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sábado, 31 de dezembro de 2005

Feliz Ano Novo

Antes que o ano acabe, queria deixar aqui um enorme beijo e abraço a todos vós que me viram chorar, rir ou apenas reflectir e pensar através da janela entreaberta, aberta ou escancarada deste blogue. Um enorme beijo e abraço também a quem me acompanhou de longe ou de perto neste momento trágico da minha existência e que acabou por marcar irremediavelmente 2005, apagando todos os momentos bons que antecederam o adeus do meu querido pai. Que o 2006 seja luminoso e vos traga o que desejam do coração.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

O meu pai

Anteontem, quando passeava os olhos pelos expositores de livros, saltou-me um livro de entre os demais e à noite quando estava sentada à lareira, o mesmo livro espreitou-me. Era o ultiminho da pilha de livros. Era mesmo o que estava a sustentar todos os outros. Veio parar cá a casa por acaso e ali ficou. Tinha-me esquecido da sua existência, mas lembro-me do que o H. me disse quando o juntou aos demais. Ontem dei com ele de novo. Não sei se hei-de acreditar em coincidências ou não. A tudo isto não será alheia a época festiva do ano e de, em sua consequência, saírem à rua todos os livros, peças de teatro e filmes alusivos à época e mais dirigidos para um público infantil.
Não me lembro se terá sido num Natal que o meu pai me levou ao teatro, recordo-me apenas que o fez e lembro-me claramente da peça, o Pinóquio. Melhor me lembro de quando deixei a sua mão ou o deixei sentado na cadeira do também desaparecido Monumental para ir ao palco receber rebuçados dos actores com todas as outras crianças do teatro. Sei que estava escuro, por isso acredito ter sido na altura em que o filho de Gepeto tinha sido engolido pela baleia. Havia cor e magia no ar.
O meu pai levou-me ao teatro pela primeira vez, levou-me ao cinema, com ele vi, pela primeira vez, Música no Coração, levou-me ao circo no Coliseu, leu-me os livros de quadrinhos trazidos pela Titia do outro lado do Atlântico, mostrou-me mais livros e o seu valor, encapou-mos antes de ir para a escola, estava lá quando chumbei no exame de código, esteve presente enquanto eu, aflita e nervosa, defendia a tese de Mestrado, expondo-me aos olhos de todos os que quiseram ver, levou-me ao altar, pelo seu braço entrei na Basílica e de braço dado, lado a lado, encaminhou-me à nova etapa de vida que me esperava lá ao fundinho, garboso e orgulhoso da sua filhota, viu-me ser distinguida com uma menção honrosa de um prémio literário, pouco importa se também esse livro passou ao limbo, esteve sempre presente em tantos e tão plenos momentos da minha vida, em muitos outros, tranquilos ou turbulentos, instantes do quotidiano, que quando ouço as notícias de abandono dos pais surge em mim uma angustiante vontade de chorar, não por mim, mas por quem não tem a presença de pai e, por isso, um dia não terá memórias doces e carinhosas de um verdadeiro pai, presente, carinhoso, terno, afectuoso e atento. Bem-hajas, meu querido pai, por o teres sido verdadeiramente.

Ironias

Este ano
trouxe
a concretização do meu sonho
e
a realização do meu pesadelo.


Nada tenho a desejar para o próximo.
Os sonhos podem esperar quando os pesadelos chegam.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2005

Metamorfoses das Palavras

A palavra nasceu:
nos lábios cintila.

Carícia ou aroma
mal poisa nos dedos.

De ramo em ramo voa,
na luz se derrama.

A morte não existe:
tudo é canto ou chama.


