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domingo, 28 de novembro de 2010

De mais

A falta de paciência que me tem assaltado tem-me dado para intolerâncias várias, uma delas surgiu quando a empregada da secretaria, que conheço desde criança, é verdade, deu para me tratar pelo primeiro nome à frente dos alunos. Sem alunos à volta não tenho qualquer problema, sou até capaz de levar a mal se me tratar por outro nome, mas tendo em conta que esta nova geração não consegue destrinçar uma série de pressupostos aceites tacitamente em tempos passados, não gostei e não gosto. E reclamei.
Outra das minhas malapatas recentes prende-se com a onda de reformas antecipadas lá na escola azul cueca. Como terá acontecido antes noutras escolas que não a azul cueca, este ano tem assistido a um corropio de libertadores papéis a dar entrada na secretaria. Já avisei contudo que não tenciono reformar-me antes da altura devida, a menos que a minha vida melhore, e muito, e ainda dê em dondoca. Pedi inclusivamente que quando sair de casa ainda mais descabelada, quando começar a usar soquetes com crocs e adentre o portão da escola a chamar carneiros aos meus colegas que me avisem para tomar medidas de contenção de verborreia e disparate. Isto para o caso de ser acometida de um mal terrível de quarenta e três anos de escola no bucho como prevejo, o que convenhamos são muitos anos de escola, muitas horas de aulas, muitas reuniões. Muito de tudo em suma. Mas estes seres em estado de reforma iminente, felizmente para eles, estão sãozinhos que nem um pêro, não usam crocs e soquetes, e apenas decidiram que era chegada a sua altura depois de cálculos e mais cálculos, contas e mais contas. Legítimo. Chega uma altura em que a escola se nos sobra e suga numa espiral de destruição de toda a sanidade mental. O que me tem encanitado, e como tem encanitado, é que entre as contas e as datas, me atirem A tua mãe é que se reformou em boa altura. Ora, meus amigos, primeiro, metei-vos na vossa vidinha, segundo, a minha mãe tinha sessenta e seis anos de idade e mais de quarenta de serviço. Muitos anos de escola, muitas horas de aulas, muitas reuniões, muito de tudo. Se aquela não fosse boa altura não sei quando seria. Mais é de mais.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A malapata

Foi ontem. Com dinheiro fresco na carteira e a decisão de não deixar compras para última da hora, resolvi embarcar calmamente nas primeiras compras de Natal. O dia estava cinzento e triste, com poucos transeuntes e as lojas anunciando, pela falta de novidades, a crise e a recessão de que tanto se fala e melhor se sente.
Entro na loja e abeiro-me das inúmeras lembranças natalícias. Nem uma alma além de mim e da empregada. Decido-me sem grande esforço por uma insignificância que, mesmo sendo insignificância, não deixa de ser uma lembrança e meritória de um embrulho decente sem exuberâncias e falsas esperanças da simplicidade do conteúdo. Admito que já fui rapariga mais paciente mas, aos quarenta e cinco anos, surgiu uma espécie de intolerância vetusta, um frenesim miúdo e uma dificuldade em levar desaforo para casa. Não é preciso mudar para o outro passeio se me avistarem na rua, continuo sensivelmente a mesma pessoa, embora algo, a acompanhar a decadência do corpo, me tenha invadido. Terá sido quiçá por isso que, depois de empregada me apresentar um embrulho todo mal amanhado com o presente verdadeiramente solto lá dentro abanicando desajeitadamente para cá e para lá e o papel amarfanhado pela absoluta falta de jeito, que reclamei. A rapariga não achou muita piada, mesmo que as palavras não tenham sido agressivas e retomou a tarefa hercúlea, pasme-se, de embrulhar o presente. E foi aqui que tocou o sinal de alarme. Imaginem a cor, a cor do papel. Em vez de um natalício cheio de renas e pais-natal, arruma-me com um azul cueca. Há quem lhe chame karma, sina ou destino. Cá por mim, tenho uma malapata com o azul cueca. Valham-me os deuses.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Es weihnachtet

