Páginas

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Countdown

Vinte e três e cinquenta e seis. A lareira crepita. As gatas dormem. Reina a paz nesta casa. Planifico mentalmente a semana que entrará dentro em pouco e penso que me faltarão umas três semanas para acabar o primeiro período. E não era isto que eu queria que a profissão que um abracei se tivesse tornado: um fardo, um incómodo e o desejo que acabe depressa. Faltam três semanas para entrar por aquela porta, abandonar os livros e respirar bem fundo, livre e liberta de algo que me atormenta.

sábado, 17 de novembro de 2012

A vida num prato


Não gosto de gente branda. Não gosto de sabores insossos. Não gosto de apertos de mão moles. Não gosto de sorrisos amarelos ou de desviar de conversas. Não gosto de gente que se escusa a tomadas de posição, que não consegue dizer uma coisa desabrida se for necessário ou que vive existências beatíficas de ausência de palavras. E não gosto de conversa chocha. E de gente manipuladora. É que a manipulação é a arte de dissimular, contornar, dominar o outro até que ele ceda aos nossos intentos sem que o tenhamos afirmado assertivamente. Acontece que esta forma de vida já foi mais turbulenta do que é agora, afinal a idade madura, chamemos-lhe assim, não é só sentir o corpo a ceder implacável à força da gravidade e trouxe-me alguma sensatez com a qual não me tenho dado mal. Esta verborreia serve para dizer que também na comida gosto de sabores fortes, daqueles que nos fazem sentir, beber um vinho intenso ou proclamar as qualidades orgásticas daquilo que ingerimos e gargalhar a seguir com os comensais à nossa frente. Acontece também que por isto que acabei de dizer não gosto de gente que torce o nariz à comida e se resume a uma garfada de nariz torcido, proclamando que estão cheios, como fêmeas em véspera de parir. Terão noção da vida que passa a seu lado? E pronto, agora que já desabafei, aqui  fica uma receita que é uma extensão da intensidade com que a vida deve ser vivida. Ou como eu acho que deve ser vivida.

domingo, 11 de novembro de 2012

Quietos e calados até terça-feira, dia 13*

Depois desta triste figura aqui descrita e que graças aos deuses não foi autorizada na Alemanha como os autores queriam, eis que surge este que descobri no 2 dedos de conversa da Helena. Em verdade nos digo que estou ansiosa que a Merkel se vá. Nunca se sabe com o que nos brindará a imaginação tuga.


* protestar podem.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Consultório Jonet

Querida Isabelinha, estou a pensar fazer bifes para o almoço mas não sei se não estarei a viver acima das possibilidades. Deverei fazer antes umas bifanas fora do prazo ou será preferível contentar-me com os couratos do suíno? Grata pela atenção.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Pão por um deus desconhecido

Nove e vinte e cinco. Os cães ladram inquietos. Eles vêm aí. Sei que são eles. Espreito pela janela do quarto e vejo-os. Desço as escadas a tempo de lhes abrir a porta. Dizem ao que vêm sorridentes para soltar um lamento de seguida ‘Está tudo na missa. Ninguém nos abre a porta’. E o outro ‘e ele tem de se ir embora às dez’. Sempre achei que a religião é como o amor ainda em que numa proporção diferente, em demasia matar-nos-á e agradeço aos meus deuses por me terem arredado de sacristias e outros lugares estranhos de santos em esgares e sofrimentos, não nos bastasse já a vida. As crianças terão doces. Abrem-me os sacos de pano e para lá vou despejando com a supervisão dos dois a mesma, a mesmíssima quantidade de guloseimas: chupas, rebuçados, moedas de chocolate. Foram as primeiras das últimas crianças que vieram a minha casa pedir Pão-por-Deus. Acabou este ano com uma garota sorridente de sobrancelhas ralas que me inquiriu à saída ‘Posso fazer uma pergunta?’ Claro!’ ‘Esta árvore que tem aqui chama-se como?’ ‘Azevinho.’ ‘É isso’ diz-me. E a conversa corre solta sobre o azevinho e as bolinhas vermelhas numa manhã de sol brilhante indiferente ao país que anoitece. Quando voltei para dentro e a minha porta fechou-se pela derradeira vez. Dentro dela anoiteci. Estranho país o que mata as tradições. Estranho país o que nos matará a todos.

Também no Delito de Opinião.

Das entranhas

Desta vez não é raiva, indignação, fúria. Desta vez é uma profunda desilusão. Com o país, com a minha vida transformada em vidinha de contar cêntimos com tantos cortes. A perspectiva de uma vida pequenina de estatelar o nariz nas montras e ver o mundo sem lhe poder tocar. E ter de me resignar. Dizem-me por aí que gastámos de mais.  Enchem-se bocas balofas de moralismos bafientos. Desta vez é vontade de parar. Baixar os braços. Esconder-me até que tudo isto passe ou pegar nas malas e sair de vez sem remorsos nem saudades. Bater a porta. Esquecer que alguma vez fui professora e partir definitivamente para outra. Não há nada que pague 'isto', tanto sacrifício, tanta humilhação. Nada.