Eugénio de Andrade

quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Ai Portugal, Portugal

Hoje, pela hora do almoço, chegou a belíssima notícia de que os funcionários públicos, nos quais me incluo, irão ser aumentados 1,5%. Não chegava já a pedofilia e maus-tratos arrepiantes entrarem-nos pelos olhos dentro, ainda mais arrepiantes e hediondos por serem perpetrados pelos guardiães das crianças, Fátima Felgueiras ter regressado em glória, a demolição do património cultural do país, as contas públicas resvalarem escandalosamente, Soares ter-se candidatado à Presidência e ter referido, entre outros disparates, que a sua próstata se encontra de saúde, Cavaco Silva estar prestes a ser eleito o Presidente deste canto à beira-mar e esquecer-se que deixou de ser primeiro-ministro há muito, graças aos deuses, para agora o governo abrilhantado pelo seu socrático primeiro-ministro brindar o funcionalismo público com este mísero aumento.
Isto começou ontem quando, ao registar um livro numa repartição estatal, me deparei que de um euro e não-sei-quantos cêntimos, os emolumentos tinham passado nada mais, nada menos, para vinte e cinco euro. E depois afixada na dita repartição estava o despacho que nos preâmbulos justificativos anunciava ter sido urgente proceder a uma actualização e que esta tinha sido feita de acordo com a inflação. Pois muito bem, Sr. Dr. Santana Lopes e demais compadres doutores e doutoras, autores do referido aumento, permitido e secundado pelo voto do povo português. O empregado sorriu perante a minha admiração e não estivesse ali pespegada com dois exemplares dessa coisa chamada livro e com a senha para atendimento já nas minhas mãos, ter-me-ia vindo embora. O empregado entreteve-me com conversa agradável. Dada a sua boa disposição, acredito que nem sonharia que hoje seria premiado com este generoso aumento, a menos que sofra de optimismo patológico. Não creio.
Vim-me embora refilando Calçada da Glória abaixo dessa Lisboa de que tanto gosto, capital deste país que tanto me desilude, não apenas pelos 1,5% de aumento, não só pelos vinte e cinco euro do registo das folhas de papel sentidas e escritas, mas por este atalho que estamos a tomar para nos perdermos no labirinto do compadrio e subdesenvolvimento e por se ter ainda descoberto que na intimidade do lar, onde julgo as crianças protegidas e amadas, existem pais que maltratam, violam e assassinam barbaramente os seus próprios filhos.
Obviamente que me lembro do meu pai. O aumento seria apenas a gota de água a transbordar no copo das sucessivas desilusões com a pátria de Camões, madrasta de muitos de nós. Soubera ele de tal e estaria a bradar há já algum tempo. Primeiro por causa do Soares, depois por causa do Cavaco e agora por causa do Sócrates e isto para não falar do escândalo Casa Pia... Caramba! Até é imoral! Não têm vergonha… 1,5%?! Mais valia não aumentarem nada… terá já proferido inúmeras vezes e para rematar, decepcionado e revoltado como sempre pelo rumo deste país dos pequeninos, terá pela enésima vez repetido Foi para isto que se fez uma revolução? Pois, meu querido pai, pelos vistos foi.

terça-feira, 27 de dezembro de 2005

Mudez

Acho uma certa piada, sinto um misto de desconfiança e admiração pelas pessoas que dizem que quando querem, escrevem sempre alguma coisa. Pois eu ando por aqui há dois dias a pensar, a dar a volta à cabeça, afagando o teclado e fazendo olhinhos ao monitor e nada, rigorosamente nada. Nem uma palavrinha, uma frase completa ou uma ideia de jeito. Ontem deitei-me também com o Bernardo Soares, além do H., para ver se me inspirava, descubro entretanto que António Lobo Antunes escreveu a letra da coladera cantada pelo Tito Paris Criolo ca tem patron, dei umas voltas na poesia do Alberto Caeiro, espreitei Vinícius de Moraes, mas palavras e textos rigorosamente nada. Continuava muda. Julgo que esta mudez de escrita terá a ver com o meu Natal: diferente, tranquilo e silenciosamente triste sem que nenhum de nós em momento algum deixasse que essa melancolia ensombrasse a noite e a data. Houve presentes, doces e fritas e da ausência física do meu pai criámos um elo forte indivisível, uma aura intransponível de cumplicidade e intimidade, lutando permanentemente contra esta falta tão funda em nós.

sábado, 24 de dezembro de 2005

Peru de Natal

Faz hoje uns anos largos estava chuva e frio e vento. Por aqui batia aquele nevoeiro fininho que se nos entranha nos ossos e a bruma típica deste pedacito de terra quase à beira-mar. Nesse mesmo dia, quando a minha mãe foi ao talho para ir buscar a encomenda do peru, feita na semana anterior, o talhante pareceu-lhe constrangido. Tinha encomendado um peru pequeno, já na altura éramos poucos, com bastante antecedência dadas as dimensões do bicho e da família e a relação entre ambas. Pois nesse belo dia, algo de inusitado se passou. O talhante permanecia e parecia semi-incomodado, na verdade, nunca foi homem de grandes sensibilidades e o lucro esteve aparentemente acima de qualquer outra preocupação. Não obstante, pairava no ar um certo desconforto. Finalmente quando a minha mãe pediu o seu peru, o homem balbuciou que algo tinha acontecido à ave, acrescentando que lhe tinham, nada mais, nada menos, cortado uma perna. O peru era pequeno, alguém tinha pedido uma perna de peru e o empregado, sem saber que aquele peru estava encomendado, sacou do facalhão e zás, mutilou-lhe sem demora a dita perna.
O talhante apesar de algo incomodado não se coibiu e sugeriu que o peru, assim perneta, fosse na mesma apresentado ao almoço de dia vinte e cinco. Melhor dizendo, dava-lhe outra perna e, tal como um cirurgião plástico, a minha mãe podia coser a perna ao restante animal e repor a ordem. A minha mãe bradou, refilou, descompôs o homem, chegou a casa alterada e furiosa. Do meu pai obteve a sempre pronta solidariedade. Onde já se viu comer um peru sem perna no dia de Natal? Sim, onde? Concordámos em uníssono, tecendo uns comentários pouco abonatórios ao talhante, que era um bruto, pois claro, e outras coisas mais que me reservo aqui não comentar. Não sei o que comemos naquele dia 25, peru perneta não foi de certeza, mas a história ficou para a posteridade. Aqui fica com votos de Feliz Natal para todos vós.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Amanhã

