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terça-feira, 31 de março de 2009

segunda-feira, 30 de março de 2009

Crónica em gestação

Apurem o ouvido. Mais. Só mais um bocadinho. Com um bocadinho de esforço conseguem. Um restolhar mansinho de letras que se encarreiram. Não façam barulho. Não façam barulho agora. Ouçam só. Parece que vem de mansinho, ao longe. Conseguem ouvi-la? Eu também não.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Snowshoee

Hoje não é dia em que entenda desígnios divinos, palavras do senhor ou desculpas de chamamento divinos, hoje não é dia em que sinta apaziguada com a vida ou reconciliada com a morte. Hoje deixo apenas um beijo para a Tânia que não teve a sorte de ser transplantada a tempo e que, depois de dois anos de espera e sofrimento, partiu. Não me falem hoje de desígnios divinos que na morte há apenas morte e a certeza da ausência.

Terapia alternativa

Harold's Planet

terça-feira, 24 de março de 2009

Cronicando à terça


No depois, a escrita tornou-se a certeza de que será lida por olhos vários, tão díspares como as almas, tão dissemelhantes como os humores e sensibilidades e tão ricos porque oferecem em caleidoscópio a multiplicação de todas as matizes de que se compõem as perspectivas sobre o mundo, dentro e fora do texto, além e aquém da crónica. No depois, excluí os estados de alma excessivos e barrocos - que interessa aos outros se estou bem ou nem por isso? – e anulei as cornijas de lamentos e floreados.


O resto está no PNETMulher que comemora um ano de existência.

imagem: Picasso, Girl before a mirror.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Para que conste

É que se há coisa que me irrita, além de começar um texto por se há coisa que, é mexerem-me nas coisas, remexerem papéis e outras tralhas sem o meu prévio consentimento. É que não posso, é mais forte do que eu até porque sou incapaz de pôr dedo em pertences alheios de qualquer género. Assim sendo, fiquei irritada que hoje me tivessem ido aos papéis e resolvi blogá-lo porque, como se vê, este é um assunto de cabal importância, não vão vocês, meus caros leitores, vir remexer nas gavetas e estantes do blogue.

domingo, 22 de março de 2009

Momento sitemeter (19)

A quem procurou receitas de leitura informo que, desta vez, bateu à porta certa. O meu eu profissional que não diz tantos disparates e é um rapaz atilado escreveu treze receitas de leitura, estando outra em preparação. Estão todas aqui. Espero que o receituário possa ajudar na escolha do livro certo.

sábado, 21 de março de 2009

Poesia

AS MÃOS

se os dedos forem as asas da mão
se a expressão dos dedos
inexplicar o gesto da mão
se o gesto for obra esculpida
sob o suor salgado
dos dedos
e esses dedos
forem asas de outra mão
eu posso ficar preso
num poema
de curto esvoaçar
mas a mão
os dedos e os gestos
hão-de sempre
saber
voar.

