pra esse lugar, baby
pra outro qualquer lugar ao Sol
outro lugar ao Sul*
*inspiração no Vamos Fugir de Gilberto Gil
Mesmo sem Primavera à vista, apenas o céu cinzento, começo hoje a ter a sensação de dever cumprido. Começará dentro de uma hora o meu último dia de aulas do segundo período e embora tenha sempre, e sempre tenha tido, a sensação de que mais e melhor se pode fazer quando se é professor, tenho desta vez uma discreta satisfação por, apesar das vicissitudes, ter conseguido chegar até aqui com todos os cansaços do mundo, angústias e mágoas e não me ter deixado derrotar. Estou certa de que lá onde estará o meu querido pai ficará também satisfeito com a sua filhota. Dou graças portanto a esta força que me veio não sei de onde mas que se alicerça na ajuda inestimável da minha querida mãe, do meu mais-que-tudo, da minha querida D. e de todos os colegas e amigos que se chegaram a mim e mesmo sem palavras me emprestaram a sua solidariedade e carinho e a todos vós que me leram ao longo destes meses e que de igual forma me deram alento para que a vida me voltasse a sorrir.
O escritor é um ser que deve estar aberto a viajar por outras experiências, outras culturas, outras vidas. Deve estar disponível para se negar a si mesmo. Porque só assim ele viaja entre identidades. E é isso que um escritor é — um viajante de identidades, um contrabandista de almas. Não há escritor que não partilhe dessa condição: uma criatura de fronteira, alguém que vive junto à janela, essa janela que se abre para os territórios da interioridade.
num encontro Bookcrossing organizado por mim com o apoio do meu mais-que-tudo num longínquo e tórrido dia de Setembro, esteve hoje na rádio com o seu blogue.
Foto: Rio de Janeiro, Março 2005
Na verdade, a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam. É uma outra janela que se abre para estrearmos outro olhar sobre as coisas e as criaturas. Sem a arrogância de as tentarmos entender. Apenas com a ilusória tentativa de nos tornarmos irmãos do universo.
o teu sono anoiteceu mais que a noite
Os alemães dizem "aller Anfang ist schwer" que é como quem diz, todos os começos são difíceis ou no princípio é sempre difícil. Nada mais certo e mais penoso. Os inícios são travessias dolorosas do presente, uma ponte alicerçada na margem do passado sobre a qual se caminha lentamente rumo à margem do futuro, do outro lado da ponte. No começo desta minha vida nova todos os dias são alvoradas de habituação à ausência, de certificação da saudade, todos os dias me levam a dias novos em que chega essa altura que desejámos antes que não chegasse nunca e, por isso, quando hoje fui à florista encomendar flores para o meu querido pai senti o corpo fora de mim a pedir as flores e um estranhamento inominável pelo gesto, pelas palavras, pelas flores, descrendo ainda no que se já sabe e que vai descendo devagar por mim nesta travessia rumo não sei onde.
Um dia destes dei comigo passeando sem destino específico ou objectivo concreto no corredor de casa dos meus pais. Não gosto particularmente de corredores nas casas, não servem objectivo algum, apenas o de nos levar para outras divisões da casa como se fossem caminhos. São apenas estações intermédias que adiam a intimidade familiar. Na casa dos meus avós paternos havia e ainda há um corredor imenso, largo e comprido, onde eu e os meus primos brincávamos de quando em quando. Nunca foi sítio onde me sentisse confortável. O tecto era alto a largura imensa e a completar tudo isto havia também por lá pendurado um quadro sinistro de uma santa com os olhos numa bandeja que segurava nas mãos. Ainda hoje, caso me cruzasse com o dito quadro, estou certa de que me não seria indiferente. Talvez o ar sereno mas ascético, a Santa Luzia com a compostura dos santos e a resignação dos sagrados, indiferente e plácida, com os olhos a boiar na bandeja.
A saudade é uma visita intrometida que chega sem avisar, sem tão pouco se anunciar, apenas um toque na campainha e a entrada de rompante pelo hall da nossa vida, pelo corredor da nossa existência, pela sala do nosso coração Olá! Vim cá passar uns tempos. Instala-se sem pedir licença, sem cortesia ou cerimónia, abandonando-se no sofá de pés descalços, com os dedos abanicando um a um, as pernas estendidas sobre a mesinha de apoio em frente da televisão, de comando na mão, fazendo zapping furioso à nossa vida passada que vemos então correr em séries no pequeno ecrã à nossa frente, sem podermos sequer mudar de canal, apagar os episódios e prosseguir com o que resta e nós ali a olhá-la e ela a acomodar-se Que bem estou aqui! dando um suspiro fundo, ajeitando-se mais uma vez, sem data de partida, impondo a sua presença sem qualquer delicadeza e, quando damos por ela, sentou-se à nossa mesa, estendeu-se pela casa e percorre-a familiarmente descalça como se não existíssemos, como se nada mais pudéssemos ser do que ela própria e mais não pudéssemos respirar e mais espaço não houvesse do que o halo cortante que espalha pelo ar à sua passagem.
imagem: Edvard Munch, O Grito
E porque hoje é dia da Mulher lembrei-me deste texto muito prosaico, apenas mais um do baú:
A D. é das pessoas mais generosas que conheço. Na verdade, como outros amigos dos meus pais e meus, não por afinidade mas por coração, lembro-me dela desde sempre e lembro-me dela sempre da mesma maneira, sempre pronta a ajudar, sem falsas subserviências ou palavras tantas vezes vãs os amigos são para ocasiões. Para a minha querida D., os amigos são para sempre. Não pergunta se queremos ajuda, ajuda, não pergunta se quer que façamos algo, faz. Esteve ao lado da minha querida mãe durante os últimos momentos lúcidos do meu pai, ajudou-a abnegadamente, ajudou-o no seu último caminho. Quando um dia, já longínquo, o meu pai precisou de sangue, ela respondeu que estaria pronta a doá-lo não escondendo nunca que tinha um medo horrível de agulhas. Sempre tomei esse gesto como nobre e generoso. Não se rodeou de silêncios, como outros, de evasivas por esta ou por outra razão. Prontificou-se de imediato, admitindo o seu medo mas colocando-o, sem sequer pensar, em segundo plano. Este será provavelmente dos textos mais difíceis que algum dia escrevi. Não sei como a descrever e jamais terei palavras, actos mesmo, que agradeçam tamanha generosidade e grandeza de alma.
E hoje que seis meses passam, continuo a achar que te vou encontrar no sofá, ainda hesito quando pergunto à mamã como está, o plural ameaça-me quase diariamente, continuo a pensar que vais surgir de um qualquer canto, que foste ali à loja e já voltas, continuo a ter o impulso de perguntar E o Papá? quando chego a casa, continuo a lembrar-me de ti ao cheiro da carne seca a espraiar-se pelo corredor e o coração parece ter um garrote que me tolda o falar, o pensar. O sentir oscila-me na presença da tua ausência. Hoje que passam seis meses continuamos unidos a perpetuar a tua memória, a celebrar quase diariamente a tua passagem pela vida e a lutar com a mágoa que nos puxa pelos pés e nos rouba a luz e a tentar andar, devagar, para quem sabe um dia sorrir.