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quinta-feira, 31 de maio de 2007

Entre o crepúsculo e a alvorada

Diz Wolfgang Becker que Good Bye Lenin! não é um filme sobre a Ostalgie - mais uma das palavras difíceis de traduzir e em que nenhuma outra língua me soa tão bem como em alemão - a nostalgia dos tempos da Ex-RDA e que surge do casamento entre as palavras Ost e Nostalgie.
Sobre o que é então Good Bye Lenin!? Sobre o amor, o desmoronar de um sistema, uma cidade em mudança, sobre o fim do comunismo, sobre o assalto impiedoso do capitalismo? Certamente sobre tudo isto. Good bye Lenin! é também um filme sobre a mudança que se opera na esfera pública e privada e sobre a mudança que se repercutiu na Europa e no mundo desde 1989.
Da sinopse sabe-se que a Christiane Kerner, mãe de Alex, entra em coma depois de ter sofrido um ataque cardíaco quando se preparava para participar no 40º aniversário da RDA. Oito meses depois regressa da ausência a que a obrigou o estado de vacuidade temporário. Durante esses oito meses, a RDA deixou de existir, um golpe duro para quem vestia com convicção a camisola do seu país. Alex, filho extremoso, tenta a todo o custo manter viva a RDA dentro dos 79m² a que estava confinada a mãe, com o intuito de lhe prolongar a vida e evitar o desgosto, demasiado penoso para o seu coração debilitado, de ver o seu país adquirir todas as cores da paleta capitalista com cadeias de fast food a crescer como cogumelos, a água suja do capitalismo a correr como um rio e as marcas ocidentais repentinamente omnipresentes em Berlim, provavelmente a mais emblemática cidade do século XX.
Os episódios oscilam entre a comicidade e a tragédia da angústia de um filho para salvar a sua mãe, pervertendo e invertendo o fluxo da mudança nos simbólicos 79m² do seu apartamento de Berlim – tanto haveria a dizer sobre Édipo entretanto – e mesmo Wolfgang Becker refutando que este não é um filme sobre a Ostalgie, a verdade é que todos os objectos característicos da RDA e que se transformariam em culto e negócio anos após a sua dissolução estão presentes: os pepinos de conserva do Spreewald, o café Mocca Fix, o Sandmännchen, os Trabant, por exemplo.
Salientar o desempenho de apenas um actor seria injusto. No filme tudo parece perfeito e cada uma das personagens, desempenhando não só o seu papel mas também contendo a carga simbólica intimamente ligada ao tempo histórico, deambula com excelência num percurso volátil e volúvel na senda do seu lugar num mundo tão excitante quanto incerto ao som da música de Yann Tiersen, enquanto Lenine sobrevoa o céu de Berlim para desaparecer no crepúsculo que se anuncia na cidade, na vida de Christiane e na própria RDA.

Reputação arruinada

O episódio remonta já ao ano lectivo anterior. Depois de em conjunto ter visto com os meus alunos Supersize Me a propósito dos hábitos alimentares e no âmbito do programa, foi-lhes solicitado, entre várias outras coisas, que seleccionassem uma cena que tivessem gostado e outra que não tivessem gostado e, claro, a devida justificação para promover o debate. A selecção não foi muito variada, quase todos referiram como a pior cena aquela em que Morgan Spurlock regurgita o menu Big Mac, depois de uma sucessão de MacSons pouco edificantes, acredito que o próprio Morgan saberia disso, se não ter-nos-ia poupado à visualização do regurgitanço propriamente dito. Duas alunas em situações diferentes elegeram uma outra cena. Não estavam propriamente pacificadas com o que ouviram e viram e afirmaram convictamente que a cena que menos tinham gostado tinha sido aquela em que Alex, a namorada de Morgan Spurlock, refere que na sequência da MacDieta o seu desempenho sexual tinha sofrido um decréscimo qualitativo. Coitado do rapaz, afirmou uma, dizer uma coisa daquelas em frente de toda a gente… e por mais que se tentasse esclarecer que o objectivo de Alex seria mais o de alertar para os efeitos secundários de uma dieta desequilibrada e perigosa do que desvelar a sua vida sexual com o coitadito do Morgan, àquela hora completamente desprovido do seu orgulho viril, nada as fez demover. Remataram Ela não tinha nada que contar aquilo, coitado! Há coisas que não se devem dizer, muito menos em frente de toda a gente.