A voz da minha mãe estava embargada quando me ligou. Não estranhei. Hoje, quando fui comprar um último presente, dei por mim a chorar enquanto o trânsito passava e senti-me perdida entre a estrada e as lágrimas e os carros que rodavam indiferentes à água que me escorria inevitavelmente cara abaixo. Apenas os óculos de sol ajudaram a proteger-me da exposição. Tinha acabado de encontrar a mãe do R. e, de repente, pareceu-me que por mais que fugisse da morte, ela punha-se no meu caminho, à minha frente, como quem joga à apanhada. A mãe do R. confortou-me complacente atestando que este primeiro Natal é sempre o pior, recorrendo à sua trágica experiência de perder o R. com tanta vida pela frente e tão pouca atrás, mas sem nunca pronunciar o seu nome. Os olhos são velas em sintonia na cumplicidade e na dor. Tinha vinte e três anos, era jovem e sonhava com projectos imensos e belos na medida da sua idade guerreira. Atravessei a estrada, não sei ainda se consegui fintar a morte.
A minha querida mãe tinha recebido um telefonema especial de alguém muito especial e chorava não só pela tristeza da partida do meu pai mas pela comoção de esse alguém lhe ter vindo falar, consolar, ouvir e dar aquilo que sempre soubemos ter – a sua amizade – mas que com a divergência de caminhos e não de sentimentos acabou inevitavelmente por ficar mais ausente. O Z. é uma pessoa diferente, talentosa como muito poucos, inteligente e sensível, um homem de alma grande, peculiar na sua forma de ser e estar e a quem nunca tive a oportunidade de dizer isto antes. Amanhã fará anos que o Z. connosco esteve, com o meu pai também, claro, que gostava de o receber em nossa casa e oferecer-lha como se fosse sua e a quem sempre admirou pelos seus bonecos. Amanhã, enquanto consoarmos, estaremos todos juntos e à mesa seremos mais dos que os vemos.

Cogitações

Frequentemente assalta-me a ideia de que quem agora nos abandonou está a trair a memória do meu pai, na verdade a traí-lo, uma vez que julgando-os amigos partilharam connosco momentos aparentemente felizes e lhes foi permitido confraternizarem com ele e connosco, sentarem-se à mesma mesa, partilharem o calor de uma refeição e serem o alvo constante do seu esmero e preocupação. Todos esses sinto indignos do carinho e atenção que lhes prestou durante a sua estadia terrena e, quando a mágoa passar, mais não serão do que ténues pontos nas nossas memórias até se apagarem por completo. Quem seriam afinal?

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


Vinícius de Moraes

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

Conto de Natal

Esta é primeira versão de um conto que escrevi para uma oficina de escrita do conto em Abril passado. Lembrei-me deste texto pelo pressentimento nele contido. Aqui fica:

Esse tempo não chegara ainda. Ela sabia, não obstante, que ele chegaria. Se calmo ou impetuoso desconhecia porém. Sabia apenas que quando chegasse ela amaldiçoar-se-ia por um dia ter desejado que houvesse saltos no calendário e que dessa forma se excluíssem meses, festividades e celebrações que secretamente começava a odiar. Detestava obrigações.
Estava certa que nesse tal tempo vindouro três coisas lhe faltariam: o aroma da canela a espraiar-se pela casa, o sorriso complacente e carinhoso do pai, a euforia infantil e contagiante da mãe. Se mais lhe faltaria não se lhe permitia agora adivinhar. O futuro deve permanecer incerto para que o presente se torne suportável.
Enquanto esse tempo desenhado no futuro se mantinha distante, repartia os dias numa pacata existência com sobressaltos esporádicos reflexos de outros sobressaltos passados.
Apaziguava-se com a vida nos dias de sol e calor. Amargurava-se com o viver nos meses de frio e chuva. A canícula do zénite não lhe toldava o sentir, uma brisa mais áspera amarrotava-lhe por vezes o ser. O Inverno deixara há muito de ser um período de tempo balizado por dois momentos exactos no calendário do qual arrancava pequenas folhas mentalmente, apenas presas por um picotado indelével. Desejava amiúde poder arrancar, de igual forma, as memórias tortuosas do calendário da sua memória. Tal não lhe era permitido contudo. Sem memória deixamos de ser quem fomos para passar a ser quem somos, pensava, e assim deslizava por entre a invernia e o estio com o que era e o que fora.
Mal se aproximavam as primeiras chuvas e o sol se escondia abrupto e sem timidez lá ao fundo no horizonte platinado que avistava da janela da cozinha e se, no alpendre de casa, os pés lhe arrefeciam sem aviso nos chinelos veraneantes, decretava ser daí em diante Inverno.
Com o Inverno surgiam as castanhas assadas na praça da vila piscatória sovada pelo mesmo mar que lhe acenava da janela da cozinha, o chilrear dos pássaros nessa mesma praça e a bruma obstinada ora como uma cortina esvoaçante ora como uma manta opaca e pesada, suspensa meses a fio. No início do seu Inverno comprava sempre uma abóbora, e esventrando-a sobre a bancada da cozinha, reduzia-a a doce, distribuindo-o posteriormente pelos vizinhos. A linguagem dos afectos raramente se socorre de palavras.
No decorrer de todos os Invernos surgia invariavelmente com o desconforto do frio, que sem cerimónias se lhe instalava na alma, uma data incontornável no calendário cristão. Em criança agradara-lhe esta data. Havia alegria e despreocupação no ar. Os dias eram contados com esmero e ansiedade. O dia propriamente dito quando chegava era tão desejado que mal se podia fazer esperar e todos os minutos e horas pareciam eternidades. Tudo isto lugares comuns, tão comuns e banais como a própria existência. Questionava-se se, caso na sua vida não habitassem todos estes lugares comuns revestidos da menor importância para o decurso da humanidade, a própria vida teria sentido. Esperando um momento de excelência acima do comum dos mortais arriscava-se a ver a vida passar a seu lado, passear-se ali mesmo rapioqueira e displicente. Imaginava-se estática no cais de embarque e a vida sorridente acenando-lhe da janela do comboio em movimento.
No início desse mesmo Inverno decidiu que talvez pudesse ser diferente e, por assim ser, povoando-lhe a mente o sonho de que noutras paragens seria decerto diverso o sentir e fazer da tal data comemorativa, fez as malas e partiu à descoberta.
Partir era uma eterna vontade, um chamamento constante e incessante. Nesta partida estava contida a curiosidade e o desejo desse Natal que ao longo da vida lhe parecera mais autêntico, mais genuíno e espiritual, o Natal dos cânticos, das crianças vestidas a rigor de gorros e luvas, em tons de verde e vermelho com uns salpicos de dourado e uns farrapos de neve alva nos cocurutos das casas e das árvores altaneiras, não o Natal branco imortalizado pelos cantores americanos esbanjando charme e glamour, antes o Natal mais soturno e acolhedor ao jeito do Velho Continente, o Natal de Dickens decididamente, iluminado com velas e candeias seguras por pequenas mãos enluvadas contra a inclemência do Inverno, cantado um uníssono por vozes imberbes.
Quando acordou na capital britânica estava leve e renovada. Para trás, as obrigações e responsabilidades, as contas do mês e as compras do supermercado, os detergentes e branqueadores, o papel higiénico e os guardanapos. Saiu para a rua feliz e despreocupada. Consigo, além do companheiro de viagens e de vida, apenas o júbilo dos irresponsáveis.
Havia gente, gente e mais gente. Turistas de cores e linguajares diferenciados coloriam as ruas, preenchiam os mercados como um imenso pontilhado numa tela, povoavam os parques desnudados como uma pincelada mais brilhante contra o cinzento pastoso, assombravam os cantos mais recônditos da cidade, deixando-a desvelada perante os olhares perscrutadores, privada da sua própria intimidade. Uns carregavam sacos, quase todos apressados e de passo estugado, outros detinham-se em frente dos monumentos e, esboçando um sorriso ou articulando uma pose consentânea com a ocasião, deixavam-se fotografar para na posteridade recordar tais dias, talvez, se na posteridade memória deste passado existir ou exibir, num tempo mais imediato e próximo, no escritório a colegas e conhecidos como atestado da incursão à velha Albion.
A imensa mole humana avançava como uma torrente para as lojas, cuja música, entrecortada pelo o barulho persistente da máquina registadora, se esvaía no turbilhão de vendilhões. Depressa concluiu que o Natal dos livros que lera era mais belo que o que se pavoneava na sua frente e a arrastava a espaços numa enxurrada de compras, sacos e pacotes, lembranças e presentes. O aroma da canela a espraiar-se pela casa, o sorriso complacente e carinhoso do pai, a euforia infantil e contagiante da mãe surgiram-lhe na memória. Confirmou que dessas sentiria falta um dia.
E foi assim que numa encruzilhada alguém vindo não se sabe de onde os abordou. Ela olhou-o de soslaio. Era um homem magro de feições vincadas e rosto longo. Trazia no semblante um sorriso aberto e nos gestos um desembaraço gingão. Destacava-se no meio da multidão. Era alto ainda que algo curvo, carcomido pelo tempo decerto, talvez por um tempo incerto. As vestes pardacentas repeliram-na instintivamente. Ele permaneceu imperturbável, aparentando nada lhe afectar a manifesta falta de à-vontade dela. Abeirou-se afável. Ambos pararam expectantes. Ao que viria permanecia um mistério.
Ele não se mostrou minimamente incomodado perante a rigidez dos passeantes. Abeirou-se do rapaz e pediu-lhe um cigarro no seu linguajar anglófono. De seguida aconchegou-se na rapariga e quase segredando-lhe ao ouvido proferiu algo que até hoje não se deixou divulgar. Ela sorriu algo tímida, ruborizando levemente em sintonia com a cor do casaco que envergava. O rapaz a seu lado assistia complacente. Pegou então na mão enluvada da rapariga e colocou-lhe um beijo mesmo na palma da mão, fechando-a carinhosamente. Despediu-se do rapaz, agarrou-o, deu-lhe um abraço vigoroso como só os homens sabem fazer e enquanto se afastava ligeiro entre a diabólica multidão, soltou um “merry christmas”.

