Chove. Olho pela janela e vejo a chuva a cair sobre o azevinho.
A minha avó materna com quem partilhei toda a minha vida até à sua morte, contou, também durante o mesmo período de tempo, que quando o pai lhe morreu e surgiram as primeiras chuvas, ela chorava à janela, pensando nele, pensando que ele estava à chuva, sozinho. Tinha uns olhos escuros, ainda mais escuros nestes momentos. Fez lutos prolongados e constantes: o pai, a filha, a mãe e o marido. Falava inúmeras vezes dessa tristeza, dessa saudade, recontava os episódios e vestiu todos os dias da sua vida uma única cor: preto. Contam-me que em criança e dormindo eu no mesmo quarto que ela, certo dia me terei aproximado da D. e questionado por que é que a vóvó à noite se vestia de branco se de dia se vestia de preto.
Continuo com a falta do meu querido pai. A chuva não me incomoda. Incomoda-me o sofá vazio. Incomoda-me chegar a casa dele e da minha mãe e haver silêncio, um silêncio tão grande que nem me apetece chorar e em cima da mesa repousar um livro tão propositadamente intitulado A Casa Quieta . O que a morte nos provoca não se deixa explicar pela razão.
A minha avó e o meu pai estão juntos na mesma sepultura. Ao longo da vida discutiram algumas vezes e cobriram-se de carinhos outras tantas. Poucos dias antes de morrer, a minha avó agarrou o rosto do meu pai entre as suas mãos e disse-lhe um terno e carinhoso “És tão lindo!” Recordo antes, muito antes disso, alguns refilanços recorrentes. Tendo a minha avó nascido em 1900, vivia revoltada com a morte do rei e soltava, a espaços, desabafos sentidos “Não há direito o que fizeram ao rei…” A implantação da República deixara-lhe marcas que pouco tinham a ver com a política mas mais com a tragédia dos acontecimentos daquele 5 de Outubro de 1910. Claro que meu pai não achava nada que o rei tivesse sido um coitadinho. Claro que o meu pai, a troco de uma resposta rápida da minha avó, seria sempre um republicano convicto.
Nesse tempo a casa era cheia. Também de bibelots. Pairava lá por casa um pequeno busto do Camilo Castelo Branco. Não havia unanimidade quanto ao sítio do mesmo. Ora aqui, ora ali, o Camilo lá se ia passeando por entre os livros nas estantes do corredor. O meu pai achava que ficava melhor ali. A minha avó discordava e dava-lhe uma nova morada. O meu pai ao passar no corredor mudava-o um pouco mais para a esquerda ou levemente para a direita, apenas para brincar com ela. Obviamente ali não, pensaria a minha avó e, quando íamos ver, o Camilo já tinha ido dar mais uma voltita. Enquanto houvesse estantes, subsistiria sempre a certeza da discórdia quanto ao paradeiro do busto do escritor. Assim era a Guerra do Camilo, sem dúvida o bibelot mais viajado da casa e também embora sendo dos mais feios, senão o mais feio, o que mais diversão e risada nos provocava. Espero que o Camilo não leve a mal…
Tranquiliza-me saber o meu pai e a minha avó juntos, na vida e na morte. Quem se ama assim, ama-se sempre. Gosto de os sentir talvez num outro local, refilando um com o outro por causa da morte do rei, provocando-se por causa do Salazar e das estradas, a minha avó evocando o tempo do Nero para a pouca-vergonha contemporânea, o meu pai indignando-se com a candidatura de Mário Soares e ambos mudando sistematicamente de lugar o busto do Camilo na estante do corredor lá do eterno descanso.
A minha avó materna com quem partilhei toda a minha vida até à sua morte, contou, também durante o mesmo período de tempo, que quando o pai lhe morreu e surgiram as primeiras chuvas, ela chorava à janela, pensando nele, pensando que ele estava à chuva, sozinho. Tinha uns olhos escuros, ainda mais escuros nestes momentos. Fez lutos prolongados e constantes: o pai, a filha, a mãe e o marido. Falava inúmeras vezes dessa tristeza, dessa saudade, recontava os episódios e vestiu todos os dias da sua vida uma única cor: preto. Contam-me que em criança e dormindo eu no mesmo quarto que ela, certo dia me terei aproximado da D. e questionado por que é que a vóvó à noite se vestia de branco se de dia se vestia de preto.
