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terça-feira, 31 de janeiro de 2006
Agora
A vida é assim mesmo: umas coisas vão piorando, outras melhorando, o passado já foi, o futuro não existe, vamos viver o melhor do presente, e pronto.
Danuza Leão, Quase Tudo
Tanto Mar
segunda-feira, 30 de janeiro de 2006
Mudanças
Pois naquele dia de Janeiro o H. chegou a casa já ao entardecer. Vinha carregado de coisas, nem me lembro exactamente com quê, apenas a imagem dele afobado a entrar pela casa dentro, empurrado pela invernia acutilante e obstinada. Deitou o correio para cima da mesa e disse apenas está aí uma viagem a Nova Iorque para concorreres… e dito isto debandou para a cozinha, onde abandonou os carregos e arremessou a canseira do dia de trabalho, pesado, denso, húmido e cinzento. Nesse tempo morávamos numa casa feita de humidade e frio e, por assim ser, e mais não aguentarmos, uma bela noite de Novembro decidimos dali sair. Um mês depois fazíamos a promessa de compra e venda desta e dois meses depois fechámos com felicidade a porta desse capítulo recheado de invernia. A cusca, a senhoria, uma saloia cilíndrica, tisnada e intrometida, ficara para trás com as suas casas de aluguer, o seu vastíssimo património, o seu filho encalhado e as vidas alheias de vizinhos, não-vizinhos e outras criaturas mundanas do reino vegetal e animal para espiolhar. E dessa data passam hoje, precisamente hoje, três anos recheados de vivências temperadas com ternura e salpicadas de inevitáveis mágoas e desprazeres esporádicos.
Mas isto foi antes e, visto que partir sempre foi um chamamento, agarrei num papel e num lápis naquele mesmo instante e rabisquei umas quantas quadras, sem poesia nem formosura, apenas rima e os requisitos exigidos: o nome da loja, um produto da dita loja e o destino. O H. encarregou-se de enviar as mensagens. Queixou-se de que lhe doíam os dedos. Argumentou que estava já cansado de tanto escrever. Tanta rima, tanta palavra. Ameacei-o sem demora que caso ganhasse a viagem o deixaria em terra, atitude pouco cristã, em total discordância com o que proferi no altar, cumprindo, não obstante o regulamento de divisão de tarefas. Eu escrevo, tu envias. Não é por acaso o casamento a partilha de uma vida, a divisão de tarefas, a distribuição de papéis? Tal nos havia sido ridiculamente doutrinado naquele Centro de Preparação para o Matrimónio, um dos acontecimentos mais patéticos e constrangedores em que algum dia participei, logo na alvorada do século XXI e que faria o orgulho de um qualquer Ratzinger. Perdoai-lhes, Senhor.
Umas duas semanas depois, quando a casa mais não era do que um amontoado de caixas, móveis, livros, bibelots e demais traquitanas e tralhas empilhadas por ordem de saída, também elas desejosas de abandonar para sempre aquela casa com vista para o vento, o telemóvel do H. tocou e, nos despojos da ventania, o H. disse Toma, é para ti. Pela apresentação da parte de quem vinham fez-se imediatamente luz ao que vinham e foi então que ao som do Vamos fugir desse lugar... do Gilberto Gil se juntou the Voice cantarolando Start spreading the news…
Mas isto foi antes e, visto que partir sempre foi um chamamento, agarrei num papel e num lápis naquele mesmo instante e rabisquei umas quantas quadras, sem poesia nem formosura, apenas rima e os requisitos exigidos: o nome da loja, um produto da dita loja e o destino. O H. encarregou-se de enviar as mensagens. Queixou-se de que lhe doíam os dedos. Argumentou que estava já cansado de tanto escrever. Tanta rima, tanta palavra. Ameacei-o sem demora que caso ganhasse a viagem o deixaria em terra, atitude pouco cristã, em total discordância com o que proferi no altar, cumprindo, não obstante o regulamento de divisão de tarefas. Eu escrevo, tu envias. Não é por acaso o casamento a partilha de uma vida, a divisão de tarefas, a distribuição de papéis? Tal nos havia sido ridiculamente doutrinado naquele Centro de Preparação para o Matrimónio, um dos acontecimentos mais patéticos e constrangedores em que algum dia participei, logo na alvorada do século XXI e que faria o orgulho de um qualquer Ratzinger. Perdoai-lhes, Senhor.
Umas duas semanas depois, quando a casa mais não era do que um amontoado de caixas, móveis, livros, bibelots e demais traquitanas e tralhas empilhadas por ordem de saída, também elas desejosas de abandonar para sempre aquela casa com vista para o vento, o telemóvel do H. tocou e, nos despojos da ventania, o H. disse Toma, é para ti. Pela apresentação da parte de quem vinham fez-se imediatamente luz ao que vinham e foi então que ao som do Vamos fugir desse lugar... do Gilberto Gil se juntou the Voice cantarolando Start spreading the news…
domingo, 29 de janeiro de 2006
Domingo com neve
Estávamos então à mesa, saboreando paulatinamente o almoço quando o H. disse Olha, está a nevar! ao que respondi céptica e absolutamente convicta Está nada! Coisa assim seria mais rara que aparição de santo. Mas estava mesmo. Primeiro calmamente, um floco aqui, outro ali misturado com uma chuva miudinha a abanar os pinheiros do lado de lá da rede, depois mais forte e mais forte, com flocos grandes e a euforia instalou-se: porta da frente, porta de trás, janelas e terraço tudo foi percorrido com alegria pueril, nós na rua, os vizinhos na rua, todos de máquina fotográfica em punho tentando agarrar a magia daquele momento e a afirmação mil vezes repetida entusiasticamente Está a nevar!!!! Das alturas caíam farrapinhos alvos e rapioqueiros, dessas mesmas alturas onde julguei ver o sorriso aberto do meu pai pela alegria incontida da minha querida mãe.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2006
Edelweiss
Escrito há uns anos para um passatempo de uma publicação de viagens, aqui fica outro texto do baú nos 250 anos do amigo Wolferl.