terça-feira, 20 de dezembro de 2005

Momentos felizes

Obrigada

Ontem quando cheguei a casa já tarde, tive a impressão que o Pai Natal tinha por cá passado. À minha porta repousavam, encostados um a ao outro, dois pacotes, duas encomendas e lá dentro presentinhos de duas amigas diferentes. Conhecia-as exactamente no mesmo sítio, neste caso um sítio virtual onde se partilham, lêem e libertam livros. E das muitas pessoas que conheci nesse sítio elas foram ficando, de resto como sempre acontece na vida: uns partem, outros ficarão sempre. A S. e a C. nem sequer se conhecem, nunca ouviram falar uma da outra e quase garantiria a pés juntos que nunca se falaram mesmo, nem sequer virtualmente. Têm em comum o facto de provarem que a não presença física não implica ausência ou abandono e que, mesmo longe, estamos por vezes mais perto do que outros que moram aqui mesmo ao virar da esquina. Nem todos, felizmente. De formas diferentes, tal como outras amigas que conheci nesse mesmo local, têm tido uma palavra amiga, um carinho, gestos que me ajudam a sorrir nesta adversidade. Obrigada, amigas!

sábado, 17 de dezembro de 2005

Confissão

A partir de hoje é oficialmente Natal cá em casa. Montámos finalmente a árvore e decorámos comedidamente o resto da casa. Sem sacríficios nem choradeiras, muito menos obrigação ou dever. Com naturalidade apenas e alguma esperada contenção. De nada adiantaria a casa permanecer desnudada, tal serviria apenas o intuito de me relembrar acusadoramente que este Natal é diferente e que, a partir deste, todos os Natais serão irremediavelmente diferentes e isso eu sei. Acredito que existe um momento especial para se fazerem certas coisas nas nossas vidas e que esse momento é quando nós o sentimos chegado e não quando nos dizem que ele chegou e eu sinto que o Natal chegou cá a casa agora.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

Boas Festas

O meu pai gostava da Lolita. Na verdade achava-lhe imensa piada.
Certo Sábado de manhã, a minha mãe ligou-me Ai, Nônô, está aqui uma gatinha tão bonita para oferecer, olha é assim... e lá me fez a descrição da bichana. Após vários desgostos com desaparecimentos de gatos machos, o Ernesto, o Fidel e o Chico, decidimos passar a ter gatas. Diz-se serem mais dóceis, mais caseiras, mais meiguinhas e que não têm um território tão grande como os machos. Portanto, estava decidido que o próximo felino, também para nos fazer esquecer o desgosto do nosso Chico Larico, um gato preto, ter apanhado boleia na carrinha azul do senhor H., numa sexta-feira 13, mesmo aqui à porta de casa e não mais ter dado às caras, seria uma bichana e visto que aquela gatinha pequenina literalmente se atirou para os braços da minha mãe, foi sem mais carinhosamente adoptada. Era mínima quando a minha mãe a passou para os meus braços, parecia uma ratita e assim que a coloquei no colo brindou-me com um ronronar sentido e feliz.
Com o passar dos dias a Lolita, assim baptizada em honra do Nabokov, da personagem e também por as fêmeas serem muito precoces na sua maturidade, revelou-se uma verdadeira pestinha, mordia-nos, arranhava aqui e ali, embora a espaços fosse dedicada e ronronante. O meu pai delirava com esta história e sempre que cá vinha sorrindo, dizia, irónico Com que então uma gatinha para ser mais dócil, mais meiguinha…Olha para ela... e amiga Lolita pinchando por cima dos sofás ou dando uma trinca a alguém. O meu pai gostava da rebeldia da amiga Lolita, que me parece até que lhe saltava para o colo quando íamos de férias, e, acima de tudo, achava muita piada à ponta do rabo da bichana, mais clara que o resto do corpo, assemelhando-se a uma luzita permanentemente acesa.
Um destes dias o H. recebeu uma carta. Vinha do veterinário e quando a abrimos encontrámos isto:

Sempre acreditei que os veterinários conseguem ser mais atenciosos do que os médicos, pelo menos, cá por casa ainda ninguém recebeu as boas festas do clínico e pondero sinceramente mudar o meu. Tenho a certeza que o meu pai iria achar um piadão aos desejos natalícios endereçados à felina e concluir que às vezes mais vale ser bicho mesmo.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