Não gosto de chuva. Não gosto de tempo cinzento. Não gosto de vento. Não gosto de frio. Odeio Inverno. Contudo, quando pela primeira vez fui ao mercado de Natal em Munique, no ano seguinte ao de Budapeste, depois ao de Praga e no ano a seguir ao de Viena, a minha vida mudou e passei a saber apreciar a vida estranha de uma encasacada entre iluminações, tendas de artesanato, anjos e coroas de flores secas aromatizadas com laranja, canela e cravinho e uma caneca de Glühwein, escaldante e perfumado, titubeantemente aconchegada entre as mãos gélidas, enganosamente cobertas de luvas invernosas. E não há sol nem calor. Há uma magia oculta, quem sabe reminiscências de Natais passados e felizes, no calcorrear de ruelas estreitas que sossobram às barraquinhas coloridas e decoradas com cuidado, a nuvem de ar espesso e branco que se eleva das verbalizações quase monossilábicas dos vendedores, conversa apenas no indispensável para que ocorram pequenas trocas comerciais, o dinheiro contado na palma da mão enluvada, rostos brilhantes encafuados em gorros pungentes e o pescoço envolto no carinho aconchegante de um cachecol volumoso, um obrigado e um adeus. A luz estridente que se propaga no contraste das noites precoces e assustadoramente negras de um Dezembro final, aromas que se desprendem das mais diversas iguarias, o restolhar mansinho dos passos vagarosos e da roupa volumosa dos transeuntes e o bater de perna mercado acima e abaixo sempre acompanhado da constatação tão óbvia do frio omnipresente. Estranhos prazeres para uma alma estival. Doce contradição. 

 Praga
fotografia minha

Obviamente

domingo, 21 de novembro de 2010

Pedir por boca

A vida de professor implica muitas coisas. Implica dar colinho aos alunos, tentar dar aulas aos alunos, aprender com eles e ensiná-los de volta. Implica também manifestações de carinho que nos deixam um sorriso pateta no rosto e o coração transbordante de alegria. Mas ser professor, exactamente como as outras profissões, implica uma fatia generosa do tempo a aturar energúmenos que podem vir das mais diversas direcções. Podem ser alunos também, podem ser pais, podem ser funcionários e podem ser os meus pares, cruzes credo, tem um par assim até me arrepia a mais recôndita das pilosidades.
Foi isto numa segunda-feira, depois da manhã cheia de aulas, reuniões à tarde. Sentada de esguelha para fugir da luz cumpria obedientemente as instruções do Sr. Dr. Ministério da Educação e frequentava uma acção de formação. Estava naturalmente com pouca paciência para disparates com tantas horas de escola no bucho e aquilo que desejava ardentemente, tal como os meus alunos, era ver-me dali para fora e que não me importunassem mais com a ferramenta última que erradicará para todo o sempre a geração mais antiga de professores, aquela que não se ter conseguido adaptar a tamanha modernice acabará por extinguir-se naturalmente. Chegarão algures, por enquanto existe apenas uma caixa espetada no meio da parede, mas quando eles chegarem, far-se-á uma reinauguração e os ditos desfilarão ufanos sob o pálio da estupefacção da escola azul cueca. Abram alas, senhoras e senhores, para os Quadros Interactivos Multimédia, QIM, para os amigos.
E foi logo no início de três horas encafuados numa sala mínima recozendo odores e humores que o chefe máximo das formações se abeirou com a sua costumeira arrogância, um ser que deve trazer consigo um pedestal oculto no qual se encavalita quando se quer dirigir aos reles professores que dão aulas, que, como se sabe estes doutos seres não dão aulas, estão sentadinhos em gabinetes com os rabinhos almofadados na acalmia de mandar nos outros. Ora, o povo é rapaz que precisa de muita coisa e tendo em conta o número de cabeças pensantes no espaço exíguo, precisávamos de mais extensões, é que os computadores ainda não funcionam a energia solar e o professor é um rapaz pobre que não se pode dar a devaneios tecnológicos. Na verbalização desta necessidade o douto ser arrumou-nos com um educadíssimo Para a próxima tragam de casa. Já não me bastava o cabo VGA, agora tenho de levar de casa uma extensão e quem diz uma extensão, diz outras coisas, por que não? É só pedir por boca que o povo é ordeiro e temente. Não há paciência e amanhã é segunda-feira e depois é terça e depois quarta.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

segunda-feira, 1 de novembro de 2010