imagem daqui

Do Mês do Cinema aqui

quarta-feira, 30 de maio de 2007

O meu é maior que o teu

Foi isto ontem pelo fim da tarde. O padrão começa a repetir-se: todos os incidentes que têm o condão de me dar vontade de responder torto acontecem pelo fim da tarde, certamente não será alheio o facto de estar já cansada, saturada e de sentir que precisaria de força de Adamastor para me sobrepor aos picos enérgicos dos meus alunos, que, regra geral, não observam minguamento ao final da tarde com os da sua professora. E pronto, no sítio do costume, cada uma dava conta do que tinha ainda a fazer. Mencionei em ar de queixume o trabalho para a oficina de formação que frequento. A resposta foi lesta com um laivo de acusação no ar Ai se tivesses filhos não conseguias fazer isso. Ora aí está um dos argumentos que agradecia que não me esfregassem na cara e isto porque eu não esfrego na cara de ninguém que tem filhos, não porque os tenha ou porque eu não os tenha, mas porque respeito inteiramente as opções de vida de cada um. Vá que eu tinha o oveiro seco – como gosto desta expressão, querida Zélia Gattai- ou as miudezas encarquilhadas e não conseguia ocupar como diz o povo, vá que eu era fraquinha dos nervos e me largava em prantos sobre as torradas, os queijos frescos, os chás e os pãezinhos, vá que eu tinha um desgosto de morte por não ter desovado? Quando se queixam que não fazem isto, aquilo ou aqueloutro porque são mães, não vejo como não respeitar a situação de cada um. Cada um é como é, tem o que tem, ponto final. A sorte é sermos todas mulheres se não andaríamos de fita métrica em punho a medir qual era maior que qual.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Assim sem ti

Os olhos pregados no tecto da igreja na esperança que engolissem as lágrimas que eles próprios ousaram em mostrar. E a noiva, como todas as noivas, titubeante de braço dado com o pai e eu, não comovida com a entrada da noiva, não sensibilizada com o momento solene, não encandeada com o halo dos dois recortado a contra-luz na porta da igreja, eu apenas, apenas eu, com a saudade infinita do meu pai a meu lado, dos momentos todos com ele a meu lado e da magia de os dois lado a lado pela passadeira da vida rumo a um outro caminho. Eu assim, sozinha com o meu umbigo, eu com saudade de nós, com pena de mim sem ele e eu a odiar-me por pensar em mim, apenas em mim, só em mim, e chorar pela ausência, enquanto a noiva seguia em frente com o seu pai a seu lado num momento tão pleno como o meu terá sido.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Perfumes

- Seu filho está doido – disse ela, de noite na varanda, sem saber que eu estava escutando.
- Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.
- Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro óptimo.

João Ubaldo Ribeiro, Um Brasileiro em Berlim, Editora Nova Fronteira.

É normal, claro que é normal. Apanho-me sozinha, numa livraria ou em casa e o cheirinho dos livros é como perfume para a alma. Pelo cheiro se identificam: se são novos, ou mais vetustos, se acabaram de sair da gráfica ou estão encafuados num local recôndito, se foram à praia assim cheirarão também, se estiveram ao sol assim libertarão o odor das páginas secas. Os livros não são apenas letras, os livros são também cheiros e nos cheiros reside a memória de quem somos.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

cansaço de amar

- Tens muito que fazer?
- Não. Tenho muito que amar.
(Não entendo ser professor de outra maneira. E não me venham dizer que isto assim cansa e mata; morrer-se sempre se morre: e à minha maneira tem-se a consolação de não ser em vão que se morre de cansaço)

Sebastião da Gama, Diário.

terça-feira, 22 de maio de 2007

Parabéns, Mamã!

Hoje a mãe mais aventureira, risonha, faladora, companheira, amiga, leal, generosa, viajante, intrépida, incansável, prestável, linda do mundo faz anos: a minha, claro!
Parabéns mamã!

foto: minha

segunda-feira, 21 de maio de 2007

ser SER

seja ruído
seja beijo
seja voo
seja andorinha
seja lago
seja pacatez de árvore
seja aterrizagem de borboleta
seja mármore de elefante
seja alma de gaivota
seja luz num olhar
seja cardume de tardes
e grite: JÁ SOU


Ondjaki, Há prendisajens com o xão

sábado, 19 de maio de 2007

Abraçar o Palácio


Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido.