Bouquet

O anel que hoje tenho no dedo foi-me oferecido pelo meu querido pai. Um dia, não muito longe, quando cheguei lá a casa pela hora do almoço, o meu pai estava relativamente irado. Cumprimentou-me de raspão, rápido, indiciando ter algo importante a tratar. Assim era. De rajada, olhando por cima dos óculos, como lhe era tão característico, logo munido com um dos seus inúmeros auxiliares de consulta e de lápis na mão, atirou-me sem espera Olhá lá, quem é que te ensinou a escrever bouquet com um acento circunflexo? ao que repliquei que nem um boomerang EEU? Em lado nenhum. Algum dia ia eu escrever bouquet com um acento circunflexo, Papá? e o boomerang de volta Ai isso é que escreveste!!! Está aqui no teu livro e mais uma volta do boomerang Ai está? Está onde? e ele de volta Está aqui algures… Vou procurar e eu já irritada Pois procura à tua vontade. Podes procurar o livro inteirinho! e debandei para a cozinha, após este acepipe linguístico, para cumprimentar a minha mãe, pois com o esgrimir de argumentos e palavras e, enquanto o boomerang da nossa discórdia não parava, não tinha sequer passado da ombreira da porta da sala. O meu pai lá ficou palmilhando o projecto de livro com rigor e método, resmungando consigo próprio, questionando-se mas onde é que eu vi isso? Mas lá que vi, vi e toca de dar mais uma reviravolta ao tal que havia de ser livro mas que se ficou apenas por manuscrito, perdido no limbo dos não publicados.
O almoço não foi totalmente tranquilo sempre na senda do bouquet perdido, com o boomerang das palavras cá e lá. O meu pai procurando e dizendo, mas escreveste… hei-de encontrar! e eu refilando e protestando mas onde é que já se viu… então eu ia escrever bouquet com acento circunflexo, Papá? rematando convicta e segura Procura, procura, acrescentei Olha, pede à mamã, que aí no computador há uma maneira de procurar palavras no documento todo e parti para a capital, de emoções indefinidas, irritada com o raio do bouquet mas feliz por mais uma vez pegar no carro e rumar para a luz da cidade com o Tejo e o bulício que também tanta falta me fazem.
Algures pela tarde, enquanto me perdia no consumo, o telemóvel tocou. Era o meu pai e tinha notícias. Afinal eu não tinha escrito bouquet com acento circunflexo, acabara de o descobrir naquele preciso momento, auxiliado pela minha mãe e com o apoio da tecnologia. Gritei vitória, pois claro, e o meu pai também obviamente, rematando contudo que bouquet não tinha escrito com o famigerado acento mas tinha escrito bibelô, sim senhor, grafia que, embora constasse no actualizadíssimo Dicionário da Academia, não era reconhecida pelo guru da língua portuguesa da Primeiro de Maio, o meu querido e saudoso pai.
Exigi de imediato uma indemnização por difamação à minha pessoa, sim, onde é que já se viu EU escrever bouquet com circunflexo, Papá? e por isso trago hoje no dedo, com o maior carinho e amor do mundo, uma flor desse mesmo bouquet…. Ofereço as restantes a todos vós que me têm acarinhado tanto.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Sem palavras


Schreiben erleichtert dich. Selbst wenn du nichts zu sagen hast, erleichtert dich Schreiben.
Weiss man, wann man nichts zu sagen hat?*


Elias Canetti

*A escrita alivia-te. Mesmo quando nada tens a dizer, alivia-te a escrita.
Sabe-se, quando nada se tem para dizer?

Sei que muito pouco tenho para dizer e que nem a escrita me aliviará.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Dias longos

Hoje
tenho
uma tristeza
funda
em mim
e
o frio
crepuscular
de quem
lentamente
se
despede.

domingo, 11 de dezembro de 2005

Recado II

Depois de muitas Brezel, algumasWeissbier, uns quantos Schweinhaxn, uns deliciosos Glühwein para combater o frio e entrar no espírito e ainda uns pujantes encontrões no Christkindlmarkt e contigo, meu querido pai, sempre tão presente mas tão cruelmente ausente, voltámos. A Mamã bateu-nos aos pontos nas caminhadas e o H. coitado viu-se a braços com 109 anos de mulheres, o que parecendo que não, como dirias, é muita coisa e juntos tentámos ser felizes nestes momentos.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

Recado

Quando eu viajava
ou anunciava que iria a algum lado
fora de portas
o meu pai dizia amiúde
meio a sério, meio a brincar
Leva a tua mãe
e rindo-se, repetia
Leva a tua mãe contigo.
Pois bem, papá,
foi isso que fiz desta vez,
levei a Mamã comigo...

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Lembranças e Esquecimentos

Desde sexta-feira passada que ando a tentar reconciliar-me com o Natal. De repente, dei comigo a cogitar que de nada me adiantará continuar resistente e infeliz, pois nada, rigorosamente nada me trará o meu querido pai de volta e mesmo sabendo que não o teremos connosco nessa noite, algo absolutamente impensável há uns meros quatro meses e completamente novo na minha existência, de nada me adiantará fazer-me corcovar pela dor da sua ausência, latir pela ferida da saudade que tenho em mim e de tanto me lembrar dele, esquecer-me que a meu lado tenho o H. e a minha querida mãe, merecedores de igual afecto e dedicação.
Haverá fritas, portanto, sonhos e rabanadas, com toda a certeza, Árvore de Natal, pois claro, e entre o brilho das luzinhas bago-de-arroz existirá de forma indelével o cintilar da memória de quem partiu e as lágrimas tímidas e tremeluzentes de quem cá ficou.