Todas as cidades belas que conheço são como ostras que guardam no interior a pérola da sua existência e, tal como as ostras, podem parecer rudes e irregulares na dureza do seu exterior e, exactamente como as ostras, revelam-se sublimes, quando nos deparamos com a beleza do seu interior. Não cheguei nunca a cidade alguma que deixasse antever, pelos seus subúrbios, a magia do seu centro. Amesterdão ou Praga são, partindo dos respectivos aeroportos, apenas lugares como outros e os percursos deixam-nos expectantes e desiludidos. É isto Amesterdão? E os canais? E as cornijas ornamentadas? Não, não pode ser isto.
E, não sendo Salzburg excepção, assim foi também. Deparei-me à chegada com mais um amontoado de edifícios, comedidos, mas ainda atípicos, assaltando-me de imediato uma discreta indignação Afinal foi aqui que nasceu Georg Trakl? Então foi aqui que nasceu o grande Wolfgang, Wolferl para os íntimos? E foi, foi ali naquela belíssima pequena cidade, afinal.
Bastou seguir o Salzach, virar à direita e seguir as hordas de turistas, que, ainda assim, não constituem impedimento para fruir esta cidade tão arrumada, tão limpa, tão elegante, tão grandiosa na beleza das suas ruas e ruelas estreitas, cuidadas a rigor com a delicadeza e carinho de quem decora pela primeira vez a sua primeira casa, para encontrarmos a casa onde Wolfgang Amadeus Mozart viu a luz do mundo pela primeira vez e, logo após o choro de recém-nascido, percorreu-me na fantasia o irreverente cravo do génio e a casa tornou-se mais viva, mais exultante como toda a cidade nos inúmeros eventos musicais que a celebrizam.
E assim regressei à Getreidegasse para me perder nas fachadas das lojas, mais fascinantes que a panóplia de souvenirs amiúde baptizados com o prefixo Mozart e adornados com a elegância do requinte austríaco. E foi assim que entendi a que meu pai se referia sempre que via Música no Coração e, deleitando-se com o Capitão von Trapp a cantar Edelweiss, me (re)contava que aquela era uma pequena flor branca existente apenas nos Alpes e, por isso, entrei na loja e entre violinos e artefactos de madeira, também eu, tão turista como todos os turistas do mundo, comprei um singelo Edelweiss, talhado manualmente, em homenagem à minha infância e a quem a tornou mais feliz pelo entoar do Edelweiss.
Salzburg é uma bênção para os sentidos: a música calcorreia as ruas salpicadas de monumentos barrocos e palácios sumptuosos como a Residenz ou Hellbrunn, testemunhos dum esplendor onde a urbe parece ter alicerçado a sua harmonia arquitectónica, o mercado alegra-nos a alma com o colorido de legumes e flores e o paladar é mimado com as típicíssimas Mozartkugeln, de degustação obrigatória para quem queira provar a que sabe Salzburg. A cidade é serena e magnífica vista da altaneira Hohensalzburg, omissa no passado de cruz gamada, pacificando-nos com a vida como se toda ela fosse tão leve como o gargalhar espontâneo do Amadeus de Forman saboreando uma Melange no mítico Tomaselli e tão romântica como o entoar suave do Edelweiss, Edelweiss...
Todas as cidades belas que conheço são como ostras que guardam no interior a pérola da sua existência e, tal como as ostras, podem parecer rudes e irregulares na dureza do seu exterior e, exactamente como as ostras, revelam-se sublimes, quando nos deparamos com a beleza do seu interior. Não cheguei nunca a cidade alguma que deixasse antever, pelos seus subúrbios, a magia do seu centro. Amesterdão ou Praga são, partindo dos respectivos aeroportos, apenas lugares como outros e os percursos deixam-nos expectantes e desiludidos. É isto Amesterdão? E os canais? E as cornijas ornamentadas? Não, não pode ser isto.
E, não sendo Salzburg excepção, assim foi também. Deparei-me à chegada com mais um amontoado de edifícios, comedidos, mas ainda atípicos, assaltando-me de imediato uma discreta indignação Afinal foi aqui que nasceu Georg Trakl? Então foi aqui que nasceu o grande Wolfgang, Wolferl para os íntimos? E foi, foi ali naquela belíssima pequena cidade, afinal.
Bastou seguir o Salzach, virar à direita e seguir as hordas de turistas, que, ainda assim, não constituem impedimento para fruir esta cidade tão arrumada, tão limpa, tão elegante, tão grandiosa na beleza das suas ruas e ruelas estreitas, cuidadas a rigor com a delicadeza e carinho de quem decora pela primeira vez a sua primeira casa, para encontrarmos a casa onde Wolfgang Amadeus Mozart viu a luz do mundo pela primeira vez e, logo após o choro de recém-nascido, percorreu-me na fantasia o irreverente cravo do génio e a casa tornou-se mais viva, mais exultante como toda a cidade nos inúmeros eventos musicais que a celebrizam.
E assim regressei à Getreidegasse para me perder nas fachadas das lojas, mais fascinantes que a panóplia de souvenirs amiúde baptizados com o prefixo Mozart e adornados com a elegância do requinte austríaco. E foi assim que entendi a que meu pai se referia sempre que via Música no Coração e, deleitando-se com o Capitão von Trapp a cantar Edelweiss, me (re)contava que aquela era uma pequena flor branca existente apenas nos Alpes e, por isso, entrei na loja e entre violinos e artefactos de madeira, também eu, tão turista como todos os turistas do mundo, comprei um singelo Edelweiss, talhado manualmente, em homenagem à minha infância e a quem a tornou mais feliz pelo entoar do Edelweiss.