José Saramago, Memorial do Convento


O Palácio Nacional de Mafra está ser abraçado por um cordão humano.
Aqui fica o meu xi-coração.


Notícia aqui

sexta-feira, 18 de maio de 2007

No Disc

Malvado! Mentiroso! Aldrabão! Vá lá, anda! De há uns meses a esta parte a conversa repete-se e isto porque o bicho em questão mente com todas as letras possíveis e mesmo depois de lhe enfiar um CD, uma, duas, três, quatro, cinco vezes, continua pantomineiro a atirar-me à cara NO DISC. Pois se há coisa que me exaspera, irrita, assanha, eriça, enfurece e embravece é mentirem-me na cara. Depois de engolidos um, dois, três, quatro, cinco CDs diferentes, ele continua a dizer-me NO DISC e mais uma tentativa NO DISC, outra NO DISC. Mudo de CD, quem sabe está farto do mesmo? Agora, por exemplo, deu em passar Orishas e assim se tem mantido. Ao que parece, o CD preferido dele é Emigrante, não o censuro, também é o meu, mas, por exemplo o El Kilo também não é mau, mas esse nem vê-lo, é esse e o Mi Sueño de Ibrahim Ferrer, isto já para não falar do Universo em meu Redor da Marisa Monte. Não sei se a idade dos leitores de CDs se mede como a dos gatos, se assim fosse este rondaria as seis décadas de vida. Vetusto, é um facto, mas desistir de viver agora? Passei uma parte significativa da minha vida com ele a meu lado, embalou-me, fez-me rir e chorar e agora vai-se? O meu leitor de CDs é mais ou menos como os companheiros de vida: recusam-se a fazer o que queremos, eventualmente uma inverdade aqui ou acolá, mas o coração é um rapaz em quem não se pode confiar e continuamos a chamar-lhes meu xuxuzinho, meu bichinho, morzinho, para quem é de amor, amor da minha vida, para os menos exuberantes, e outros epítetos tão açucarados que provocariam coma a qualquer um. Assim é o meu leitor de CDs: pantomineiro, maniento, só toca o que quer, quando quer e como quer, às vezes solta umas mentiras, faz-se de surdo e de doente Ai que se me doem os botões mas eu continuo a gostar dele e, tal como aos maridos ou quejandos, essa é a única razão pela qual não o mando borda fora Xô, bicho do inferno! Quem sabe não encontraria alguma que lhe compreendesse as manhas.
foto: minha

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Monárquicos e Republicanos

E na sequência desta decisão que temos entre mãos, e depois de consultar sites, ter ido às agências de viagens e ter voltado carregada com mais uma quantidade de folhetos para casa, a conversa pela hora de almoço estacionou lá para o lado das Caraíbas. Preços, locais, Havana outra vez e talvez um Cayo, Coco ou Largo, Varadero nem sequer foi uma questão. Eu gostava de voltar a Havana, disse o meu companheiro de viagens e de vida, eu também e de repente logo o plano traçado, íamos ao Floridita, claro, acrescentei, será que ainda lá está aquele homem dos olhos claros? E isto porque em Cuba, há olhos que nos agarram como ímanes, masculinos ou femininos, e dos quais apenas por vergonha ou pudor conseguimos desviar o olhar, são olhos que nos sugam no contraste com a tez morena e a que resistimos nem sabe bem porquê. Perder-se-iam horas talvez contemplando o olhar, sem mais. E o périplo continuou, certamente iríamos à Bodeguita del Médio, mesmo reconhecendo que o melhor mojito que bebemos foi num restaurante em frente ao hotel Las Bullerias. Ainda atarantados pelas longas horas de voo, saímos já tarde, onze e meia talvez, e no ímpeto de me mergulhar na fragrância da hortelã mesclada com o perfume do rum, Havana Club, pois claro, e para apaziguar o calor intenso e húmido que se fazia sentir, tomámos o nosso primeiro mojito a dois. O coração é traiçoeiro, é sabido, ficou-me por apurar se a companhia o teria feito tão sublime ou se naquele local se faziam os melhores mojitos da cidade. E de repente, íamos já a passear no Malecón a esta hora da conversa, quando voltámos atrás e regressámos à Plaza de las Armas. Mas já fomos a Cuba, acrescentei, se fosse outro sítio? Desfiei o rosário das viagens, mais uma vez, com os respectivos preços. Olha, a República Dominicana é que não está caro… Mas também quem é que quer ir para a República? Os monárquicos certamente que não, concluiu a minha mãe peremptória perante a evidência, o que me levantou um dilema com o qual luto arduamente. Tendo em conta que a República Dominicana será o último dos últimos dos ultiminhos destinos de férias, eventualmente nem sequer uma opção a considerar, serei monárquica?

