Páginas

quarta-feira, 5 de abril de 2006

Atrasadeco

Nos degraus da padaria

Em minha casa, sempre suscitei grandes dúvidas sobre a minha sanidade mental. Meus familiares me chamavam de «atrasado». Melhor (ou será pior?): «atrasadeco». E sem dúvida, mais grave: chamavam-me assim com a maior ternura. E eu até gostava desse tratamento, a palavra me atingia como uma carícia. Meus irmãos eram convocados a cumprir tarefas caseiras. Eu estava dispensado: «Não lhe peçam para fazer nada que ele estraga, perde, parte». Passei a encontrar nessa inabilidade uma vantagem: eu estava dispensado dos serviços infantis obrigatórios. Vago para perder tempo que era o meu único modo de ter tempo. Certa vez, em desespero de causa, mandaram-me comprar pão. Duas horas depois - e como eu não regressasse - enviaram uma delegação em meu encalço. Encontraram-me sentado no degrau da padaria. Que fazes aqui? - O pão acabou, respondi eu. Estava à espera da nova fornada. Que só estaria pronta dentro de umas horas.
Aquilo para a minha família era a confirmação, o teste decisivo. Como se pode estar horas, parado num degrau de uma padaria? Contudo, para mim, a espera não me afligia, a rua era um desfile infindável de histórias. Passavam as pessoas, cada um com seu tom de existência e eu criava uma razão para cada sombra triste, uma narrativa para cada sorriso encoberto. Eu estava apurando esse que é ainda hoje a minha predilecção maior: degustar o mundo como um lugar inacabado, cheio de personagens a quem podemos emprestar um enredo.

Mia Couto in “Jornal de Letras”, 15-28/03/06

Se o Mia Couto era considerado atrasadeco como é que algum dia poderão acreditar em mim?

2 comentários:

  1. Como é que algum dia poderão acreditar em nós? Risos. Ele devia ser simplesmente o máximo, em criança...acabei lembrando um pouco de muitas histórias que meu pai contava da sua infância.
    Bjs.

    ResponderEliminar
  2. Acho que os poetas e escritores, os artistas em geral, têm uma forma diferente de perspectivar o mundo, por isso são tão intensos e nos tocam tanto. Li há um tempo que a Sophia de Mello Breyner se esqueceu de um dos filhos numa livraria uma vez. Bjs

    ResponderEliminar

Comments are welcome :-)