Salzburg é uma bênção para os sentidos: a música calcorreia as ruas salpicadas de monumentos barrocos e palácios sumptuosos como a Residenz ou Hellbrunn, testemunhos dum esplendor onde a urbe parece ter alicerçado a sua harmonia arquitectónica, o mercado alegra-nos a alma com o colorido de legumes e flores e o paladar é mimado com as típicíssimas Mozartkugeln, de degustação obrigatória para quem queira provar a que sabe Salzburg. A cidade é serena e magnífica vista da altaneira Hohensalzburg, omissa no passado de cruz gamada, pacificando-nos com a vida como se toda ela fosse tão leve como o gargalhar espontâneo do Amadeus de Forman saboreando uma Melange no mítico Tomaselli e tão romântica como o entoar suave do Edelweiss, Edelweiss...
quinta-feira, 26 de janeiro de 2006
quarta-feira, 25 de janeiro de 2006
A Curva da Estrada
Logo a seguir
A morte é a curva da estrada. Morrer é só não ser visto.
o nome do autor por baixo, à direita,
em letras mais pequenas.
Mais abaixo um nome
Maria Amélia Soares Simões da Silva
duas datas
17.08.1900 – 26.09.1989
logo por baixo
um outro nome
António Fernando Mendes de Barros
duas datas também
12.05.1936 – 02.09.2005
sobriamente gravados sem artifícios nem dourados sobre o definitivo granito preto, liso, escorreito, discreto, homenagem ao amor incondicional que ambos nutriam pela terra que ambos viu nascer e eu e o H. comentando baixinho contra o vento gélido de Janeiro Ficou bem, não ficou? Ficou, concordámos.
Um abraço terno de consolo, a mão procurando outra mão, palavras trocando-se singelas, um pensamento de homenagem, uma lágrima tímida de saudade
no silêncio sepulcral
do cemitério.
terça-feira, 24 de janeiro de 2006
Janeiro revisitado
domingo, 22 de janeiro de 2006
Quem não é por mim...
Hoje dei comigo a pensar que quem tem medo de dar uma opinião para não cometer uma injustiça para com os demais é porque desconhece que uma opinião mais não é do que isso mesmo e que a convivência saudável em democracia permite exactamente que se exprimam opiniões, gostos e pontos de vista livremente e que esses sejam aceites sem que isso constitua ofensa, delito ou atentado contra as liberdades e direitos de cada um. Concluí pois que se as sondagens se confirmarem estas serão as reacções do próximo presidente desta república aos mais variados tópicos:
sexta-feira, 20 de janeiro de 2006
Amigos
quinta-feira, 19 de janeiro de 2006
Em Janeiro
Num dezanove de Janeiro, Elis Regina morria aos trinta e seis anos deixando o universo musical todo pela sua frente e uma carreira avassaladora por trás. O Brasil chorou. O mundo chorou. A música chorou enquanto se despedia de umas das suas mais talentosas e emblemáticas presenças.
Janeiro é mês feio. Faça sol ou faça chuva. Deste ou do outro lado do Atlântico. Aqui, ali, Janeiro será sempre Janeiro. Janeiro viu nascer o meu avô paterno num dia vinte do século passado. Janeiro viu-o também morrer. Três miseráveis dias após ter cumprido setenta anos. Marco esperado, ansiado, desejado, comemorado em família, assim foi pois a vontade do meu pai. Diz-se que era intuitivo e dotado de poderes mediúnicos, o meu pai e, por assim ser, e contrariamente a qualquer previsão, nesse dia vinte de Janeiro o meu pai pôde felicitar o seu pai. Três implacáveis dias de invernia depois, o meu avô era morto. Três dias gélidos e invernosos de reforma gozou o pai do meu pai. Em Janeiro. Janeiro escolheu também meu primo para, sem se saber porquê, desta vida se despedir e pela sua própria mão movida pela sua própria e inexplicável vontade, triste e insondável vontade para quem ficou, partir assim num dia também desse Janeiro cruel que me ensombra os dias. A dois dias e muitos anos de distância do nosso avô. E em Janeiro volta a pergunta em força que sono me tira e em mágoa me afoga PORQUÊ? e de novo ouço a voz da minha mãe chorando e anunciando-me o que nunca pensamos poder ser anunciado e em Janeiro vi e fiz o que nunca pensei poder ser feito. Em Janeiro partiu parte de mim. E assustando-me desde então com a proximidade de Janeiro, temendo a sua foice impiedosa, esqueci-me que também Setembro pode ser como Janeiro.
Janeiro é mês feio. Faça sol ou faça chuva. Deste ou do outro lado do Atlântico. Aqui, ali, Janeiro será sempre Janeiro. Janeiro viu nascer o meu avô paterno num dia vinte do século passado. Janeiro viu-o também morrer. Três miseráveis dias após ter cumprido setenta anos. Marco esperado, ansiado, desejado, comemorado em família, assim foi pois a vontade do meu pai. Diz-se que era intuitivo e dotado de poderes mediúnicos, o meu pai e, por assim ser, e contrariamente a qualquer previsão, nesse dia vinte de Janeiro o meu pai pôde felicitar o seu pai. Três implacáveis dias de invernia depois, o meu avô era morto. Três dias gélidos e invernosos de reforma gozou o pai do meu pai. Em Janeiro. Janeiro escolheu também meu primo para, sem se saber porquê, desta vida se despedir e pela sua própria mão movida pela sua própria e inexplicável vontade, triste e insondável vontade para quem ficou, partir assim num dia também desse Janeiro cruel que me ensombra os dias. A dois dias e muitos anos de distância do nosso avô. E em Janeiro volta a pergunta em força que sono me tira e em mágoa me afoga PORQUÊ? e de novo ouço a voz da minha mãe chorando e anunciando-me o que nunca pensamos poder ser anunciado e em Janeiro vi e fiz o que nunca pensei poder ser feito. Em Janeiro partiu parte de mim. E assustando-me desde então com a proximidade de Janeiro, temendo a sua foice impiedosa, esqueci-me que também Setembro pode ser como Janeiro.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2006
Gramática
terça-feira, 17 de janeiro de 2006
Livro de cabeceira
segunda-feira, 16 de janeiro de 2006
Janeiro
domingo, 15 de janeiro de 2006
Glórias lusitanas
Ontem voltei a ouvir o meu querido pai a propósito disto "Se for eleito Presidente da República me empenharei..." Mas que raio de português é este? Me empenharei? Me empenharei? disse indignado Ai Santo Deus, mas ninguém ensina essa gente a falar? Ainda por cima um professor doutor. Isso vai de mal a pior! Pois vai, Pápá. Se empenhará e se empenhará também em dar cabo dos funcionários públicos. Segundo o dito do empenho só lhe resta esperar que morramos todos, a bem da nação, como se diria noutros tempos.
