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terça-feira, 18 de outubro de 2005

Iniciais

Na sexta-feira ou talvez sábado, a minha mãe ligou-me e, com jeitinho e depois de ter dito algo antes, comunicou-me que o F. tinha tido um AVC. Estava bem na medida do possível. Descansei. O F. partilha com o meu pai a inicial do nome e foram também personagens principais de algumas curtas-metragens das suas vidas. O F. tal como o meu pai é beirão convicto e, tal como a minha mãe, amante de teatro e poesia. Um sonhador, um homem de afectos e emoções. Fala com o sotaque beirão, os ss mais sibilados, a entoação meio cantada e tem a frontalidade e o coração hospitaleiro das gentes nortenhas.
Conta-se que, antes de ir para o então Ultramar, parou por aqui nas manobras de preparação para o combate contra os turras e conta-se que durante esse mesmo período era visita assídua da casa dos meus pais, com outro amigo , também F. de primeiro nome. Nessa altura, eu era apenas perceptível pelo volume na barriguita da minha mãe. Todos os dias, assim o permitisse a instituição militar, podia encontrar-se lá em casa para uma troca de ideias, um encontro salutar e descontraído, sempre acompanhado por um bolo feito pela minha avó e uma garrafa de brandy para aconchegar a alma do inferno que os esperava.
O convívio foi longo e ilustre ao longo destes mais de quarenta anos. Certa noite, na Feira Franca, após um jantar opíparo e bem regado, o F. tomou-se de exaltações aparentes com alguém que passava, tal como esse alguém que passava com ele. Amigos de ambas as partes encarregaram-se de não os deixar sequer aproximar, temendo uma altercação. Nenhum cedeu. Continuavam vociferando e gesticulando, tentando livrar-se de quem os agarrava. Ambos procuravam o contacto físico, contacto físico esse que ficou posteriormente provado ser apenas um cumprimento. Conheciam-se bem, os dois intervenientes deste episódio, gostariam apenas de se cumprimentar cordialmente e não se sabe porquê, não se soube até hoje por que razão alguém havia de ter pensado que ambos se quereriam agredir. Acredito que o jantar opíparo não estará propriamente inocente neste caso. Lembro-me de ver alguém com a gravata de F. na mão e relembro as risadas fortes e sonoras nos dias e anos posteriores. O meu pai saberia com toda a certeza preencher com mais pormenores este episódio rocambolesco.
O F. ficou inconsolável com a partida do meu pai. O F. chorou connosco o vazio, embora longe. Felizmente está a recuperar do AVC. A debilidade do corpo é a linguagem da saudade quando nos secaram as lágrimas.

3 comentários:

  1. A debilidade do corpo é a linguagem da saudade quando nos secaram as lágrimas.
    E bem verdade, ate a saudade do nosso pais nos faz ficar doentes

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  2. bem, nao foi sem motivo que escrevi a invocacao contra a melancolia na Aurelia...

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