Ondjaki

quinta-feira, 19 de março de 2009

Os intróitos da morte

Para afastar a morte há que prepará-la com antecedência. Quando o tempo se mostrou de feição para a sementeira, o meu pai foi avisado com a habitual insistência pelo jardineiro. O jardineiro tinha vontade férrea, assumia o jardim como seu e de mais ninguém, eu o meu pai excluídos, e plantava o que muito bem entendia em vez do que os meus pais muito bem entendiam.
Assim sendo, eram comuns desentendimentos que o jardineiro resolvia através da minha mãe, gestora eficiente da conflitualidade dos morangos e das batatas e, muito importante, do HeraGate. O HeraGate instaurou-se no dia em que, alegadamente, a hera que cobria a parede da garagem teve uma síncope nocturna e caiu redonda no chão. Ora a hera não cai sozinha e o jardineiro não gostava da hera, exactamente ao contrário do meu pai, logo a dúvida instalou-se quando olhámos pela primeira vez a nudez despudorada da parede da garagem e a hera se manteve estendida, fazendo-se despercebida, indisponível para mais interrogatórios e conversas.
Teria sido no dealbar da Primavera e acedendo aos pedidos do jardineiro, uns pés de morango e umas alfaces, que o meu pai o meteu no carro, o jardineiro só jardinava, não conduzia, e rumaram ambos à feira semanal numa localidade perto. Pela hora do almoço o meu pai apareceu lívido e meio consternado. O jardineiro, por seu turno, foi avistado fazendo a ronda às estrelícias e aos amores-perfeitos, impávido e sereno, como era seu hábito, impassível perante o mundo à sua volta mas perscrutando a mais ínfima flor. Só podia ser coisa do jardineiro.
Vinham pois a caminho de casa quando o jardineiro pediu ao meu pai que parasse à porta do cemitério. Contava-se que era homem previdente, que teria já acautelado a indumentária para quando o barqueiro o viesse buscar e que reservada no guarda-fatos estaria a farpela para o adeus final. Ora o jardineiro era rapaz que não se deixava ficar e já que ali estava, que entrasse, pois claro, portanto o meu pai que tinha pavor da morte e de cemitérios e de todos os rituais em torno da senhora da foice, foi convidado a entrar no campo santo, tendo-lhe sido feita uma visita guiada à assoalhada do jardineiro, assim a baptizou o meu pai, logo que recuperou o humor daquela visita insólita à campa que o jardineiro tinha comprado para ele próprio. A verdade é que tanta preparação lhe granjeou noventa e três anos de vida, sobrevivendo ao meu pai. Para afastar a morte há que prepará-la com antecedência.

Nacos de prosa (8)

Estava a premir a tecla F 11, quando um homenzinho magro, de fato escuro completo e chapéu fora de moda emergiu atrás do teclado e começou a fazer esforços para se içar para o tampo superior, onde se agigantam monitor e impressora. Levantava os braços, numa gesticulação que me pareceu desesperada e dava grandes saltos, em cima da consola. Calçava sapatos ferrados que tiravam do plástico sons fortes lembrando bicadas repetidas de catatua.
Não foi esta a primeira vez que me vi assediado por personagens. Acontecia-me, não raro, quando ia passear para o Jardim Constantino, depois do jantar, em certos plenilúnios. Saíam-me ao caminho por detrás das árvores e quase sempre eram mais altas e encorpadas do que eu.


Mário de Carvalho, Contos Vagabundos

quarta-feira, 18 de março de 2009

A mulher e a badocha

A badocha, antes de ser a badocha, estava à minha frente, suando as estopinhas e arremessando-se com afinco nas máquinas redentoras que nos irão resgatar o corpinho perdido nas mãos de Cronos. Antes de ser a badocha era apenas mais uma de nós. De rosto redondo e olhos risonhos, escondia por baixo da t-shirt dois refegos volumosos, duas regueifas que lhe abraçavam o abdómen, duas bóias salva-vidas. Tinha encontrado a badocha uns dias atrás, airosa com as suas regueifas, feliz da vida porque a balança tinha sido amiga, e, não obstante as regueifas, tinha perdido uns gramas. Nessa altura ainda não era a badocha.
Na altura em que a badocha ainda não era a badocha cabriolávamos nas plataformas, entrecortadas com movimentos vigorosos nas máquinas e trocávamos palavras inofensivas, assim os pulos nos dessem descanso e o fôlego permitisse. Assim sendo, e tendo em conta o mês de Março adiantado e o Estio que se pôs sem aviso, a conversa caiu no tema preferido por uma parte substancial da população feminina que se dá ao luxo e sacrifício de embarcar em trabalhos vários em nome de uma vida saudável e, acima de tudo, sejamos honestos, uns centímetros a menos em torno de tudo o que se tem, excepto na inteligência que para o efeito do presente escrito pode ser medida também em centímetros.
E a conversa lá saltou. Terei dito na sequência do queixume colectivo dos centímetros a mais que a continuar como estou - vide fotografia do perfil – não podia vestir os meus biquínis, meus assim mesmo no plural, porque mulher que se preze não compraria menos de três -e estou a ser modesta- naquele dia de Verão em que o biquineiro nos visitou no hotel em Pipa e largou ali mesmo centenas de biquínis, ó meu deus, tantos, mas tantos e tão giros e tão baratos. A futura badocha respingou do alto das suas regueifas Poder, pode, o pior é a figura que faz... Foi aqui que as regueifas pareciam ter levedado e que a mulher sorridente a braços com as gordurinhas indesejadas se metamorfoseou em badocha, não sem antes levar uma resposta Há pior, embora sem a continuação que ecoava na minha cabeça Há pior, ó badocha.

