Páginas

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Perfume de baunilha

Estava pensando nela, de manhã.
A sua outra, a sua inantingível outra, a das pernocas, a da baunilha. (...)
Enquanto faziam amor, ele tentava imaginar que ela era a outra.
Mas o cheiro do sabonete atrapalhava.

Luis Fernando Veríssimo, Sexo na Cabeça.

Nos dias em que a literatura me faz sonhar, gosto ainda mais dessa arte mágica e alquímica de dar forma, sentido e sentir às palavras agrupadas em carreirinhas como uma interminável serpentina colorida. Nos dias de sonho acredito que sim, acredito, por exemplo, que sim, que aquela mulher ao acordar é bela e apetecível, com olhos papudos, dentes por lavar e o perfume da noite anterior nos braços de Morfeu, que dizia ele, tinha um toque a baunilha. E o corpo, o corpo diferente, mais redondo, de perna grossa. Com o decorrer do dia tudo se perdia. Bastava a ida à casa de banho. O cheiro ia-se, a forma voluptuosa do corpo cálido desaparecia, os olhos retomavam a forma normal. Modiglanizava-se, dizia. Mas essa da manhã permanecia a fonte insondável de desejo e surgia como a outra, a outra que ela queria acima da aprumadinha, perfumada, delgada e de rosto desinchado, pestanas reviradas, e, claro, de dentes lavados. A da manhã era esquiva também por isso tão desejada, a intangibilidade torna o objecto desejado ainda mais intenso e fervorosamente querido, cobiçado, desejado, apetecido. E por tudo isto gosto da literatura. Porque ninguém cheira a baunilha pela manhã, homem ou mulher, porque ninguém é mais belo, irresistível ou desejado com o corpo disforme da noite arrumada nos dias passados, -credo, alguém gostará do rosto marcado da almofada? -porque aos impulsos matinais do corpo são dadas formas e perfumes, como se de desejo se tratasse e não apenas da fome irresistível do corpo alheio, da inteira responsabilidade da natureza, essa grande perversa, que ao contrário da literatura, tem sempre uma explicação lógica sem a doçura das palavras com perfume de baunilha.

2 comentários:

Comments are welcome :-)