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terça-feira, 14 de março de 2006

Da Memória do Corredor

Um dia destes dei comigo passeando sem destino específico ou objectivo concreto no corredor de casa dos meus pais. Não gosto particularmente de corredores nas casas, não servem objectivo algum, apenas o de nos levar para outras divisões da casa como se fossem caminhos. São apenas estações intermédias que adiam a intimidade familiar. Na casa dos meus avós paternos havia e ainda há um corredor imenso, largo e comprido, onde eu e os meus primos brincávamos de quando em quando. Nunca foi sítio onde me sentisse confortável. O tecto era alto a largura imensa e a completar tudo isto havia também por lá pendurado um quadro sinistro de uma santa com os olhos numa bandeja que segurava nas mãos. Ainda hoje, caso me cruzasse com o dito quadro, estou certa de que me não seria indiferente. Talvez o ar sereno mas ascético, a Santa Luzia com a compostura dos santos e a resignação dos sagrados, indiferente e plácida, com os olhos a boiar na bandeja.
Na casa dos meus pais o corredor não é sinistro. Guarda memórias imensas. Logo à esquerda encontramos uma estante imensa recheada de livros de outras eras e completamente diferentes uns dos outros. Dos que mais gosto são os que pertenceram à minha avó, que embora tivesse apenas a terceira classe por ser a única mulher dos três filhos e somente os homens pudessem ter acesso a uma educação formal, era uma leitora ávida de romances como ela dizia e sempre aberta a aprender. Também ela cresceu no meio dos livros. Conta a minha mãe que o meu bisavô, seu pai, comprara uma biblioteca inteira a alguém que dela se queria desfazer. Talvez por isso tenhamos a primeira edição portuguesa d´A Cabana do Pai Thomaz, datada de 1853 e que tem como subtítulo A VIDA dos PRETOS na AMÉRICA. Romance Moral. A minha avó acompanhava-nos com gosto à Feira do Livro e comprava a seu gosto os livros de literatura cor-de-rosa. Na verdade, eu é que os acompanhava a eles, aos meus pais e à minha avó, uma vez que mesmo de tenra idade nunca fui excluída dos périplos habituais pela Feira do Livro. Os livros estão amarelados alguns, a gramagem do papel é diferente assim como a textura, algumas capas ainda decoradas com alguns arrebiques.
Também no corredor estão os troféus de pesca do meu pai, não que fosse um pescador de alta competição, apenas desportivo. De resto, a competição como motor da vida era algo que abominava. Participou pontualmente em concursos de pesca e aqui e ali trazia para casa uma medalha ou uma taça, certificativa da sua participação Foi também no corredor que se travou a Guerra do Camilo e naquele corredor está um dos quadros que o meu pai mais valorizava, não por ter sido pintado pelo meu tio ou por ser particularmente belo do ponto de vista plástico. Lembro-me de como foi parar lá a casa. Algures num passado remoto, o meu pai e a minha mãe foram ao teatro, ritual muito comum nesses tempos. Era uma peça de Strindberg Um Sonho. No final os actores distribuíram pela plateia um pequeno poster enroladinho apenas com um cordel em seu torno. A minha mãe conta que o deles lhes foi oferecido pela mão da actriz Ana Paula. Os meus pais trouxeram-no para casa com todo o carinho ou não fossem inomináveis devotos dos pequenos grandes gestos do quotidiano. O meu querido pai resolveu mandá-lo emoldurar perpetuando o gesto e o ensinamento e hoje continua pendurado no corredor, bem visível, como um memorando para os nossos dias presentes e futuros. A preto e branco lê-se

A Beleza da Vida
é
gratuita.
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