E então ocorreu-me que Saramago bem podia aproveitar a ideia para o seu novo livro No dia seguinte morreram todos os funcionários públicos. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos economicistas e nas altas esferas estatais, uma satisfação enorme, feito em todos os aspectos justificado... Assim vão as glórias do mundo terreno.
E então ocorreu-me que Saramago bem podia aproveitar a ideia para o seu novo livro No dia seguinte morreram todos os funcionários públicos. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos economicistas e nas altas esferas estatais, uma satisfação enorme, feito em todos os aspectos justificado... Assim vão as glórias do mundo terreno.
sexta-feira, 13 de janeiro de 2006
Alentejo
E a preta? Quando é que levas a preta? Eu não queria trazer a preta mas o meu pai inicialmente a sério depois a brincar insistia para que eu a trouxesse. Isto começou quando pensei em me casar e continuou após me ter efectivamente casado. Sempre que dizia gosto muito daqueles castiçais, por exemplo, o meu pai respondia-me Gostas, filha? Leva para tua casa! e foi assim que alguns dos objectos decorativos dos meus pai vieram parar cá a casa. A preta, no entanto, continua em casa deles. Não sei se algum dia a trarei. Estou certa que se tal acontecer é apenas para satisfazer postumamente a vontade do meu querido pai. Não acredito porém que se deva cumprir na morte o que se não cumpriu em vida. Se vida houver do outro lado da vida, sei que o meu pai ficará felicíssimo, acima de tudo por lhe ter sido feito o gosto e secretamente por afinal ter ganho a contenda da preta. A manutenção de crenças irracionais sobre o que se passará do outro lado do rio serve também o intuito de apaziguar a dor e acalmar a saudade. Não sei, portanto, o que farei. A preta continua em vossa casa, Papá.
Certo dia disse-lhe Do que eu gosto mesmo é daquele quadro do Alentejo que ali está e estávamos à mesa nesse momento. Ele riu-se e perguntou Qual quadro O meu pai sabia bem a quadro me referia. Retorqui-lhe aquele ali, Papá, aquele da seara e da ceifeira…
O quadro é da autoria do meu padrinho de baptismo, tio direito da minha mãe. Escrevia, e pintava além da sua carreira militar e nasceu ainda no século XIX. Foi com ele que tive o meu primeiro contacto com o exótico. Vivia numa casa pequena ali para a Penha de França e tinha-a recheada, além dos seus quadros, de inúmeras relíquias de família e de recordações que trazia das suas viagens. Logo no hall da casa havia um pequeno escaparate de madeira escura e trabalhada, onde, a resguardo do pó, expunha algumas dessas pequenas raridades e que fazia as minhas delícias. Lembro-me de que a minha preferência e atenção se centravam muma bonequita japonesa de kimono, lembrança da sua viagem ao Japão, e nos brincos de granadas da Tia E. que nunca cheguei a conhecer. Acredito que quem hoje sou não será alheio a todas estas experiências iniciais de vida. Visitávamo-lo aos fins-de-semana, onde a experiência do exótico se renovava. Foi também numa dessas vezes que ouvi pela primeira vez falar do Gungunhana, nome estranho inicialmente mas que acabou por se tornar familiar. No Museu Militar existia um quadro seu intitulado A Prisão do Gungunhana, consequência da sua estadia em África ao serviço do Exército português, daí as conversas em torno do Gungunhana e a crescente familiaridade. A preta, de resto e não sendo parente do amigo Gungunhana, advém da mesma contingência de vida. Não sei como veio parar a nossa casa, mas o meu pai gostava da preta.
E a conversa à mesa continuou, com o meu pai sorrindo de soslaio Com que então queres o quadro do Alentejo? respondi já desconfiada Porquê? Aquilo não é o Alentejo? O meu pai sorriu de novo Não, filha. O tio contou-me a história daquele quadro, quadro esse que passou assim a ser conhecido lá em casa pelo Alentejo, de resto como sempre tinha sido para mim, uma vez que apenas o meu pai era conhecedor do segredo por trás da seara dourada e nunca antes se havia falado sobre o dito quadro. O meu pai não descansou enquanto não o soube cá em casa. Às vezes dizia O Alentejo... Ai que piada! Foi ele mesmo que mo trouxe, feliz por me poder fazer feliz mais uma vez.
Quando mandei encaixilhar o Alentejo pedi encarecidamente à senhora na loja para deixar a descoberto a pontinha do canto inferior direito, onde se pode ler, além da assinatura do meu tio, a data e a confirmação de como era Lisboa tal como ele a via da janela de casa algures entre a Praça de Espanha e Sete Rios, no ano de 1956, longe do Alentejo, tão semelhante, contudo, à paisagem que tenho arquivada na memória como sendo o Alentejo.
Certo dia disse-lhe Do que eu gosto mesmo é daquele quadro do Alentejo que ali está e estávamos à mesa nesse momento. Ele riu-se e perguntou Qual quadro O meu pai sabia bem a quadro me referia. Retorqui-lhe aquele ali, Papá, aquele da seara e da ceifeira…
O quadro é da autoria do meu padrinho de baptismo, tio direito da minha mãe. Escrevia, e pintava além da sua carreira militar e nasceu ainda no século XIX. Foi com ele que tive o meu primeiro contacto com o exótico. Vivia numa casa pequena ali para a Penha de França e tinha-a recheada, além dos seus quadros, de inúmeras relíquias de família e de recordações que trazia das suas viagens. Logo no hall da casa havia um pequeno escaparate de madeira escura e trabalhada, onde, a resguardo do pó, expunha algumas dessas pequenas raridades e que fazia as minhas delícias. Lembro-me de que a minha preferência e atenção se centravam muma bonequita japonesa de kimono, lembrança da sua viagem ao Japão, e nos brincos de granadas da Tia E. que nunca cheguei a conhecer. Acredito que quem hoje sou não será alheio a todas estas experiências iniciais de vida. Visitávamo-lo aos fins-de-semana, onde a experiência do exótico se renovava. Foi também numa dessas vezes que ouvi pela primeira vez falar do Gungunhana, nome estranho inicialmente mas que acabou por se tornar familiar. No Museu Militar existia um quadro seu intitulado A Prisão do Gungunhana, consequência da sua estadia em África ao serviço do Exército português, daí as conversas em torno do Gungunhana e a crescente familiaridade. A preta, de resto e não sendo parente do amigo Gungunhana, advém da mesma contingência de vida. Não sei como veio parar a nossa casa, mas o meu pai gostava da preta.