Feriado, feriado...

era assim:

Foto: Trancoso, Brasil

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Feriado à quinta

Feriado à quinta-feira é bom. Estava tudo a suspirar, bufar e maldizendo a vida na quinta-feira ao último tempo da tarde. Sabe deus, alá e jah como é árduo ter aulas até às 18.30: os alunos estão saturados, os professores pelos cabelos, o cansaço do dia acumula-se nos ossos, na alma, no corpo e, quando se tem aulas desde o primeiro tempo da manhã, não se espera que estejamos as mais frescas criaturas. Assim é, nada a fazer. Na sala de professores, o ar estava abafado também da acumulação de odores e humores de um dia inteiro de trabalho e penúltimo da semana. Os humores revelam-se mais perigosos nos dias que correm e, caso o chi não consiga fluir por aquele espaço, temo pela vida futura de alguns de nós.
A conversa estava tranquila até ter chegado uma colega Dois blocos de Português seguidos é muito! Ah pois é. Acrescentei E dois de Inglês? E De Alemão? As colegas de Informática completaram E três de TIC? A recém-chegada colega não se deu por achada Mas eu já cá ando há muito tempo… Pois, fazer o quê? Sim, já cá ando há 32 anos… ah pois, pensei, e ela continuou a dar-lhe E sempre a dar aulas!!!! Aí foi-se-me a paciência e questionei-a Mas o que é querias ter feito? No meu horizonte não vislumbro outra coisa que os professores possam fazer, certamente terá sido o fascínio da sala de aula e de partilha de saberes que nos terá levado a escolher a profissão Ah, respondeu empertigada olha, podia ter feito outra coisa, há pessoas que não deram aulas. Lamento a minha falta de compreensão, mas na verdade professor dá aulas, se quisesse fazer outra coisa tinha abraçado outra carreira. Ela continuou mas há gente que fez outras coisas e não deu aulas… Estava presente uma colega que esteve anos largos no Conselho Executivo e por quem tenho a maior estima. Acrescentou a propósito Olha, como eu… que estive lá em cima sentada sem fazer nenhum e agora tenho mais pontos que toda a gente, concordei, exactamente, estão lá para cima sentadinhos e agora é só pontos e claro que a conclusão desta conversa só podia ser uma larga risada. A outra debandou, a conversa retomou o seu ritmo tranquilo e bem disposto. A paciência começa a faltar-me para gente que se acha mais sacrificada do que os outros, que trabalha mais do que os outros, que se acha mais do que toda a gente e imputa culpas a outrem de coisas de que ninguém tem culpa. Por isso é muito bom ter feriado à quinta.

sábado, 12 de maio de 2007

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Proteias escarlate, margaridas bordeaux, rosas vermelhas

Exactamente à hora de ponta. Flores, gente, despojos de arranjos, velas e candelabros, mulheres que corriam de um lado para o outro, o irmão que refilava com a irmã, mãe com a filha e os empregados e as flores num vai-vem estonteante. Percebi que de todas as horas aquela seria a menos certa, a mais incómoda. A rapariga desculpou-se. Passou a encomenda para uma senhora tranquila de meia-idade com pronúncia saloia cerrada. Rosas vermelhas? Sim. Margaridas bordeaux? Sim. E proteias também. E recolhidas a um cantinho da loja, pouco a pouco, o arranjo tomou forma. E depois a senhora perguntou como ficaria melhor, acrescentando que era para o cemitério e eu a recorrer aos óculos de sol para esconder os olhos marejados de lágrimas. A falta do meu pai. A ausência. As flores para o meu pai. O nome do meu pai inequívoco no granito negro. A rapariga acrescentou que arranjava as flores pensando nas pessoas em vida, nas flores que e como as pessoas gostariam, as flores deviam homenagear a vida. Concordei, mesmo sabendo que pedir flores para o meu pai como eu acho que ele gostaria e para celebrar a sua vida, o dia em que nasceu, não o que partiu é tão pouco, uma panaceia tola, um engano débil e tonto para esta saudade sentada em mim, lentamente em silêncio, sem acabar dia algum.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Miúdos barbados

