Assim que decidi regressar a Munique e desta feita para ver e olhar o que não se consegue quando se vai em trabalho, decidi que havia de os lá levar. Na verdade, aquele sítio está carregado de significado para mim. Tinha uns quinze ou dezasseis anos a primeira vez que fui a Munique e à Alemanha, de resto. Aos olhos de uma adolescente portuguesa no início dos anos oitenta, a Alemanha apresentava-se como o paradigma da arrumação e da limpeza, da organização e do desenvolvimento. Lembro-me de que quando regressei a Portugal, um mês mais tarde, achei o meu país sujo e pobre, nos confins do quadragésimo mundo.
Dessa feita éramos uns vinte jovens rondando sensivelmente a mesma idade e oriundos de todos os pontos de Portugal. A viagem era um prémio aos alunos de alemão e incluía, além da estadia em casa de família e um pequeno curso de Alemão, um périplo pelas cidades emblemáticas do país germânico. Começámos por Bona, na altura a capital, seguindo para Hanover, Berlim e em Munique daríamos por encerrada a viagem. Agradeço ainda hoje a possibilidade de ter visto Berlim ainda dividida pelo Muro, não que fosse algo muito belo de se ver, mas valeu pela lição de história que retenho até hoje e espero até sempre.
A bracarense, chamemos-lhe assim, tinha por hábito pôr o dedo em tudo o que era objecto pertença de alguém famoso. Em Bona, quando visitámos a casa de Beethoven, abeirou-se de mim e confessou-me estar até emocionada por ter tocado no piano do famoso compositor, à socapa, claro, enquanto a guia dava uma prelecção qualquer sobre a vida de uns dos Ludwig mais famosos do mundo germanófono. Lembro-me como se fosse agora. Ela era magra, não muito alta e usava óculos. Assim andámos pelo resto da viagem e sempre que possível, especialmente a bracarense, toca de pôr o dedo, admito, mais ela do que eu. À falta de objectos para serem premiados com a sua impressão digital, de Dachau resolveu recolher um calhau do meio do caminho, calhau esse com história, não duvido, mas uma vez em casa mais não seria do que exactamente uma pedra.
Ainda em Munique e na Neue Pinakothek fiquei absolutamente rendida aos girassóis de Van Gogh. Nessa altura o pintor mais não seria do que um nome. Quando, de repente, do alto dos meus quinze ou dezasseis anos, me vi frente a frente com os girassóis, fiquei extasiada com a cor e a vibração imanente do quadro. Não só a cor e o movimento me deixaram arrebatada. A textura do óleo na tela, as pinceladas tão notórias e perceptíveis, espessas e intensas, convidavam-me incessantemente e, sem sequer pensar nem ouvir as recomendações da infância Não mexas!, passei o indicador direito suave e rapidamente sobre os girassóis áureos e, mal acabara de retirar o dedo, numa mera fracção de segundos, soou o alarme estridente e implacável. Eu sei o que foi, quase todos souberam o que foi, mas felizmente nem todos souberam o que tinha sido e o episódio acabou por ficar por ali. Uma vez em casa, contei sem pudor a história. O meu pai riu-se a perder, sem sequer me ter feito a menor das admoestações. De vez em quando relembrava-se pois, como a outra que foi lá pôr o dedo…, quando vinham a propósito gaffes e outras faltas. A história passou a fazer parte do nosso património afectivo de memórias.
Cerca de vinte e cinco anos depois, regressei ao lugar do crime. A minha mãe e o H. foram literalmente obrigados a conhecer, ao vivo e a cores, o local do delito e do meu primeiro desencontro com Van Gogh. Finalmente podia partilhar in loco esse incidente da minha puerilidade juvenil.
Dessa feita éramos uns vinte jovens rondando sensivelmente a mesma idade e oriundos de todos os pontos de Portugal. A viagem era um prémio aos alunos de alemão e incluía, além da estadia em casa de família e um pequeno curso de Alemão, um périplo pelas cidades emblemáticas do país germânico. Começámos por Bona, na altura a capital, seguindo para Hanover, Berlim e em Munique daríamos por encerrada a viagem. Agradeço ainda hoje a possibilidade de ter visto Berlim ainda dividida pelo Muro, não que fosse algo muito belo de se ver, mas valeu pela lição de história que retenho até hoje e espero até sempre.
