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quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Epifanias e despencanços

Corria o ano da graça de dois mil e nove, estava um calor verdadeiramente abrasador, talvez o mais escaldante que terei sentido, o Adriático convidava à contemplação e ao mergulho numa das mais belas cidades europeias, quando tive uma revelação, epifania parece-me levemente exagerado neste caso. A revelação assombra-me a espaços. Para minha grande sorte só me assombra mais pela fresca, quando depois do banho observo contristada mais um pedaço de mim para quem a gravidade foi madrasta e votou a uma existência despencada. No meio dos quarenta já não há contemplações, ilusões muito menos, há apenas constatações óbvias do que somos, uns pedaços de carne que parecem escorregar por nós abaixo sem cerimónia e nesta descoberta só me restou um caminho: aceitar.
Quando naquele verão escaldante resolvemos dar uma volta de barco e circundar a ilha em frente de Dubrovnik estava longe de pensar que a imagem me iria perseguir. Bem do lado oposto ao que dá para terra, situa-se uma zona de nudismo. Há mulheres, é verdade, mas havia muito mais homens, homens acompanhados de homens, de rabos ao léu escuros como o resto do corpo, sem marca de coisa nenhuma, um corpo dourado uniforme sem riscas nem interrupções, e havia homens de todas as idades, novos, menos novos e alguns mais velhos. Ora os novos e os menos novos não me trouxeram nada de novo. Nada que nunca tivesse visto antes. Uns mais enxutos do que outros eram homens como sempre os houvera visto. O mesmo já não posso dizer dos velhos, já que uma vez de rabos virados para as rochas e de barriga virada para o Adriático ostentavam no zénite aquilo que eu só ousara ver em versão jovem e menos jovem e portanto não naquele estado de ressequimento e despencanço. Deuses meus que repousam lá no Olimpo!  E esta é a parte em que podia estabelecer comparações, explicar-vos o que me pareceram aqueles pedaços de carne ao delãodão mas em que me votarei ao silêncio que este é um blogue decente. Nesse dia invejei os homens. A parte que mais evidencia a passagem de Cronos passa os dias encafuada em roupa, escondida e protegida de comentários menos próprios sobre o envelhecimento tão óbvio, tão ressequido, tão mirradinho, valham-me Júpiter e Zeus. Uns sortudos, portanto. Os homens podem até ser velhos mas serão grisalhos e sexys até se exporem com tudo ao léu, tudinho como vieram ao mundo. E é essa inveja miudinha que me ataca sempre que passo creme nos meus tríceps e lamento a triste sorte de um dia escrever no quadro e provocar uma corrente de ar com as peles descaídas ou de levantar voo como a Mary Poppins. Não há como esconder a velhice e não posso andar de mangas compridas o ano inteiro. O pior é que o envelhecimento não é nada comparado com isto. Diz-se agora que a partir dos quarenta e cinco  as capacidades cognitivas começam a ficar eufemisticamente menos apuradas, ou seja, ficamos mais burros. Assim mesmo, sem rodeios. Afinal prefiro as carnes caídas. Sem o viço e sem a inteligência não há quem nos possa valer. É de mais para uma mulher só. Não podia ser apenas um?

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Confissões vergonhosas em tempo de vacas magras

Para que tudo mude é preciso que algumas coisas nos dêem a ilusão de que são as mesmas e que por breves instantes nos entreguemos a velhos hábitos portadores de seguranças antigas e enlevos consumistas de que somos feitos. Pensarão por ventura que macaco me mordeu, que, como se diz por aqui na região saloia, 'levantei de ideia' ou que me esqueci de me enfrascar de prozacs e sucedâneos, bichos que não me passam pelo estreito  há quase duas décadas graças a muito trabalho de auto conhecimento e alguns momentos de esvaziar a mente ou fazer o que sempre faço face a momentos negros Vai passar, há-de passar. Nada disso. Serve isto pois para dizer que hoje pela fresca fui aos saldos, ao reboliço de mulheres afagando roupa e procurando incessantemente aquele tamanho e aquela cor, voltas e rodopios que se dão no espelho com uma nova pele. Enganos efémeros. Sou portadora de um casaco novo, que tanta falta me fazia, às mulheres faz sempre falta alguma coisa, e estou muito mais aliviada. Pronto. Era só isto