Computadores e outros bichos do demo

Pois exactamente ontem quando me preparava para deixar aqui não sei já que palavras, o servidor negou-se terminantemente a colaborar. O texto, o meu, varrreu-se-me e, em seu lugar, saltitava este excerto de uma crónica do António Lobo Antunes. Lembro-me de a ter lido ao meu pai e isto não porque não soubesse ler, mas porque a relação que travava com o escritor era pautada por uma certa apreensão. A ausência de algumas vírgulas, os períodos iniciados a seu bel-prazer sem terminarem no mais tradicional dos cânones do bem escrever, deixavam o meu pai irritado até, comentando frequentemente Querem ser excêntricos e dá-lhes para isto… Francamente onde já se viu… Claro que Saramago também se incluía nos excêntricos, o que não seria mau de todo, caso o meu pai não considerasse tal como uma manobra de diversão relativamente à boa escrita. Ouvindo apenas o texto, o meu pai deixava para trás os aspectos formais, os seus lápis e borrachas e deixava-se enlear pela ironia da crónica e a magia da escrita de António Lobo Antunes. Foram excepções esses momentos. Nunca se deixou convencer.
Curiosamente o meu pai e António Lobo Antunes partilhavam esta mesma relutância quanto a estes símbolos do progresso, ainda que o meu pai tenha revelado um amor incondicional e de exclusividade absoluta pelo o seu telemóvel, acima de tudo, porque lhe permitia comunicar com a minha mãe e manter-se mais perto de nós. Aqui fica o texto dedicado ao meu querido pai de quem tantas saudades tenho.

No que me diz respeito não sei mexer num único desses símbolos do progresso, do aspirador ao apara-lápis, do micro-ondas ao blequendéquer, do vídeo ao saca--rolhas que levanta a pouco e pouco duas pérfidas asinhas de metal. Afasto-me dos telemóveis como da peste, faço largos círculos para não passar perto de uma calculadora de bolso. O isqueiro do esquentador assusta-me com as suas rápidas, instantâneas chamazinhas azuis, o trepidar da máquina de lavar loiça provoca-me suores de vítima, de lenço amarrado na cara, de pelotão de execução. E tenho conseguido somar anos, apesar dos aparelhos, graças a uma prudência maníaca e a uma cautela de cego, até que surgiram os computadores.
Julgo não ter medo da morte, não ter medo do dentista, não ter medo da lepra, não ter medo dos políticos, mas tenho medo dos computadores. Tenho medo da sua falsa inocência, da sua submissão aparente, da sua eficácia tenebrosa, do seu ódio silencioso e vesgo. Já me engoliram um romance inteiro, já me transformaram capítulos em poesia experimental, já retiraram ossos aos meus parágrafos, reduzindo-os a um puré de adjectivos. Por isso escrevo à mão. Escrevo à mão para que os erros sejam meus e as personagens iguais às da minha cabeça e não resultado da imaginação delirante e asséptica de uma disquete esquizofrénica, inventando situações desconfortáveis e aberrantes como as dos sonhos das gripes. E os computadores imagino-os rugindo numa jaula de circo, sonolentos e de unhas de fora, só possíveis de enfrentar de botas altas, alamares e chicote na mão, obedecendo a contragosto às ordens de quem se aproxima deles, tocando-lhes com um pau para os obrigar à complicada proeza de uma frase escorreita.


António Lobo Antunes, Crónicas

domingo, 4 de dezembro de 2005

Couves e ovos

Mais um texto do fundo do baú...