A bracarense, chamemos-lhe assim, tinha por hábito pôr o dedo em tudo o que era objecto pertença de alguém famoso. Em Bona, quando visitámos a casa de Beethoven, abeirou-se de mim e confessou-me estar até emocionada por ter tocado no piano do famoso compositor, à socapa, claro, enquanto a guia dava uma prelecção qualquer sobre a vida de uns dos Ludwig mais famosos do mundo germanófono. Lembro-me como se fosse agora. Ela era magra, não muito alta e usava óculos. Assim andámos pelo resto da viagem e sempre que possível, especialmente a bracarense, toca de pôr o dedo, admito, mais ela do que eu. À falta de objectos para serem premiados com a sua impressão digital, de Dachau resolveu recolher um calhau do meio do caminho, calhau esse com história, não duvido, mas uma vez em casa mais não seria do que exactamente uma pedra.
Ainda em Munique e na Neue Pinakothek fiquei absolutamente rendida aos girassóis de Van Gogh. Nessa altura o pintor mais não seria do que um nome. Quando, de repente, do alto dos meus quinze ou dezasseis anos, me vi frente a frente com os girassóis, fiquei extasiada com a cor e a vibração imanente do quadro. Não só a cor e o movimento me deixaram arrebatada. A textura do óleo na tela, as pinceladas tão notórias e perceptíveis, espessas e intensas, convidavam-me incessantemente e, sem sequer pensar nem ouvir as recomendações da infância Não mexas!, passei o indicador direito suave e rapidamente sobre os girassóis áureos e, mal acabara de retirar o dedo, numa mera fracção de segundos, soou o alarme estridente e implacável. Eu sei o que foi, quase todos souberam o que foi, mas felizmente nem todos souberam o que tinha sido e o episódio acabou por ficar por ali. Uma vez em casa, contei sem pudor a história. O meu pai riu-se a perder, sem sequer me ter feito a menor das admoestações. De vez em quando relembrava-se pois, como a outra que foi lá pôr o dedo…, quando vinham a propósito gaffes e outras faltas. A história passou a fazer parte do nosso património afectivo de memórias.
Cerca de vinte e cinco anos depois, regressei ao lugar do crime. A minha mãe e o H. foram literalmente obrigados a conhecer, ao vivo e a cores, o local do delito e do meu primeiro desencontro com Van Gogh. Finalmente podia partilhar in loco esse incidente da minha puerilidade juvenil.
História deliciosa! E que coragem, passar o dedo nos girassóis de Van Gogh!... A sensação deve ter sido inesquecível! **
ResponderEliminar;o)
ResponderEliminarA tua vida é feita de aventuras deliciosas...
(e baixinho confesso que não gosto nada do quadro...)
lol. Este texto acabava Há oportunidades que não se devm perder, portanto. Agora estão protegidos com um vidro. Coitaditos, éramos uns simples miúdos da província, mesmo sendo de Lisboa ou do Porto.
ResponderEliminarMas esta não é a única história com o Van Gogh... acho que ele me enfeitiça ;-)
Pois, eu bem digo que a minha vida dava um filme, mas ninguém me quer comprar o guião ;-)
ResponderEliminarMas são tão lindos os girassóis! Adoro o quadro e a flor em si.
Eu gosto mais da flor que do quadro, a bem da verdade. Apesar de lindo, não tem a vida de um campo de girassóis...
ResponderEliminarClaro que não. Foi uma das coisas que me encantou em Amesterdão, os molhos de girassóis nas bancas de flores. Que saudades!
ResponderEliminarPois eu gosto tanto do quadro como da história...e também teria passado o dedo nesse pedaço de história;))
ResponderEliminarBeijocas
Há quadros do Van Gogh que têm um fascínio intenso sobre mim. Ainda tenho outra história parecida, mas dessa vez não fui lá pôr o dedo ;-)
ResponderEliminarHmmm... Com tanta história, achas que o Museu Van Gogh tem uma fotografia tua, nos ficheiros? A dizer: Dangerous - painting molester!;)
ResponderEliminarlol
ResponderEliminarEu logo já conto a outra história, mas desconfio bem que sim ;-)
Ah, München München... por acaso nunca foi a cidade que mais me fascinou, talvez por ser relembrada como um ponto de passagem: Flughafen/Bahnhof/Flughafen
ResponderEliminarVisitei pouco da cidade, mas fui à Alte Pinakothek com uns belgas e franceses, um dos quais me perguntou "onde estão os quadros de pintores portugueses?" Fiquei sem saber que lhe responder... mas pronto, andavam os belgas lá pelas pinturas, enquanto nós descobriamos o mundo. Prefiro a nossa sorte! :)
Eu gosto de Munique. É uma cidade pequena, acolhedora e típica. No Natal é muito gira, tem um ambiente muito próprio. Desta vez ainda quis ir à Pinakothek der Moderna mas ficámo-nos só pela Neue.
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