E a conversa à mesa continuou, com o meu pai sorrindo de soslaio Com que então queres o quadro do Alentejo? respondi já desconfiada Porquê? Aquilo não é o Alentejo? O meu pai sorriu de novo Não, filha. O tio contou-me a história daquele quadro, quadro esse que passou assim a ser conhecido lá em casa pelo Alentejo, de resto como sempre tinha sido para mim, uma vez que apenas o meu pai era conhecedor do segredo por trás da seara dourada e nunca antes se havia falado sobre o dito quadro. O meu pai não descansou enquanto não o soube cá em casa. Às vezes dizia O Alentejo... Ai que piada! Foi ele mesmo que mo trouxe, feliz por me poder fazer feliz mais uma vez.
Quando mandei encaixilhar o Alentejo pedi encarecidamente à senhora na loja para deixar a descoberto a pontinha do canto inferior direito, onde se pode ler, além da assinatura do meu tio, a data e a confirmação de como era Lisboa tal como ele a via da janela de casa algures entre a Praça de Espanha e Sete Rios, no ano de 1956, longe do Alentejo, tão semelhante, contudo, à paisagem que tenho arquivada na memória como sendo o Alentejo.
terça-feira, 10 de janeiro de 2006
Canetas com tinta
Às vezes tenho ideias, felizes,
Ideias súbitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?
Fernando Pessoa
Ideias súbitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?
Fernando Pessoa
segunda-feira, 9 de janeiro de 2006
Van Gogh e eu
Na verdade começo a acreditar que entre mim e Van Gogh existe uma ligação de fascínio, algo hipnótica até, muito embora e a bem da minha sanidade mental, não seja recíproca.
A primeira vez que me causou uma situação embaraçosa foi como aqui foi contado, mas, enfim, era muito jovem então e hoje ao retornar ao local verifiquei que o quadro se encontrava já protegido com um espesso vidro. Não sei se não terão à Neue Pinakothek chegado rumores da minha visita. Sei que foi lá que concluí, caso não o soubera antes, que não se deve perder oportunidade alguma e que este meu indicador direito, além de me ter escrito uma tese inteirinha de mestrado com cento e sessenta páginas, tocou também a pincelada do grande mestre do pós-impressionismo, façanha que muito dificilmente se repetirá.
Estávamos então em Paris, num dos mais belos e luminosos museus que conheço. Dessa feita, tal como na outra éramos muitos, mas, ao contrário da outra e em virtude da passagem do tempo, os papéis invertiam-se e eu já não era aluna, mas sim professora. Relembro com muito carinho essa viagem e Paris desses dias é-me uma cidade querida e doce. Comigo tinha a P., minha amiga e colega, agora também afilhada de casamento, presente em muitos momentos bons e maus da minha vida, tal como devem ser os amigos. Presente também era o LR, meu querido colega, agora presente apenas na memória e relembrado sempre com saudade. A vida pode a espaços sorrir-nos e acenar-nos rapioqueira e ligeira, tal como a meses e anos inteiros pode apenas mostrar-nos uma carranca sisuda sem esboçar o menor dos sorrisos e apresentar-se como um Inverno cinzento e frio sem fim à vista.
Tínhamos então percorrido uma distância enorme a pé, contámos sete pontes e finalmente chegámos ao Musée d´Orsay . O objectivo era acima de tudo a ala dos impressionistas e pós-impressionistas. Confesso que fiquei maravilhada pelo museu, a luminosidade do átrio, as rosáceas do tecto e o pensamento que de ali haviam partido e ali haviam chegado milhares de pessoas outrora. Agrada-me pensar um museu como uma viagem. Quando chegamos já não somos quem partiu.
Lembro-me bem que o LR se deteve junto da Igreja de Auvers do nosso amigo Vincent e que eu fiquei sozinha diante do Quarto de Arles e que estava sozinha à altura deste episódio. Saquei da máquina fotográfica, analógica pois claro, e retirando-lhe cuidadosamente o flash, fotografei o dito quarto. Tal como acontecera antes os redemoinhos da tinta e a intensidade da cor impeliam-me para dentro da pintura. A seguir, não muito longe, julgo, estava um auto-retrato e aí claro, o confronto foi directo com o olhar inquieto, a expressão perturbada do próprio pintor, ele tal como se via a si próprio, ele espelho de si mesmo. E sem mais pensar, saquei da máquina de novo e de novo premi o botão, só que desta vez uma luz esbranquiçada e brilhante invadiu a sala, estremunhando os demais visitantes da sua fruição silenciosa. Alguém ao meu lado olhou-me indignado e refilou-me severamente That damages the paintings, you know! Eu lá saber sabia, mas esquecera-me de retirar o flash da máquina e sem mais retirei-me eu mesma com o rabinho entre as pernas. O homem era alto e parecia que crescia para mim na imensidão do museu.
A versão da P. não coincide. De longe presenciava a conversa e concluiu, usando para tal o conhecimento aprofundado do meu temperamento Olha, lá está ela a dar uma descasca ao homem por causa do flash… Nada mais errado. O homem dava-me uma descasca a mim e o Vincent permanecia impassível lá na sua moldura, olhando-me de revés. Recriminando-me, em suma.
