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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Feliz Ano

Não obstante a polémica na educação, 2008 foi um ano que me trouxe experiências gratificantes, um projecto novo e muito aliciante, outro que vem a caminho, muita harmonia, a prova de que a vida profissional é só mesmo uma parte do todo, e algumas viagens.
Comecei em Março a viajar, na velha Albion, com neve e dezenas de adolescentes à descoberta do mundo além fronteiras, continuei por Abril por terras onde se mitifica ter andado Hamlet, onde até os trolhas são bem parecidos, as livrarias tem livros em Inglês em quantidade admirável e se anda de bicicleta quase mais do que de carro. Em Julho esperavam-me duas semanas em Oxford. Protegida pelas gárgulas, acolhida em livrarias deliciosas no silêncio dos livros e no restolhar das páginas, sentindo o que não se sente em breves escapadinhas nem em estadias de hotel, recolhida algures no countryside com Jasper, um gato preto e felpudo por companhia fugidia, os dias em pleno habitat mostraram-me um quotidiano curioso. Berlim, porventura a cidade que mais fascínio exerce sobre mim, esperava-me em pleno Agosto, bem como o volante de um Trabi rosa-choque que fui conduzindo cidade afora na descoberta de uma outra perspectiva, dias de correria pela urbe para ver o que os turistas não vêem e momentos para me deleitar na cidade europeia mais emblemática do século XX. E férias então. Brasil, já se vê, o local onde retempero forças como em nenhum outro, percorrer a praia com o oceano tranquilo e cálido a beijar-me os pés, os golfinhos em brincadeira no mar, os saguis que consegui conquistar e os companheiros de viagem mais simpáticos com que me cruzei fizeram destas férias um experiência única. E para acabar o ano não há como visitar Mercados de Natal com cidades dentro. Viena, a cidade da valsa, do pai da psicanálise, de Karl Kraus, Canetti, Hundertwasser e Klimt deixou-me a certeza de que as cidades para serem belas têm que ter alma. O que lhe sobra em monumentalidade falta-lhe em alma e acolhimento. E foi num destes périplos que me cruzei com o castiçal que vos deixo. Estava numa igreja em Copenhaga e chamou-me a atenção pela forma singela e redonda, as luzes que se unem na forma circular que podem ser quem quisermos. Que estas luzes nos unam sempre, vos unam a quem desejarem e que 2009 seja um ano pleno.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Questões semânticas

No país do Magalhães os governantes têm um verbo preferido constante bem no lugar cimeiro de opções semânticas. Caso se lhes conheça cartilha pela qual se regem sempre que têm de proferir uma opinião sobre assuntos que envolvam contestação ou oposição, o verbo surge rapioqueiro e inequívoco. Tornou-se previsível. Basta apenas determo-nos nas notícias para prever que mais tarde aparecerá alguém do Executivo fazendo uso do dito verbo. No país do Magalhães desvaloriza-se com frequência. Foi assim que a Ministra da Educação desvalorizou a manifestação dos professores, se bem me lembro, as duas manifestações, e a Ministra da Saúde desvalorizou a formação dos médicos pelas farmacêuticas. Ana Jorge, além de desvalorizar, também rejeita, desta feita o caos que se instalou nas urgências em sequência da gripe que assola o país. O Primeiro-Ministro é mestre na arte de desvalorizar e, como se vê, desvaloriza muito. Aguarda-se pois a última desvalorização relativamente à aprovação do Estatuto dos Açores, uma vez que o Partido Socialista também já desvalorizou as críticas do Presidente da República. Quem sabe nas próximas eleições Sócrates não seja também desvalorizado pelos seus eleitores.

fotografia: minha

também no Geração Rasca

Croniquemos então!