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Confissões de uma mulher perdida

Descobrimos que só pensamos no mesmo quando até nos momentos tranquilos do quotidiano encontramos marcas, indícios, evidências da nossa nova condição de depauperados e humilhados. E não, não se pense que foi quando passei por uma montra decorada de Natal cheia de bolas reluzentes e pais natais pachorrentos e me impus o treino forçado para combater o próximo Natal e o outro, talvez ainda o outro e quem sabe todos os Natais doravante. A recusa determinada em não ver, não entrar sequer, ignorar por completo e não ter a mínima das tentações. Assim como quando acabamos uma relação e cortamos com tudo o que faça lembrar o dito cujo, um vai morrer longe enérgico um chega pra lá catártico, quero mas é esquecer que existes, ó Natal. Nada disso. Foi quando num fim de tarde batido pela chuva e numa conversa em alemão sobre o Outono comecei a achar que o Rilke era um visionário e que aquele poema que se me entrava pela alma estava prenhe de referências a esta triste sina lusa. Enquanto a discussão decorria dei por mim a fazer associações ao encontro deste fado lusitano de desgraçados e enjeitados. Podem chamar-lhe intemporalidade, que sim, que quando um poema é lido vive outra vez, muito bem, apelar à estética da recepção e nomear-me como co-autora do texto, perfeito. Nada me convencerá. Quando num insuspeito poema de Rainer Maria Rilke sobre o Outono, o défice, a ajuda externa e a Troika  estão presentes já não me resta mais nada. Estou perdida.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O mundo a meus pés

O meu problema, um dos, é ter o vício de querer viajar sempre, sempre mais, sempre tudo, sempre sempre. Num desses momentos femininos de encantamento total por um par de sapatos, sandálias ou qualquer outra coisa que lhe queiram chamar, de uma marca conhecida muito na moda e que, para cúmulo, combina o melhor de dois mundos, voar e a capital britânica na denominação, dei por mim a fazer o raciocínio de sempre enquanto os virava e revirava, cobiçava, desejava: cem euros de sapatos é muito dinheiro, cem euros por isto? E o remate costumeiro, a conversão imediata Cem euros é uma viagem de ida e volta a Edimburgo. Uma passagem de avião daqui para fora. Podia ser Londres também ou Paris ou Roma ou Milão, Milão ainda mais barato, mas não gosto muito de Milão, ou Berlim. E pronto, ando nisto há meses. Agora com os saldos e promoções embarateceram um bocadito, as ditas chanatas, mas continuam a ser uma viagem a Londres nos pés a arrastar por esse chão imundo e é claro que tirando os breves instantes de ver o pezito de cinderela quarentona encaixado na perfeição na sapatola da moda, uma viagem a Londres é sempre uma viagem a Londres. Ele há livros, há mercados, há musicais, há gente na rua de todas as cores, há Londres, ponto final. Aguardo ansiosamente que desçam para metade do preço. Nesse caso seria só a viagem de ida, o que nos tempos que correm não me caía nada mal.