O Jonas é um marmanjo de dezanove anos, tem barba e senta-se na primeira carteira da fila do meio. É um conversador nato, intrépido e incansável, tem sempre histórias e aventuras, o skate e a música, os Festivais de Verão e a Quinta-feira da Espiga, e mesmo se advertido e quando admoestado faz um ar contristado manifestando o seu evidente desagrado por ter sido chamado à atenção. Regra geral, olha-me com ar escandalizado, pergunta que é que eu fiz agora, stora? Abre os braços e encolhe os ombros ao mesmo ritmo e depois arruma-se na carteira. Jamais se resigna. Desde quando falar com o colega do lado direito, do lado esquerdo e de trás é motivo para admoestação? Exigentes, estes professores. Separei-o do colega do lado certo dia, e, assim que me virei, o Jonas já estava acompanhado de outro marmanjo de dezanove anos também que me sorria como um miúdo que acaba de fazer uma traquinice. Tudo muito certo, não estivesse numa turma de décimo primeiro ano e os dois não fossem os mais velhos logo a seguir a mim. Mais uma admoestadela, mais uma chamadela de atenção, o colega continua com sorriso malandro, vai de volta para o lugar de onde veio e o Jonas arranja maneira de encetar conversa com mais alguém à frente, ao lado, atrás.
Um destes dias, quando a minha paciência estava rarefeita e o Jonas tinha o telemóvel bem visível em cima da secretária, tirei-lho sem mais avisos e coloquei-o sobre a minha secretária. O Jonas abriu os braços num acto de desespero, mais uma vez vítima da injustiça da professora de Inglês. Pediu explicações mas porquê, stora? mesmo sabendo que não é permitido o uso do telemóvel nas aulas. Lá papagueei umas consideraçõezitas acerca do que é ou não apropriado na sala de aula e a aula propriamente dita começou, não sem ser interrompida pela pedinchice e súplica ladainhenta Ó stora, vá lá… stora, por favor, stora... A stora a tudo disse não, ou não fosse regra básica da educação. Lá mais para o fim da aula e quando estava tudo relativamente concentrado o Jonas interveio mais uma vez. Desta feita tinha olhinhos doces, o tom de voz açucarado e algo arrastado. Lancei-lhe o olhar impaciente Chega, acabou, NÃO! Dera-se por vencido aparentemente Não stora, não é isso… Sim, o que foi então? retorqui Stora? Sim, sou eu! Sim?! Suplicou reincidente fazendo uso das mais variadas técnicas de manipulação Stora, veja só se recebi alguma mensagem, por favor, stora… ainda perguntei se queria que respondesse também mas isso ele já achou confiança a mais. Onde é que já se viu professora mais abusada?

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Panaceias


Isto começa lá para meados de Janeiro
quando o frio se torna insistente.
Primeiro são as fotografias do Verão anterior.
Depois vem a música.
A seguir, bebe-se uma caipirinha.
E assim se vai vivendo de panaceias
para acalmar as vontades.