terça-feira, 17 de março de 2009

Cronicando


Saí tranquila, secretamente pecadora pelas castanhas para os rojões opíparos e a garrafa de vinho tinto chileno, uma recente descoberta das incursões em busca do néctar de Baco. Saio triunfante com os pecados no saco e a convicção de que este tipo de acções, especialmente porque têm em vista a comercialização de um produto e não estando isentas de segundas intenções, têm em mim o efeito oposto e são tão inócuas e vãs como qualquer charlatão que me queira impingir uma mezinha contra o bucho virado, mal que me atormenta quando vejo a titular da pasta da educação balbuciante perante as questões que lhe colocam ou choramingona clamando que não a deixam falar no Parlamento.

Ide ao PnetMulher espreitar o resto do palavreado.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Em dia de Primavera

Em dia de Primavera não há mal que me aflija, penso, enquanto vejo as réstias do sol crepuscular entre os prédios a iluminar como um foco a casa, outrora um ponto fulcral da avenida, onde se fazia o melhor pão com chouriço e com torresmos que algum dia comi. Procuro a chave entre tralhas várias e dirijo-me ao carro, transpirada e cansada dos saltos e pulos a que os tempos modernos obrigam, a fuga para a frente contra o colesterol e obesidade. E o crepúsculo a chegar, o dia arrumado finalmente. Respiro fundo. O aroma indefectível da Primavera, a aromaterapia sem academias nem salões, a fragrância que se solta, será das nespereiras?, mais genuína que massagens de chocolate e outras modernices paridas em conformidade com a artificialidade de uma contemporaneidade balofa. Abro as janelas do carro e inspiro o perfume do dia que adormece. A brisa que me perpassa o cabelo, o bálsamo da tranquilidade que se instala. Rumo ao pôr-do-sol iminente que ilumina uma tarja de mar acobreado bem longe. E depois o caminho de sempre. A Igreja do lado direito, o muro do mesmo lado uns metros abaixo e o aperto de sempre, afinal tão longe e ainda tão perto, o dia em que te deixei aí, meu pai. Mas em dia de Primavera não há mal que me aflija, reitero, a panaceia ocultando a ausência.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Under pressure

Página 161


Pede-me a Luísa que cite a sexta frase da página 161 do livro que me acompanha de forma mais insistente na mesa-de-cabeceira. Reza assim:

Mama realized Jaromil was offering her a great opportunity.


Milan Kundera, Life is Elsewhere.

ilustração: Helga Sermat

terça-feira, 10 de março de 2009

Momento sitemeter (18)

E anda uma pessoa relativamente tranquila a beber todos os raios de sol oferecidos com parcimónia, enleada no aroma primaveril que a brinda ao sair de casa pela manhã, para ser surpreendida com a pergunta Como casar com um milionário? Não queriam saber mais nada, não?

Terça-feira


O passado é um país distante ao qual regresso raramente, mas ao qual retornei na procura incessante dessa matriz, desse tempo que já não há, obsoleto e distante, tangível apenas através do exercício de recuperação dos momentos, as peças dum puzzle cuidadosamente unidas, assim coopere a memória.

sábado, 7 de março de 2009

Verdades e mentiras (2)

1. Queria ser jornalista em adolescente mas o meu pai demoveu-me com o argumento da falta de segurança na profissão. Ainda hoje me arrependo de não ter ido em frente e de não ter sido mais obstinada.
Verdade. Ainda hoje, ou hoje mais do que nunca, arrependo-me. Pena que aos quarenta e três anos esteja acabada para o mercado de trabalho.