imagem: Beryl Cook

terça-feira, 25 de maio de 2010

domingo, 23 de maio de 2010

As legítimas

O mulherio fazia fila para a caixa, não só mulherio, atrás de mim um senhor menos jovem, de pé pequeno pelo que disse, uma mãe entediada com os caprichos da filha adolescente, uma mulher indecisa com a escolha dos brilhantes a aplicar e em torno do quiosque, quiosque talvez, havia um corrupio constante, uma roda imparável, pedidos de números e cores, homens e mulheres experimentando o tamanho e a cor exacta, a cor exacta, jamais aleatória e terá que condizer com as inúmeras fatiotas veraneantes, esvoaçantes ou coleantes que dão cor aos roupeiros lá em casa e a que o sol permite finalmente dar uso. Podia até parecer uma réplica manhosa do Sexo e a Cidade: em vez das quatro magníficas às compras na senda dos últimos Manolo Blahnik ou Jimmy Choo, uma horda de mulheres na capital lusa, pontilhada aqui e ali com a presença masculina na procura dos seus objectos de desejo para um Verão que se prevê tórrido. Assim era o mulherio desvairado com aquilo que não é necessário mas que sendo acessório se pode tornar fundamental e necessário na vida de uma mulher. Acontece a todas ou a quase todas. Acontece-me a mim, por exemplo. Acontece-me ter uma fixação nas mais simples e aparentemente democráticas sandálias que o mundo conhece, esses mesmo que congregaram uma multidão de dimensões moderadas num Sábado pela manhã numa loja da capital. Esta que vos escreve tem uma paixão assolapada pelas sandálias de enfiar o dedo de produção brasileira conhecidas em todo o mundo, um objecto quotidiano transformado em culto, o supra-sumo da liberdade e a afirmação peremptória de que as obrigações estão longe e de que posso finalmente andar sem qualquer salto, arrastando ligeiramente os pés e sentindo-me indescritivelmente livre. Sem horários a cumprir e tarefas a executar, igual se de férias ou de fim-de-semana, as havaianas fazem parte da liberdade a que me permito e representam momentos do mais puro prazer pautados pela entrega ao que melhor me aprouver. E depois vêm as cores, os padrões, os modelos: top, joy, slim, slim season, slim stripes, high, estampadas, florais, hibisco, cartunistas. Nego-me a contar os pares de que sou feliz proprietária, a bem da minha sanidade mental e da manutenção da imagem de que não sou uma mulher frívola e que, ao contrário de uma esbanjadora consumista, não possuo pares que dão para uma equipa de futebol, treinadores e adjuntos incluídos. Se recontar ainda se arranja um par para o apanha-bolas.
Naquela cena do filme Notting Hill em que Anna vai ter com William à livraria em Portobello Road podia perfeitamente usar umas havaianas slim. Ficariam a matar com o casaco de malha e a saia direita e em perfeita sintonia com a cena tão simples mas tão carregada de significado I'm just a girl, standing in front of a boy, asking him to love her. E depois vem a publicidade no Brasil. Reynaldo Gianecchini, ele mesmo, sem mais apresentações, passeia-se num shopping usando as legítimas. São precisas mais razões?


Também no Delito de Opinião com uma pequena adenda.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 18 de março de 2009

A mulher e a badocha

A badocha, antes de ser a badocha, estava à minha frente, suando as estopinhas e arremessando-se com afinco nas máquinas redentoras que nos irão resgatar o corpinho perdido nas mãos de Cronos. Antes de ser a badocha era apenas mais uma de nós. De rosto redondo e olhos risonhos, escondia por baixo da t-shirt dois refegos volumosos, duas regueifas que lhe abraçavam o abdómen, duas bóias salva-vidas. Tinha encontrado a badocha uns dias atrás, airosa com as suas regueifas, feliz da vida porque a balança tinha sido amiga, e, não obstante as regueifas, tinha perdido uns gramas. Nessa altura ainda não era a badocha.
Na altura em que a badocha ainda não era a badocha cabriolávamos nas plataformas, entrecortadas com movimentos vigorosos nas máquinas e trocávamos palavras inofensivas, assim os pulos nos dessem descanso e o fôlego permitisse. Assim sendo, e tendo em conta o mês de Março adiantado e o Estio que se pôs sem aviso, a conversa caiu no tema preferido por uma parte substancial da população feminina que se dá ao luxo e sacrifício de embarcar em trabalhos vários em nome de uma vida saudável e, acima de tudo, sejamos honestos, uns centímetros a menos em torno de tudo o que se tem, excepto na inteligência que para o efeito do presente escrito pode ser medida também em centímetros.
E a conversa lá saltou. Terei dito na sequência do queixume colectivo dos centímetros a mais que a continuar como estou - vide fotografia do perfil – não podia vestir os meus biquínis, meus assim mesmo no plural, porque mulher que se preze não compraria menos de três -e estou a ser modesta- naquele dia de Verão em que o biquineiro nos visitou no hotel em Pipa e largou ali mesmo centenas de biquínis, ó meu deus, tantos, mas tantos e tão giros e tão baratos. A futura badocha respingou do alto das suas regueifas Poder, pode, o pior é a figura que faz... Foi aqui que as regueifas pareciam ter levedado e que a mulher sorridente a braços com as gordurinhas indesejadas se metamorfoseou em badocha, não sem antes levar uma resposta Há pior, embora sem a continuação que ecoava na minha cabeça Há pior, ó badocha.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Crónica de uma mulher achacada