Se julgam que há muita vantagem em ser-se filho único, desenganem-se. É-se o alvo preferido de remoques constantes quanto ao famoso egoísmo, reconhecido mimo e consumo excessivo de atenção, o que pode tornar-se irritante e revelar-se amiúde injusto. Nasci filha única e filha única fiquei.
A minha mãe sempre foi dada à matemática e raciocinava à velocidade da luz, esperando sempre que o receptor de suas mensagens fosse tão rápido no pensar quanto ela. Um dia, estando eu de saída, enumerou-me uma infinita colecção de conjuntos com os seguintes elementos: couves, ovos e peixe. Formou, partindo dali, infindáveis conjuntos de intersecção, fazendo-me relembrar a disciplina do meu descontentamento: a matemática.
Questionava-me sem cessar “olha, queres um ovo e peixe, ou peixe e dois ovos, ou dois peixes e dois ovos, ou couve e dois peixes, ou um peixe e couve, ou duas couves e dois peixes, ou um ovo, couve e peixe, ou dois peixes, um ovo e couves, ou peixe sem mais nada?” E, enquanto me via a braços com maillots, meias, collants e todo o tipo de acessórios para a prática do desporto da moda, atirei com um “sim, sim. Pode ser...” pondo um ponto final àqueles malfadados conjuntos matemáticos que tanto me tinham moído a cabeça em criança e que agora mulher adulta, quando julgava ter-me visto, finalmente, livre deles, tinham voltado em força e por atacado.
Após ter excretado os fluidos regulamentares, dando saltos e pulos ao som de música estridente, exercitando o corpinho, regressei ao pátrio lar para a convencional janta. Hoje penso até que minha mãe terá julgado que a sua menina, filhinha única, egoísta e embirrenta, tinha corpinho de baleia em vez de corpinho de sereia, pois quando destapei o recipiente de metal onde repousava, na minha imaginação, um delicioso jantar, deparei-me com dois belos ovos, já descascados. Estão a ver como ser filho único é bom? E a acompanhar os ovos, não fossem os pobres sofrer de solidão aguda, estava um montito de encarquilhadas couves esverdeadas, vegetais pelos quais não nutro até hoje a menor simpatia.
Perante o meu pasmo, a minha mãe, peremptória, retorquiu: “Foi o que disseste que querias!” E quando meu pai se abeirou, curioso, do prazenteiro tacho, afirmou intrigado: “ Ai não gostas de couves? Então que é que comes na Noite de Natal?”
Três décadas haviam passado e ali estava eu, filha única de pai e mãe. De uma mãe que me ofereceu um opíparo jantar de couves e ovos, delícia de qualquer vegetariano, mas não a minha, e de um pai que, após três décadas de ceias de Natal em comum, cujo número de comensais não chegou nunca a ultrapassar a dúzia para acabar no número sagrado de três, desconhecia que a sua filhinha única, estragadinha, mimadinha, egoísta e caprichosa, detestava aqueles vegetais verdes acompanhantes do suculento bacalhau em véspera de Natal: couves.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

Travelling pants

Durante um tempo a minha mãe, sempre que o meu pai se virava para levar os pratos para a cozinha, repetia a mesma frase Fernando, endireita as calças! O meu pai, mal jeitoso que sempre foi, lá endireitava as calças seguindo o pedido. As calças, porém, não se deixavam compor. Eram umas calças castanhas. A minha mãe chamava mais a atenção do meu pai para as ditas calças, mais do que com outras calças, ficando bem claro que a culpa era das ditas e tudo isto começou enquanto passavam um fim-de-semana fora. Que as calças quase caíssem ao meu pai era absolutamente normal, perfeitamente natural e de certa forma não um defeito mas um feitio. Serenamente a cintura descaía-lhe-se e também eu lhe chamava a atenção a bem da elegância Papá, puxa as calças! Quando surgiram as primeiras calças de cintura descaída e comecei a ver os meus alunos com mais calças do que rabos e o gancho a aproximar-se dos joelhos, anunciei em casa que o meu pai estaria na moda, mais fashion seria impossível e ainda que seria o percursor de tal tendência. Assim sendo não havia razão alguma para lhe chamar a atenção. Ele ria-se, mas as calças permaneciam no lugar de sempre.
A minha mãe continuava Mas que raio de calças… Agarram-se ao corpo. Compõe-as, Fernandinho! . O Fernandinho, senhor meu pai, dava-lhes mais uma volta e uma ajeitadela para, em breve, elas regressarem ao modo inicial... Findos todos os esforços no sentido de tornar as calças decentes e goradas todas as tentativas do meu pai em fazer o mesmo, decidiu-se arrumar o par de calças no guarda-roupa. Chega! Basta! ACABOU! A minha mãe estava inconformada. Desabafava a espaços Vejam lá que porcaria de calças! As calças haviam sido caras, compradas numa loja de referência da terra, não havia, portanto, razão alguma para se comportarem de tal forma. De resto, não o haviam feito antes e não se conheciam relatos de calças com vida própria como os homens e com esta vontade resiliente, mau grado todas as tentativas. Arrumá-las foi a solução.
Certo dia, quando a minha mãe foi à lavandaria, a empregada abordou-a docilmente A Senhora desculpe, mas… A senhora minha mãe estranhou aquele tom mansinho, o secretismo implícito no comportamento verbal e não verbal da mulher e emprestou-lhe o ouvido, acredito que tenha franzido um pouco o sobrolho e ajeitado a cabeça para melhor escutar a missiva secreta. A Senhora desculpe… continuou a mulher, mas a mulher do senhor D. veio cá buscar as calças do marido e teima que não são estas que lhe demos e fomos ver… e … . E descobriram então que as tinham trocado. A minha mãe prontificou-se para repor a ordem. Quem é que quereria as calças do sr. D., todas tortas, agarrando-se fixamente às pernas do meu pai e de má qualidade, em suma, não bastasse já o facto de não lhe pertecerem? Como a Sra. D, esposa do Sr. D., era uma quezilenta impaciente de cabelo armado e ainda por cima louro pintado, impunha-se uma operação classificada, no maior dos sigilos, portanto, ao anoitecer e depois da loja ter encerrado, a minha mãe secretissimamente levou a cabo a missão, recuperando no crepúsculo mafarrico as calças do meu pai.