Como já fui ao Museu Van Gogh , já vi a Starry Night no MoMA, não vou arriscar mais Van Goghs, não vá o diabo tecê-las e dar por mim abandonada num campo de trigo com corvos.
A primeira vez que me causou uma situação embaraçosa foi como aqui foi contado, mas, enfim, era muito jovem então e hoje ao retornar ao local verifiquei que o quadro se encontrava já protegido com um espesso vidro. Não sei se não terão à Neue Pinakothek chegado rumores da minha visita. Sei que foi lá que concluí, caso não o soubera antes, que não se deve perder oportunidade alguma e que este meu indicador direito, além de me ter escrito uma tese inteirinha de mestrado com cento e sessenta páginas, tocou também a pincelada do grande mestre do pós-impressionismo, façanha que muito dificilmente se repetirá.
Estávamos então em Paris, num dos mais belos e luminosos museus que conheço. Dessa feita, tal como na outra éramos muitos, mas, ao contrário da outra e em virtude da passagem do tempo, os papéis invertiam-se e eu já não era aluna, mas sim professora. Relembro com muito carinho essa viagem e Paris desses dias é-me uma cidade querida e doce. Comigo tinha a P., minha amiga e colega, agora também afilhada de casamento, presente em muitos momentos bons e maus da minha vida, tal como devem ser os amigos. Presente também era o LR, meu querido colega, agora presente apenas na memória e relembrado sempre com saudade. A vida pode a espaços sorrir-nos e acenar-nos rapioqueira e ligeira, tal como a meses e anos inteiros pode apenas mostrar-nos uma carranca sisuda sem esboçar o menor dos sorrisos e apresentar-se como um Inverno cinzento e frio sem fim à vista.
Tínhamos então percorrido uma distância enorme a pé, contámos sete pontes e finalmente chegámos ao Musée d´Orsay . O objectivo era acima de tudo a ala dos impressionistas e pós-impressionistas. Confesso que fiquei maravilhada pelo museu, a luminosidade do átrio, as rosáceas do tecto e o pensamento que de ali haviam partido e ali haviam chegado milhares de pessoas outrora. Agrada-me pensar um museu como uma viagem. Quando chegamos já não somos quem partiu.
Lembro-me bem que o LR se deteve junto da Igreja de Auvers do nosso amigo Vincent e que eu fiquei sozinha diante do Quarto de Arles e que estava sozinha à altura deste episódio. Saquei da máquina fotográfica, analógica pois claro, e retirando-lhe cuidadosamente o flash, fotografei o dito quarto. Tal como acontecera antes os redemoinhos da tinta e a intensidade da cor impeliam-me para dentro da pintura. A seguir, não muito longe, julgo, estava um auto-retrato e aí claro, o confronto foi directo com o olhar inquieto, a expressão perturbada do próprio pintor, ele tal como se via a si próprio, ele espelho de si mesmo. E sem mais pensar, saquei da máquina de novo e de novo premi o botão, só que desta vez uma luz esbranquiçada e brilhante invadiu a sala, estremunhando os demais visitantes da sua fruição silenciosa. Alguém ao meu lado olhou-me indignado e refilou-me severamente That damages the paintings, you know! Eu lá saber sabia, mas esquecera-me de retirar o flash da máquina e sem mais retirei-me eu mesma com o rabinho entre as pernas. O homem era alto e parecia que crescia para mim na imensidão do museu.
A versão da P. não coincide. De longe presenciava a conversa e concluiu, usando para tal o conhecimento aprofundado do meu temperamento Olha, lá está ela a dar uma descasca ao homem por causa do flash… Nada mais errado. O homem dava-me uma descasca a mim e o Vincent permanecia impassível lá na sua moldura, olhando-me de revés. Recriminando-me, em suma.
Como já fui ao Museu Van Gogh , já vi a Starry Night no MoMA, não vou arriscar mais Van Goghs, não vá o diabo tecê-las e dar por mim abandonada num campo de trigo com corvos.
domingo, 8 de janeiro de 2006
Mixed Emotions
Quando eu era criança, o meu pai era muito rigoroso nos modos e maneiras à mesas. Não sei muito bem porque me lembro de ser ele a fazer esta admoestação. Tanto ele como a minha mãe eram pais presentes e atentos. Não sei, portanto. Rezam as crónicas que eu até era uma rapariga calma, de não engendrar grandes disparates, comer sossegada à mesa sem fazer porcarias nem envergonhar o meu pai e a minha mãe. Conta-se também, conta-me a minha mãe, que gostei de comida de adulto muito cedo. Para mim tem toda a lógica e explica perfeitamente porque odeio mixórdias repassadas tipo açorda, como explica, de resto, esta minha paixão pelo mais simples prato da gastronomia portuguesa: sardinhas assadas. E é a minha mãe quem diz que eu não teria ainda completado o meu primeiro aniversário e que do carrinho lhe pedi insistentemente sardinha assada na extinta Feira Popular, no tempo em que as crianças podiam apanhar micróbios, poeiras e fumos sem contraírem viroses ou qualquer outra coisa acabada em -ose.
A primeira vez que fui ao teatro foi no extinto Monumental, a primeira vez que pedi sardinha assada foi na extinta Feira Popular, a primeira vez que fui ao cinema foi no extinto Éden e nem a Maternidade onde nasci existe mais. E agora ia mesmo contar qualquer outra coisa mas o texto fugiu-me para estas reminiscências de locais desaparecidos pela voracidade da contemporaneidade falsa, lembrei-me da casa onde morreu Almeida Garrett e deu-me nostalgia do que já não há, regozijo pela memória que me ficou, enquanto ouço Mick Jagger em surdinaYou´re not the only one with mixed emotions...