Uma mulher é saudável, é saudável ainda antes de ser mulher. Desconhecem-se-lhe maleitas de monta maior, bexigas, que bom que era quando se podia dizer bexigas em vez do sofisticado varicela, papeira e outras coisas de somenos, duas urticárias, litíase, bem mais bonito do que pedra nos rins, e que lhe deu alguns dissabores, acima de tudo, muitas dores, tensão baixa, hipotensão, e nada de mais. De repente vê-se marmanja, quatro décadas volvidas, quatro décadas e uns anos, e eis que lhe batem à porta, em sequências de quatro, faringites. Dirige-se ao Hospital, não é um hospital, mas substitui-o nesta espécie de achaques, e sai de lá com a receita para uma zaragatoa, perdão, exsudado, reparem como se modifica o linguajar, as expressões populares a serem teimosamente substituídas pelos equivalentes em linguagem médica, dois antibióticos, credo, valha-me sei lá quem, e umas pastilhas homeopáticas para os males da faringe. Gostei deste pequeno apontamento alternativo do médico de serviço. Nada como acalmar as hostes com uma mezinha livre de químicos.
E aqui me quedo perplexa, assustada com o que será de mim se começar a ter estas moléstias. Se fosse em aulas, como uma das vezes anteriores, lá estaria agarrada a livros, parindo fichas e mais fichas para as aulas de substituição, nos dias que correm há que entreter os alunos sempre, mesmo que se esteja em casa comprovadamente doente, sabe-se lá como iriam reagir à loucura de terem uma hora livre, mas assim será se for em tempo de aulas, isto e ver-me excluída do meu Excelente, o meu rico e querido excelente. Uma maçada e um problema. E não sendo em tempo de aulas, o que me preocupa com estas idas frequentes ao SAP é a crescente intimidade que passarei a travar com o local, a conhecer as manhas à máquina de café, é sempre em frente a ela que me sento, a passear-me lápis em riste para corrigir as imperfeições do português, ai que raiva, a raiva que me fazem, passar a ser tu cá, tu lá com as funcionárias Então, o que a traz por cá? Ai sabe lá, estou tão malzinha, tão apoquentada, é importante usar apoquentada, aleijada, álérgia, sinósite, tirar uma chapa e ir à faca, também.
Este estreitamento de relações alastrar-se-á aos demais utentes, imagino-me até a lutar com eles por causa do meu lugar em frente à máquina de café, tudo menos aquele lugarzinho em frente à máquina do café, ou a trocar impressões sobre os médicos, que sabemos sofrem do mesmo mal que os professores, os pacientes sabem sempre muito, toda a opinião pública sabe sempre muito no caso dos professores, trolhas, mulheres-a-dias, cabeleireiras e executivos. Por último, receio a pasta de vocabulário médico, medicinal e farmacêutico que terei de abrir na minha memória, não será o antibiótico, passará a ser o Clavoxil, o Klacid, há que ter propriedade de linguagem, excluo o Brufen porque passámos a ser unha com carne. Virá tudo acompanhado com princípios activos, dosagens, tomas e efeitos secundários. Rezem para que recupere desta debilidade faríngica, ai de mim, estou destroçada, se não verão este espaço transformado em muro das lamentações.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Tende piedade de mim