Continuo com a falta do meu querido pai. A chuva não me incomoda. Incomoda-me o sofá vazio. Incomoda-me chegar a casa dele e da minha mãe e haver silêncio, um silêncio tão grande que nem me apetece chorar e em cima da mesa repousar um livro tão propositadamente intitulado A Casa Quieta . O que a morte nos provoca não se deixa explicar pela razão.
A minha avó e o meu pai estão juntos na mesma sepultura. Ao longo da vida discutiram algumas vezes e cobriram-se de carinhos outras tantas. Poucos dias antes de morrer, a minha avó agarrou o rosto do meu pai entre as suas mãos e disse-lhe um terno e carinhoso “És tão lindo!” Recordo antes, muito antes disso, alguns refilanços recorrentes. Tendo a minha avó nascido em 1900, vivia revoltada com a morte do rei e soltava, a espaços, desabafos sentidos “Não há direito o que fizeram ao rei…” A implantação da República deixara-lhe marcas que pouco tinham a ver com a política mas mais com a tragédia dos acontecimentos daquele 5 de Outubro de 1910. Claro que meu pai não achava nada que o rei tivesse sido um coitadinho. Claro que o meu pai, a troco de uma resposta rápida da minha avó, seria sempre um republicano convicto.
Nesse tempo a casa era cheia. Também de bibelots. Pairava lá por casa um pequeno busto do Camilo Castelo Branco. Não havia unanimidade quanto ao sítio do mesmo. Ora aqui, ora ali, o Camilo lá se ia passeando por entre os livros nas estantes do corredor. O meu pai achava que ficava melhor ali. A minha avó discordava e dava-lhe uma nova morada. O meu pai ao passar no corredor mudava-o um pouco mais para a esquerda ou levemente para a direita, apenas para brincar com ela. Obviamente ali não, pensaria a minha avó e, quando íamos ver, o Camilo já tinha ido dar mais uma voltita. Enquanto houvesse estantes, subsistiria sempre a certeza da discórdia quanto ao paradeiro do busto do escritor. Assim era a Guerra do Camilo, sem dúvida o bibelot mais viajado da casa e também embora sendo dos mais feios, senão o mais feio, o que mais diversão e risada nos provocava. Espero que o Camilo não leve a mal…
Tranquiliza-me saber o meu pai e a minha avó juntos, na vida e na morte. Quem se ama assim, ama-se sempre. Gosto de os sentir talvez num outro local, refilando um com o outro por causa da morte do rei, provocando-se por causa do Salazar e das estradas, a minha avó evocando o tempo do Nero para a pouca-vergonha contemporânea, o meu pai indignando-se com a candidatura de Mário Soares e ambos mudando sistematicamente de lugar o busto do Camilo na estante do corredor lá do eterno descanso.
:-)
ResponderEliminarNeste momento estão eles a rir-se com o Camilo...
ResponderEliminar:o)
Quando comecei a escrever estava a pensar noutro texto, mas depois lembrei-me deste episódio e o texto tomou conta de mim. O que nós nos riamos lá em casa! Também havia um busto de Camões, agora o do Camilo é que era o mais atingido ;-)
ResponderEliminarÁs vezes penso nisso, fantasminha, será que se encontra alguém depois disto aqui?
Eu tenho quase a certeza que sim,que encontramos, mas prefiro contar-te porque no messenger.
ResponderEliminarSabes, Joana, eu nunca acreditei nisso, mas sinto que o meu pai está bem e nos deixou tranquilos. Não sei explicar. Tenho muitas saudades dele mas sei-o bem. Isto pode parecer disparate...
ResponderEliminarDevemos sempre deixar que o texto nos "comande"... e tu escreves sempre coisas tão bonitas...
ResponderEliminarEu, pessoalmente, nunca acreditei no além. Acho que não há uma "continuação", mas isso também não me assusta. Mas aceito e compreendo perfeitamente quem pense o contrário, e até gostava de acreditar também.
E não parece nada disparate o que dizes, e ainda bem que assim é! Há coisas que não se explicam... e se o sentes bem é porque de certeza ele está, e assim também tu vais ficando aos poucos...
Bjos grandes
Só morremos quando morrer a última pessoa que se lembra de nós...
ResponderEliminarDurante a nossa vida só temos é que acreditar.