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terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

Chega uma altura

E chega uma altura em que se começa a conviver com a morte como se fosse uma amizade antiga: alguém que está para aí, numa cadeira qualquer, sem incomodar a gente, amável, quase simpática, a olhar-nos por cima dos óculos com uma revista nos joelhos. Chega uma altura em que a morte é uma pessoa de família, uma parente não muito próxima que se convida quando há um lugar a mais na mesa: vemo-la, na ponta da toalha, modesta, apagada, a comer connosco, a sorrir quando nos rimos, a concordar de leve, a ir-se embora antes dos outros
— Não se incomodem, não se incomodem
e ao chegarmos ao elevador não a encontramos já, tentamos lembrar-nos do seu nome e esquecemo-lo
- Trago-o na ponta da língua
procuramos no álbum e é aquela pessoa na última fila dos retratos de grupo, meio apagada pelo tempo ou com demasiada sombra na cara, percebe-se um bocadinho de blusa, o penteado composto, quase nada. Chega uma altura em que a morte principia a conviver com a gente, se torna diária, íntima, existe no espelho da barba, nos nossos gestos, no modo de meter a chave à porta, entrar em casa, acender a luz, o sofá e os móveis de repente ali e a morte ao nosso lado, caladinha, usando o nosso corpo, a nossa tosse, a nossa voz, a pesar-nos por dentro


António Lobo Antunes, Terceiro Livro de Crónicas

1 comentário:

  1. :)
    É o teu sogro e o meu pai. Nunca lha falhava nada, pena é que eu não lhe tenha herdado isso também.

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