2. Desde criança que sonhava com o casamento, grinaldas e vestidos de noiva.
Mentira, a mais pura das mentiras. Sempre achei que seria incapaz de o fazer e quando surgiu o filme "A Noiva em fuga" identifiquei-me totalmente.

3. Ofereceram-me uma escola e propuseram-me um casamento milionário que recusei por razões de coração.
Verdade e mais não digo. Divulgar isto já é muito.

4. Já ganhei viagens em passatempos.
Verdade. Ganhei três viagens em três passatempos.

5. Acalentei a ideia de escrever um livro no passado.
Verdade. Desisti da ideia quando comecei a ver tanta fancaria nos escaparates das livrarias e a pensar que ter sido recusada pelas editoras talvez fosse sinónimo de qualidade. Modéstia à parte.

6. Durante algum tempo fiz aconselhamento de casais na Igreja Católica mas decidi sair por razões várias.
Mentira. E das grandes. Tenho uma relação difícil com a Igreja Católica, cada mais de incompatibilidade.

7. Vivi um romance tórrido com um professor meu.
Mentira. Além de outros constrangimentos, eram todos, quase todos feios. O único irresistível era gay.

8. Aprendi a nadar na Figueira da Foz e sempre lidei com mares bravos e frios.
Verdade. O meu avô chegou a ir ver a netinha a nadar. Das boas recordações que guardo.

9. Estava na 4ª classe quando fui pressionada para fazer a primeira comunhão por uma beata que ia à minha escola espreitar quem eram os ímpios.
Verdade. O raio da beata.

Verdades e mentiras (1)

Primeiro a pedido da Luísa, depois da Sinapse, aqui estão seis verdades e três mentiras. Resta descobrir quais são o quê.

1. Queria ser jornalista em adolescente mas o meu pai demoveu-me com o argumento da falta de segurança na profissão. Ainda hoje me arrependo de não ter ido em frente e de não ter sido mais obstinada.

2. Desde criança que sonhava com o casamento, grinaldas e vestidos de noiva.

3. Ofereceram-me uma escola e propuseram-me um casamento milionário que recusei por razões de coração.

4. Já ganhei viagens em passatempos.

5. Acalentei a ideia de escrever um livro no passado.

6. Durante algum tempo fiz aconselhamento de casais na Igreja Católica mas decidi sair por razões várias.

7. Vivi um romance tórrido com um professor meu.

8. Aprendi a nadar na Figueira da Foz e sempre lidei com mares bravos e frios.

9. Estava na 4ª classe quando fui pressionada para fazer a primeira comunhão por uma beata que ia à minha escola espreitar quem eram os ímpios.

sexta-feira, 6 de março de 2009

A espera

Estou aqui sossegada, rodeada de livros, frente ao ecrã pálido como a manhã, a Ruiva que dorme o sono dos justos enrolada na cadeira, o rádio ligado, e a espera, as horas que vão decorrendo, a demora, a delonga. Espreito pela janela e vejo os vizinhos peripatéticos nos terraços da nossa preocupação. E espero-o. Olho para o relógio verificando a delonga, o tempo que passa lento, a extensão da invernia que teima em se impor no mês da Primavera. É tarde. A Ruiva acorda finalmente e a Lolita aparece vinda não se sabe de onde. Inquieto-me Nunca mais vem, penso. Faço um chá bem quente, a compensação do Inverno que não passa, o rádio toca indiferente. O aroma que se solta. E ele não vem. Espreito pela janela. Os vizinhos continuam o seu passeio, verificando as juntas e o cerâmico, aventando hipóteses de naturezas várias. Demorará muito? Dou mais uma volta, sitiada pelo tempo cinzento, a chuva miudinha que espreita a espaços. A Guidinha salta-me para o colo, ajeito-me para que caiba melhor, enrolada contra a intempérie. Ainda vai demorar? A campainha toca. É ele.