Num dia de aflição recorri ao cabeleireiro da aldeia. O cabeleireiro da aldeia é como quase todos os cabeleireiros, com a diferença de que é da aldeia e na aldeia, sendo menos os habitantes do que na cidade, é tranquilo e sossegado, frequentado com mais clientela em dias de festa e de missa.
No dia em que fui ao cabeleireiro da aldeia tive uma revelação que mudou a minha vida: pela primeira vez em longos anos de existência capilar abundante tive alguém que não refilou do meu cabelo, não me deixou com um lado mais comprido do que outro, não me afogou a trunfa em produtos milagrosos contra os males de que todas as mulheres sofrem assim que põem pé nesses altares de sacerdotisas dos bigodis, já não há, eu sei, mas dá-me jeito aqui na escrita e gosto da palavra bigodis. As magas das mises, as papisas do brushing não perdem uma oportunidade para comercializar a sua mercadoria mágica, capaz de operar maravilhas, milagres capazes de amedrontar o Vaticano. Eu própria testemunhei a epifania destas práticas poderosas quando um dia as madeixas vermelhas desbotaram na primeira lavagem ou no dia em que indo pôr uma tinta no cabelo me deixaram com uma tarja negra na testa que me obrigou ao recolhimento durante dias ou ainda no dia em que a cabeleireira me deixou o cabelo bem mais curto do que havia desejado e pedido. Este episódio teve sequelas naturalmente, varias temporadas com vários episódios e, qual Sansão, fiquei diminuída e infeliz.
No dia em que fui ao cabeleireiro da aldeia a minha vida mudou. Fui recebida com o falar doce de um mineiro que, ao contrário de me arremessar com considerandos vários sobre a dificuldade de manusear a cabeleira, alardear soros, espumas e outros produtos viscosos de última geração, deitou mãos ao trabalho e fez aquilo que sempre desejei: cortou-me o cabelo de forma eficiente e profissional.
Cansado, porém, dos penteados dominicais, o cabeleireiro decidiu abandonar o beatame e fez-se à vida para lá da aldeia não sem antes avisar a clientela fiel, eu incluída, naturalmente. Passou a atender em casa, sem luxos, assim me avisou no primeiro dia que lá fui Olha, não tenho luxo para te oferecer, só o meu trabalho, que já se sabe é logo meio caminho andado para o coração, sou rapariga muito sensível a gente genuína e continuei a ser cliente assídua. Há técnicas de fidelização irresistíveis.
E agora o problema: o meu cabeleireiro encontra-se ausente. Meu deus, tende piedade desta descabelada infeliz, voltará? Estou com uma trunfa que mais pareço o Peter Frampton, temo transformar-me no Kenny G, a continuar assim ainda vou parecer o vocalista dos Europe, e sem ele, o meu rico cabeleireiro, o que farei? Ó deus, tende piedade de mim.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A dinossáuria

A fotografia marcou a vez primeira em que me vi outra. Num miradouro altaneiro em Graz, na Áustria, há uma década mal medida, nada faria prever que, uns dois meses depois, olhasse para o momento eternizado num rectângulo brilhante e reparasse naquela ao lado da minha colega de profissão. As duas sorrindo, uma conhecida, era ela, a minha colega, a outra parecia eu. O mesmo olhar e o sorriso meio tímido ou cansado, cansado sim, lembro-me agora: aquele não havia sido um dos tempos mais fáceis da minha existência de mulher. Era eu. Havia algo indefinível na expressão. Não que fossem rugas ou o pescoço mais marcado, não era o rosto mais longilíneo. Era algo indizível na aura da imagem, meio crepuscular mesmo com a luz da tarde a iluminar a cidade que servia de pano de fundo à fotografia e assim, sem tanto procurar, o dizer é bem mais imediato que a escrita destas palavras, disse-me e vi-me irredutivelmente velha. E depois vieram episódios vários: passei a ser tratada por senhora, assim vindo do nada, como daquela vez em que num consultório médico, a mãe advertiu a filha Não incomodes a senhora!, ou como num dia em que ao cumprimentar a filha de uma colega, ela me respondeu Olá, senhora! Assim mesmo, sem nome, senhora apenas. O dia em que me sentei em frente ao médico que já não via há anos largos e que ao perscrutar-me com o olhar retorquiu implacável Eu lembro-me de si… Não era assim, não deixou margem para qualquer dúvida naturalmente. Nem o médico, nem quando um dia da semana passada uma aluna se abeirou de mim. Trazia um tom comprometido na voz Stora? O indício inequívoco de que algo aí viria, talvez uma pergunta pessoal, quem sabe. Ó Stora, insistiu, Sim… respondi. E a pergunta veio A Stora… a stora é do tempo dos discos de vinil? E não é que era mesmo?! A stora, eu dinossáuria, eu mesma, euzinha era do tempo do vinil. Se isto não é chamar velha a uma pessoa não sei o que será então.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Como os dias da semana

