontecer no decurso de um momento tão fugaz como uma mera descida e subida de umas quaisquer escadas da vida. Quando o H. subiu as escadas do hospital e sem que tivéssemos dado conta disso, a nossa vida tinha-se alterado para sempre e a tua vida, meu pai, tinha partido para um outro lugar, agrada-me assim pensar. E depois, foi ligar à funerária, e depois foi ligar aos amigos entre soluços e palavras de aceitação da tua partida, e depois foi o aprontar dos pormenores, mórbidos aos olhos dos outros, o pensar e o dizer “O papá não ia gostar disto assim….” “O papá não ligava para essas coisas, já sabes…”, “Não, não queremos sino. Não, não queremos a urna aberta. Não, nada que seja muito brilhante. O papá ia detestar esses dourados” e depois veio o diácono e contrariou tudo o que o meu pai iria gostar sem que contra isso algo pudessemos fazer. Acredito que caso lhe tivesse sido permitido, o meu pai ter-nos-ia dito “Olha lá, não me arranjavam nada melhor? Era um reaccionário de alto coturno! A dizer às pessoas que tinham de ir à missa ao domingo... e que a culpa era da televisão. Eu só me admiro como há pessoas que ainda pensam assim. Santo Deus! E depois admiram-se das igrejas estarem vazias... ainda estive para lhe responder...” e depois foi ir para casa, depois foi arrumar os despojos de todos nós que ficaram espalhados pela sala, pelo quarto, e depois foi regar constantemente o bouquet da tua memória com as lágrimas da nossa saudade, da tua falta em mim e em nós e depois foi passar estes dois meses a tentar levar isto a que se chama vida para a frente e a tropeçar permanentemente nos socalcos da tua ausência.

Cacos

A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão. Vai a gente muito devagar da sala à cozinha, com aquela loiça toda de dias, de semanas, de meses em equilíbrio uns sobre os outros a tilintarem e a tremerem, mais dúzias de garfos e facas escorregando lá em cima, no meio dos restos de comida e dos restos de infância, de espinhas de peixe de pequenas mentiras e de folhas de alface de domingos felizes, e nisto, sabe-se lá porquê os anos entortam-se, uma saudade escorrega (…), os dias, as semanas, os meses deslizam uns a seguir aos outros, devagar primeiro, depressa depois, tudo junto por fim, e eis a vida em cacos no linóleo.

António Lobo Antunes in Segundo Livro de Crónicas