A primeira vez que fui ao teatro foi no extinto Monumental, a primeira vez que pedi sardinha assada foi na extinta Feira Popular, a primeira vez que fui ao cinema foi no extinto Éden e nem a Maternidade onde nasci existe mais. E agora ia mesmo contar qualquer outra coisa mas o texto fugiu-me para estas reminiscências de locais desaparecidos pela voracidade da contemporaneidade falsa, lembrei-me da casa onde morreu Almeida Garrett e deu-me nostalgia do que já não há, regozijo pela memória que me ficou, enquanto ouço Mick Jagger em surdinaYou´re not the only one with mixed emotions...
sábado, 7 de janeiro de 2006
sexta-feira, 6 de janeiro de 2006
Reencontro
Assim que decidi regressar a Munique e desta feita para ver e olhar o que não se consegue quando se vai em trabalho, decidi que havia de os lá levar. Na verdade, aquele sítio está carregado de significado para mim. Tinha uns quinze ou dezasseis anos a primeira vez que fui a Munique e à Alemanha, de resto. Aos olhos de uma adolescente portuguesa no início dos anos oitenta, a Alemanha apresentava-se como o paradigma da arrumação e da limpeza, da organização e do desenvolvimento. Lembro-me de que quando regressei a Portugal, um mês mais tarde, achei o meu país sujo e pobre, nos confins do quadragésimo mundo.
Dessa feita éramos uns vinte jovens rondando sensivelmente a mesma idade e oriundos de todos os pontos de Portugal. A viagem era um prémio aos alunos de alemão e incluía, além da estadia em casa de família e um pequeno curso de Alemão, um périplo pelas cidades emblemáticas do país germânico. Começámos por Bona, na altura a capital, seguindo para Hanover, Berlim e em Munique daríamos por encerrada a viagem. Agradeço ainda hoje a possibilidade de ter visto Berlim ainda dividida pelo Muro, não que fosse algo muito belo de se ver, mas valeu pela lição de história que retenho até hoje e espero até sempre.
A bracarense, chamemos-lhe assim, tinha por hábito pôr o dedo em tudo o que era objecto pertença de alguém famoso. Em Bona, quando visitámos a casa de Beethoven, abeirou-se de mim e confessou-me estar até emocionada por ter tocado no piano do famoso compositor, à socapa, claro, enquanto a guia dava uma prelecção qualquer sobre a vida de uns dos Ludwig mais famosos do mundo germanófono. Lembro-me como se fosse agora. Ela era magra, não muito alta e usava óculos. Assim andámos pelo resto da viagem e sempre que possível, especialmente a bracarense, toca de pôr o dedo, admito, mais ela do que eu. À falta de objectos para serem premiados com a sua impressão digital, de Dachau resolveu recolher um calhau do meio do caminho, calhau esse com história, não duvido, mas uma vez em casa mais não seria do que exactamente uma pedra.
Ainda em Munique e na Neue Pinakothek fiquei absolutamente rendida aos girassóis de Van Gogh. Nessa altura o pintor mais não seria do que um nome. Quando, de repente, do alto dos meus quinze ou dezasseis anos, me vi frente a frente com os girassóis, fiquei extasiada com a cor e a vibração imanente do quadro. Não só a cor e o movimento me deixaram arrebatada. A textura do óleo na tela, as pinceladas tão notórias e perceptíveis, espessas e intensas, convidavam-me incessantemente e, sem sequer pensar nem ouvir as recomendações da infância Não mexas!, passei o indicador direito suave e rapidamente sobre os girassóis áureos e, mal acabara de retirar o dedo, numa mera fracção de segundos, soou o alarme estridente e implacável. Eu sei o que foi, quase todos souberam o que foi, mas felizmente nem todos souberam o que tinha sido e o episódio acabou por ficar por ali. Uma vez em casa, contei sem pudor a história. O meu pai riu-se a perder, sem sequer me ter feito a menor das admoestações. De vez em quando relembrava-se pois, como a outra que foi lá pôr o dedo…, quando vinham a propósito gaffes e outras faltas. A história passou a fazer parte do nosso património afectivo de memórias.
Cerca de vinte e cinco anos depois, regressei ao lugar do crime. A minha mãe e o H. foram literalmente obrigados a conhecer, ao vivo e a cores, o local do delito e do meu primeiro desencontro com Van Gogh. Finalmente podia partilhar in loco esse incidente da minha puerilidade juvenil.
Dessa feita éramos uns vinte jovens rondando sensivelmente a mesma idade e oriundos de todos os pontos de Portugal. A viagem era um prémio aos alunos de alemão e incluía, além da estadia em casa de família e um pequeno curso de Alemão, um périplo pelas cidades emblemáticas do país germânico. Começámos por Bona, na altura a capital, seguindo para Hanover, Berlim e em Munique daríamos por encerrada a viagem. Agradeço ainda hoje a possibilidade de ter visto Berlim ainda dividida pelo Muro, não que fosse algo muito belo de se ver, mas valeu pela lição de história que retenho até hoje e espero até sempre.
A bracarense, chamemos-lhe assim, tinha por hábito pôr o dedo em tudo o que era objecto pertença de alguém famoso. Em Bona, quando visitámos a casa de Beethoven, abeirou-se de mim e confessou-me estar até emocionada por ter tocado no piano do famoso compositor, à socapa, claro, enquanto a guia dava uma prelecção qualquer sobre a vida de uns dos Ludwig mais famosos do mundo germanófono. Lembro-me como se fosse agora. Ela era magra, não muito alta e usava óculos. Assim andámos pelo resto da viagem e sempre que possível, especialmente a bracarense, toca de pôr o dedo, admito, mais ela do que eu. À falta de objectos para serem premiados com a sua impressão digital, de Dachau resolveu recolher um calhau do meio do caminho, calhau esse com história, não duvido, mas uma vez em casa mais não seria do que exactamente uma pedra.
Ainda em Munique e na Neue Pinakothek fiquei absolutamente rendida aos girassóis de Van Gogh. Nessa altura o pintor mais não seria do que um nome. Quando, de repente, do alto dos meus quinze ou dezasseis anos, me vi frente a frente com os girassóis, fiquei extasiada com a cor e a vibração imanente do quadro. Não só a cor e o movimento me deixaram arrebatada. A textura do óleo na tela, as pinceladas tão notórias e perceptíveis, espessas e intensas, convidavam-me incessantemente e, sem sequer pensar nem ouvir as recomendações da infância Não mexas!, passei o indicador direito suave e rapidamente sobre os girassóis áureos e, mal acabara de retirar o dedo, numa mera fracção de segundos, soou o alarme estridente e implacável. Eu sei o que foi, quase todos souberam o que foi, mas felizmente nem todos souberam o que tinha sido e o episódio acabou por ficar por ali. Uma vez em casa, contei sem pudor a história. O meu pai riu-se a perder, sem sequer me ter feito a menor das admoestações. De vez em quando relembrava-se pois, como a outra que foi lá pôr o dedo…, quando vinham a propósito gaffes e outras faltas. A história passou a fazer parte do nosso património afectivo de memórias.