Se o contar não lhe falhava eram seis. Seis pares. Seis pares e mais um que tinha ido buscar aos cafundós da gaveta. Havia tempo que não lhe punha a vista em cima, e depois as meias, as normais, nem mais nem menos um par. Seis eram então, seis mais uma e, se a memória não a atraiçoava também, tal como o contar, a última vez que tinha feito uma máquina de roupa interior teria sido lá pelo início da semana, ora sete dias, sete pares. O sol aquecia-lhe as costas, contou de novo -detestava sol- na esperança de que estivesse um ou outro a menos, nunca a mais e muito menos em número exacto com os dias da semana. Nada ficara igual depois do fim-de-semana em que o filho trouxera os nórdicos para casa, a nórdica especialmente, com olhos azuis que nem farpas cravadas em tudo para onde dirigia o olhar. Nunca se deve ter olhos tão claros. A nórdica fazia jus ao estereótipo: alta, louríssima, de pernas infinitas, os olhos límpidos através dos quais se julgava ver os fiordes lá longe, o azul que parecia o céu, e o apetite de algo mais descontraído sem ser o trejeito maljeitoso de corpo hirto dos escandinavos quando se aproximam para um beijo. Além de cumprir o estereótipo tinha algo que a trazia mais a sul: as nádegas salientes sob as calças de ganga, indício de que o exercício físico era uma constante na sua vida e de que os glúteos faziam parte integrante dessa constante. Andaria talvez de patins pelos lagos gelados nas paisagens pintalgadas de branco e azul quando o sol escandinavo brilhava para acender a neve. Apanhara-o a olhar para a nórdica. Nada de mal, a nórdica era o pólo de exotismo à mesa, a cabeça como uma tocha que iluminava as restantes melenas acastanhadas, os olhos como pedras cristalinas. Também ela olhara para a nórdica e para o nórdico. Esperava, contudo, que o olhar não a tivesse atraiçoado e que não tivesse fulminado o pobre rapaz com o olhar com que o consorte brindara a nórdica quando se levantaram na mesa: o olhar de desejo que ela julgara até então estar-lhe reservado. Enganara-se pois. Depois daquele dia nada foi igual.
O sol não a largava, agudo como os olhos da nórdica, enquanto pendurava a restante roupa no estendal: camisas, toalhas, uma ou outra peça pequena e a soma regressou-lhe como uma facada: sete, como os dias da semana. A evidência que precisava para comprovar a tese de que depois da nórdica nada ficara igual e que além da nórdica, regressada ao seu país natal, havia uma, uma outra, a outra, já se vê, que o obrigava a mudar a roupa interior todos os dias. Não era ela. Não era a nórdica. Quem seria?