terça-feira, 1 de maio de 2007

Conversas além

Oh, senhor Joc, por aqui? Perguntou o meu pai. Chega a hora de todos, como sabe respondeu o senhor Joc lacónico. É verdade, mas também lhe digo, senhor Joc, viver assim não era viver atirou-lhe o meu pai, resignado com a sua nova vida Sofrer não vale a pena. O senhor Joc concordou, não estava muito palavroso, ainda atordoado pela viagem. O meu pai, por seu lado, tinha já tido o seu tempo de adaptação e agora corria levezinho pela eternidade. Pensou consigo O Joc hoje não está para conversas… mas estava curioso e quis saber mais E diga-me, como estão as coisas lá por baixo? O senhor Joc encolheu os ombros, terá pensado Mas logo quem eu havia de encontrar… e balbuciou algo acerca das dificuldades da vida terrena. O meu pai continuou Então, e diga-me, senhor Joc, a empresa? Têm enviado as boas festas à minha mulher? Continuam a levar-lhe um bolito rei pelo Natal? O senhor Joc ruborizou um pouco, na eternidade não há mentiras, portanto, entre dizer a verdade, afirmando que a empresa a que o meu pai deu a vida e foi explorado até ao tutano, o que certamente terá acelerado a sua doença, não mais quis saber da minha mãe e engendrar-lhe uma desculpa, preferiu a omissão e emitiu uns sons imperceptíveis. O meu pai pensou Joc, Joc, estás-me a mentir, Joc e insistiu Têm-lhe levado o bolito rei? É que o senhor sabe, não é pelo bolo-rei, ela nem é muito apreciadora, é mais pela atitude, compreende… O senhor Joc desculpou-se com a crise e o deficit. O meu pai murmurou Palavra de honra, não têm vergonha… não me diga que não têm uns tostões para isso? Nem um telefonema, um cartão de boas festas? O senhor Joc empalideceu. O meu pai disse-lhe Já quando eu lá estava, tinha chamado atenção por causa do Vaz, o homem reformou-se e nem uma palavra… mas também o que seria de esperar? O senhor Joc neste ponto estava já sem palavras e carecido de desculpas plausíveis para a indelicadeza. O meu pai insistiu com as notícias da vida terrena E ouvi dizer por aí que o Sócrates não é engenheiro afinal e que andou a mentir… Pois, pois, parece-me que sim. O senhor Joc pensou Mas o homem que nunca mais se cala… e resolveu questioná-lo também Então e o senhor, como se tem dado por aqui? O meu pai respondeu lesto Olhe cá vou... O São Pedro não me larga com o Boletim Celestial, faço-lhe a revisão, sabe? É erro que ferve e muito bem escreve ele para quem foi pescador, coitado, sem instrução. Claro que a convivência com o JC também o ajudou mas desde que o João Paulo II chegou cá cima, nem lhe digo nada… o boletim vai de mal a pior! Olhe, até parece o pasquim lá da terra… É tudo contra o aborto e o uso do preservativo… Quando eu vim já estávamos no século XXI, caramba, depois admiram-se das igrejas estarem vazias. Santo Deus! Ele e a irmã Lúcia andam sempre a cochichar. Foi um alívio para a mulher, coitada, ao menos aqui sempre pode falar. Às vezes para desanuviar, vou ali dar uma palavrinha ao Cunhal, e lá está ele sempre com a União Soviética. A URSS isto e a URSS aquilo... Anda para aí à procura do Lenine mas ele foi com o Che Guevara para o Primeiro de Maio lá para as portas do Inferno. O senhor Joc pensou Mas o homem não pára de falar?!
O meu pai despediu-se do senhor Joc, delicadezas e salamaleques adequados à estirpe do recém-chegado e que sempre pautaram as relações de ambos. Na eternidade há liberdade e, na liberdade do meu pai, o senhor Joc não estaria certamente incluído. Bastaram-lhe as palmadinhas nas costas em tempo de vida. Agora que procurasse outro. Não há mal que sempre dure.

Do primeiro de Maio

Nem tudo era mau na União Soviética. Se alguém viesse hoje ter comigo e me oferecesse trocar os vinte e cinco anos na Moscovo socialista por cinquenta anos nas praias do Havai, eu recusaria. No socialismo, eu conheci a utopia como a única realidade possível, que se transformou perante os nossos olhos numa farsa teatral. Inicialmente parecia muito realista, muito viva, mas cada vez mais a luz falhava, os actores esqueciam o texto, a música repetia-se e, de repente, a casa inteira desmoronou-se, estávamos num palco construído por uns malucos quaisquer sobre uma região pantanosa. Uma experiência assim permanece durante muito tempo. Passaram já uns bons 16 anos, a minha saudade da utopia aumentou, contudo. Procuro a utopia e escrevo afincadamente sobre ela. E, por favor, sobre o que é que eu teria para escrever no Havai? Uma análise do protector solar?

Vosso
Kaminer


Wladimir Kaminer nasceu em 1967 na União Soviética. Vive em Berlim desde 1990 e tem uma vasta obra publicada sobre as suas vivências na União Soviética e as suas impressões da vida em Berlim. O humor e o poder de observação são duas peças fundamentais na sua obra.