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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Vêm aí os russos (3)

Estava sol, dizia eu, e a primeira vez que pus o pé na Praça Vermelha, senti a natural felicidade que os turistas encontram quando finalmente se vêem frente a frente com os seus objectos de amor ou de desejo. Podem ser praças, estátuas, quadros, monumentos ou pedaços seja do que for desde que no seu universo de gente inquieta funcionem com um íman que geralmente arrecadam com convicção em pedacinhos de papel brilhante ou ficheiros em cartões de memória. A Praça Vermelha funcionava como um íman. A Praça Vermelha e a Catedral de São Basílio. Saídos do metro foi só virar à esquerda, felizmente desta vez mantivemos as bocas fechadas e seguimos o mapa, não fossem descompor-nos logo no primeiro dia. E sim, a Praça Vermelha é a Praça Vermelha. Imensa e imponente, ladeada pelo Kremlin e pelo GUM, os anteriores Armazéns do Povo. Estonteante e contraditório. Belíssimo. Impossível não gostar. Do lado direito o Museu da Cidade, um lindíssimo edifício em tijolo vermelho, não é daí que advém o nome da Praça, e do outro lado, uma igreja muito pequena mas venerada por quem passava à porta. Com três dedos os russos faziam o sinal da cruz mesmo sem entrar na igreja. Beatões, portanto, muito religiosos. Há que compensar o tempo perdido do materialismo soviético. Entrei na igreja, de cabeça coberta, esta que vos escreve é desbocada mas respeitadora, e pasmei com a beleza dos ícons e pinturas douradas bizantinas. Havia de me acontecer o mesmo no Kremlin. Um espanto completo, não que a religião me esmague, não me esmaga nunca, mas a arte bizantina é estranhamente acolhedora. Não há estátuas de santos condoídos, imagens terríveis de sofrimento , esgares de dor ou fervores mistícos a que as igrejas católicas me habituaram. Os serviços religiosos nas igrejas ortodoxas são sempre de pé, provações que os bentos e crentes  terão de passar, se o forem verdadeiramente, e as mulheres têm sempre a cabeça coberta. E era quase Páscoa. As igrejas tinham muita gente. Que beatos, estes russos. Curioso, penso quando ponho pé na rua e respiro o ar refrescante desta manhã de sol moscovita. Mas voltando atrás. A Catedral de Kazan alberga o ícone da Nossa Senhora de Kazan e é uma das mais importantes igrejas na Rússia e esteve ali desde o século XVII até aos anos trinta do século passado. Algures por essa altura, Stalin, esse rapaz que não era russo mas era soviético, precisava de espaço para os desfiles militares. A Catedral estava-lhe no caminho, uma maçada, a Catedral e as portas por onde tínhamos entrado, a Porta da Ressurreição. E que outra solução se não demolir? Só nos anos 90 os moscovitas voltariam a ver a Catedral na Praça Vermelha. Não admira pois a devoção. Aqui  e em todo o lado, pela mesma razão: os anos 90. A mesma sorte de negregura e ressurreição teve a Igreja de Cristo Salvador. Uma igreja branca enorme de cúpulas douradas fulgurantes. Avista-se à distância em alguns pontos da cidade e foi reconstruída  de raiz com o dinheiro do povo. Também. Monumental mas demasiado estridente para o meu gosto ou não fosse obra de Zurab Tsereteli, o controverso arquitecto que parece viver à margem do 'less is more'. Por dentro e por fora a igreja impõe-se demasiado. Esteve a mais também. Depois da morte de Lenine iria ser erigido ali o Palácio dos Sovietes, justamente naquele lugar, exactamente naquele sítio. Uma pena a igreja estar no caminho.Teve azar, portanto, a igreja original construída no Século XIX como agradecimento por Napoleão se ter retirado e esperou-lhe a mesma sorte que a Catedral de Kazan e a Porta da Ressurreição. Saiam-me da frente. Igrejas, pessoas, monumentos. É surpreendente que a Catedral de São Basílio tenha sobrevivido a estes ímpetos. Safou-se por pouco, sabe-se. E se o destino a tivesse trucidado, os russos modernos te-la-iam erigido dos escombros em busca dos seu passado. Ai, os russos, os russos.

 Catedral de Kazan.

fotografia minha

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