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Namoro

Passada a adolescência, a idade madura chegara. Que idade era aquela em que o corpo se tornava estranho? Que tempo era aquele em que escurecia o olhar? Que corpo era esse que se lhe impunha? As rugas faziam as primeiras aparições e no espelho aparecia reflectida não só a imagem do corpo mas a imagem da mente, quando o reconhecimento nos retratos se faz a custo - aquela, quem é?- e as feições se assemelham velozmente às dos antecessores Serei esta, eu? A revelação ficou péssima, desfocada, e a cor, a cor está esbatida. Está sujo, o espelho. Serei eu, aquela? E, no final da noite há muito adormecida, o espanto e surpresa perante o rosto cansado, desconhecido até aí, e a pergunta ressurge, aquela ali, sou eu? Não me pareço eu. Eu era outra. Comprara os primeiros cremes anti-rugas com colagéneo ou silicone e extractos de algas, elixires da juventude da era pós-moderna havia pouco tempo, desde que aquela outra ela, eu? lhe aparecera após uma noite de intemperança. O armário da casa de banho, que suportava o espelho com quem detinha conversas inaudíveis pautadas por silêncios longos e observações demoradas, engravidara-lhe repentinamente, uma gravidez prenha e rotunda. Frascos e boiões, bisnagas e latinhas: grandes, pequenos, esbranquiçados, de cores desmaiadas, a panaceia possível para a agonia inevitável do inconformado entardecer. Ao contemplar-se no espelho, julgava-se momentaneamente ausente de mais uma ruga. Serei esta, eu? Pareceu-me ver-me de repente, e auscultando criteriosamente rugas e linhas, aquela ali, eu? desejava secretamente que o colagéneo - quem sabe?- surtisse efeitos também na alma consumida e que as marcas do tempo, bom e mau, se apagassem ou reduzissem. Como as rugas. Mas naquele dia de invernia cinzenta -quem diria?- em que ele gentil lhe pediu namoro, namoro como ninguém nunca lhe fizera antes, ela regenerou-se, sem cremes, sem elixires. Penteou-se, o cabelo ajeitado por cima do ombro, sorriu-se-lhe, e aquela ali, quem é? e reconheceu o rosto que regressava devagar, devagarinho, cada vez mais nítido no espelho. Serei esta, eu? Era ela de novo.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Tortura medieval

Por fracções de segundo julguei que a minha orientação sexual espreitava naquele momento como nunca antes. É certo que nunca mulher alguma antes se tinha derramado sobre os pomos que eu exibia lampeira e descansada, mãos atrás da cabeça, como gosto de dormir ou de descansar. Que é lá isto? As mãos suaves e tépidas. Ó valha-me deus! Logo agora. O que tantos homens teriam de aprender com a competência e expertise da clínica à minha frente. Umas torcedelas de olhos para a maquineta em frente. Tudo bem, afirmou. A densidade atribuída à minha não-desova. Depois saio da sala, soutien no bolso, -as figuras que uma mulher faz- e logo após, mais um dos procedimentos a que as mulheres adultas e maduras estão sujeitas. Isso, agora o braço por cima, mais para dentro, está bom, e a advertência Vai doer. Vai doer? Como vai doer? Então mas isto não é tecnologia de ponta? Sim, sim, mas dói na mesma. Ai dói na mesma? E depois a tortura para que nenhuma mulher está preparada, valha-me a santa, o santo, o filho e o neto da santa e do santo. A mama, coitadita, em cima de um tabuleiro, e como um torniquete, algo que apertava, estatelava, esmagava, comprimia, calcava, espremia, premia, amassava, amachucava, amarfanhava, amolgava, achatava, aplanava, acachapava as minhas ricas maminhas. Tudo acompanhado com uma dor insuportável e a confirmação Pois é, dói um bocadinho. Um bocadinho? Depois daquilo, temi que em vez das meias luas que me ornamentam o torso, sairia de lá com duas prateleiras -o jeito que dariam para pôr o giz e o apagador enquanto esbanjo conhecimentos na sala de aula. Portanto, isto é só para avisar que para a próxima vez que for sujeita a esta verdadeira tortura medieval não respondo por mim e antes de lhes começar a atacar as canelas - os pés eram a única parte do meu corpo capazes de actuar adequadamente à situação- chamo o Comendador B para lhe dizer umas palavrinhas.