Cerca de vinte e cinco anos depois, regressei ao lugar do crime. A minha mãe e o H. foram literalmente obrigados a conhecer, ao vivo e a cores, o local do delito e do meu primeiro desencontro com Van Gogh. Finalmente podia partilhar in loco esse incidente da minha puerilidade juvenil.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2006
quarta-feira, 4 de janeiro de 2006
terça-feira, 3 de janeiro de 2006
Momentos luminosos
A C. sentou-se mesmo à frente como sempre faz, do lado esquerdo junto à janela. Chegou já o ano lectivo tinha começado e insistiu veementemente em incluir o Alemão no seu currículo, embora nunca tenha tido a língua na sua terra natal. A espaços, trocamos impressões sobre o dia-a-dia cá neste cantinho. Pergunto-lhe como vão as coisas quase todos os dias. Diz-me que gosta de aqui estar e que não quer voltar para o seu país natal. Tem feito progressos notáveis no desempenho do português, embora maioritariamente falemos em inglês e me socorra também do inglês para lhe explicar expressões em português ou em alemão, língua em que continua com dificuldades. Tem uma voz doce e modos delicados, um rosto redondo e traz muitas vezes consigo a alegria da descoberta e a frescura da adolescência. Lamento que a integração não se tenha dado ainda na sua plenitude, mas gosto de a ter connosco naquele grupinho de alunas que muitas vezes me distrai nos dias negros e discretamente me vai apoiando, aqui e ali, sem grandes conversas. A saudade do meu pai é algo que lhes mantenho distante por motivos óbvios, éticos e outros, também primeiro por achar que a vida privada dos professores assim deve ficar e que a vida da professora, neste caso, é absolutamente irrelevante, desnecessária e supérflua ao contexto de sala de aula, segundo, por estar certa de que se devem manter longe desta mágoa e continuar a viver a sua vida familiar sem o espectro da morte a rondar-lhes os sonhos, caso algum dia o assunto surgisse no horizonte. Apesar de tudo isso, a partida do meu pai não lhes é desconhecida.
Hoje enquanto dava os bons dias, arrumava a tralha, abria os livros e escrevia o sumário no livro de ponto, a C. perguntou-me em inglês, baixinho, vindo do nada, Teacher, are you sad? Fui apanhada de surpresa e não tendo como princípio mentir aos meus alunos, confirmei-lhe que sim, questionando-a de seguida como sabia ela tal coisa. Respondeu-me de novo em inglês que era muito sensible, expliquei-lhe que era talvez sensitive, ela concordou e reiterou que por isso se apercebia de quando as pessoas tinham consigo a tristeza. Iniciámos a aula, com a ligeireza habitual, não obstante, e noventa minutos depois, ao sair a C. chegou-se perto de mim e disse baixinho Don´t be sad, setorinha! e debandou com o seu sorriso, despedindo-se até à próxima aula.
Mesmo escarnecidos pela opinião pública, mal tratados por governos e políticos, desacreditados e ofendidos pelos pais, continuo feliz por ter escolhido ser professora, opção à qual os meus pais não são alheios, e por sentir que nesta profissão a satisfação tem mais a ver com momentos de pura ternura como este do que a quantidade de euros depositada na conta bancária cada final de mês.
Hoje enquanto dava os bons dias, arrumava a tralha, abria os livros e escrevia o sumário no livro de ponto, a C. perguntou-me em inglês, baixinho, vindo do nada, Teacher, are you sad? Fui apanhada de surpresa e não tendo como princípio mentir aos meus alunos, confirmei-lhe que sim, questionando-a de seguida como sabia ela tal coisa. Respondeu-me de novo em inglês que era muito sensible, expliquei-lhe que era talvez sensitive, ela concordou e reiterou que por isso se apercebia de quando as pessoas tinham consigo a tristeza. Iniciámos a aula, com a ligeireza habitual, não obstante, e noventa minutos depois, ao sair a C. chegou-se perto de mim e disse baixinho Don´t be sad, setorinha! e debandou com o seu sorriso, despedindo-se até à próxima aula.
Mesmo escarnecidos pela opinião pública, mal tratados por governos e políticos, desacreditados e ofendidos pelos pais, continuo feliz por ter escolhido ser professora, opção à qual os meus pais não são alheios, e por sentir que nesta profissão a satisfação tem mais a ver com momentos de pura ternura como este do que a quantidade de euros depositada na conta bancária cada final de mês.
segunda-feira, 2 de janeiro de 2006
Efemérides
Maldito hábito, esse que me reside no existir de fixar datas, datas, datas sem fim, datas disto, datas daquilo e não conseguir passear-me por elas incólume e leviana apenas como uma brisa afaga os canaviais que vejo da janela que, uma vez ondulados pela aragem, regressam ao que antes eram, sem mácula nem lágrima e os melros retornam também indiferentes, esvoaçando indeléveis de cana em cana. E assim será, portanto, que sempre que o calendário marcar o segundo dia de um qualquer mês, mais uma vez recordarei aquela tarde soalheira de Setembro em que tudo ficou como agora está, doloroso e sombrio, hoje igual a ontem, ontem igual a anteontem, Janeiro igual a Dezembro, Dezembro igual a Novembro, Novembro igual a Outubro, Outubro igual a Setembro.
domingo, 1 de janeiro de 2006
O Ano Passado
O ano passado não passou,
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.
As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.
Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.
E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.
Carlos Drummond de Andrade
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.
As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.
Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.
E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.
Carlos Drummond de Andrade
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