Ide ao PNETMulher ver e ler o desafio que vos faço.

domingo, 28 de dezembro de 2008

As festas felizes

No rescaldo destas festas felizes com a economia nas últimas, diz-se, as finanças num estado aparentemente calamitoso, se as avaliarmos pelas imagens dos saldos que vão passando nos serviços noticiosos ninguém confirmaria o estado alegadamente desastroso, a educação tão má como a economia, alunos que por "brincadeira" ameaçam uma professora com uma arma de plástico, uma professora que, ainda estou para perceber porquê, não faz queixa nem participação dos "pequenos brincalhões" e uma directora de turma e presidente do Conselho Executivo que se remetem ao silêncio, é normal, alega-se, um Primeiro-Ministro que fala aos seus súbditos de pé, dinâmico e optimista, eis que chega agora uma outra calamidade: a gripe. E a gripe, ai de nós, mais não seria do que uma mera gripe, se os hospitais e serviços de atendimento não votassem os seus utentes engripados, alguns gripados também, a esperas impensáveis, disparatadas e absurdas e a serviços de atendimento telefónico que deixaram cerca de trinta e oito por cento das chamadas por atender. Enquanto não se consegue uma consulta pode e deve, a crer no que tenho ouvido, recorrer-se à auto-medicação, uns anti-inflamatórios e anti-gripais bucho abaixo, pode ser que assim larguem a urgência dos hospitais. Gente mais maçadora. Que festas felizes.
também no Geração Rasca

Crónica de uma mulher achacada

Uma mulher é saudável, é saudável ainda antes de ser mulher. Desconhecem-se-lhe maleitas de monta maior, bexigas, que bom que era quando se podia dizer bexigas em vez do sofisticado varicela, papeira e outras coisas de somenos, duas urticárias, litíase, bem mais bonito do que pedra nos rins, e que lhe deu alguns dissabores, acima de tudo, muitas dores, tensão baixa, hipotensão, e nada de mais. De repente vê-se marmanja, quatro décadas volvidas, quatro décadas e uns anos, e eis que lhe batem à porta, em sequências de quatro, faringites. Dirige-se ao Hospital, não é um hospital, mas substitui-o nesta espécie de achaques, e sai de lá com a receita para uma zaragatoa, perdão, exsudado, reparem como se modifica o linguajar, as expressões populares a serem teimosamente substituídas pelos equivalentes em linguagem médica, dois antibióticos, credo, valha-me sei lá quem, e umas pastilhas homeopáticas para os males da faringe. Gostei deste pequeno apontamento alternativo do médico de serviço. Nada como acalmar as hostes com uma mezinha livre de químicos.
E aqui me quedo perplexa, assustada com o que será de mim se começar a ter estas moléstias. Se fosse em aulas, como uma das vezes anteriores, lá estaria agarrada a livros, parindo fichas e mais fichas para as aulas de substituição, nos dias que correm há que entreter os alunos sempre, mesmo que se esteja em casa comprovadamente doente, sabe-se lá como iriam reagir à loucura de terem uma hora livre, mas assim será se for em tempo de aulas, isto e ver-me excluída do meu Excelente, o meu rico e querido excelente. Uma maçada e um problema. E não sendo em tempo de aulas, o que me preocupa com estas idas frequentes ao SAP é a crescente intimidade que passarei a travar com o local, a conhecer as manhas à máquina de café, é sempre em frente a ela que me sento, a passear-me lápis em riste para corrigir as imperfeições do português, ai que raiva, a raiva que me fazem, passar a ser tu cá, tu lá com as funcionárias Então, o que a traz por cá? Ai sabe lá, estou tão malzinha, tão apoquentada, é importante usar apoquentada, aleijada, álérgia, sinósite, tirar uma chapa e ir à faca, também.
Este estreitamento de relações alastrar-se-á aos demais utentes, imagino-me até a lutar com eles por causa do meu lugar em frente à máquina de café, tudo menos aquele lugarzinho em frente à máquina do café, ou a trocar impressões sobre os médicos, que sabemos sofrem do mesmo mal que os professores, os pacientes sabem sempre muito, toda a opinião pública sabe sempre muito no caso dos professores, trolhas, mulheres-a-dias, cabeleireiras e executivos. Por último, receio a pasta de vocabulário médico, medicinal e farmacêutico que terei de abrir na minha memória, não será o antibiótico, passará a ser o Clavoxil, o Klacid, há que ter propriedade de linguagem, excluo o Brufen porque passámos a ser unha com carne. Virá tudo acompanhado com princípios activos, dosagens, tomas e efeitos secundários. Rezem para que recupere desta debilidade faríngica, ai de mim, estou destroçada, se não verão este espaço transformado em muro das lamentações.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

The Christmas life

Bring in a tree, a young Norwegian spruce,
Bring hyacinths that rooted in the cold.
Bring winter jasmine as its buds unfold -
Bring the Christmas life into this house.

Bring red and green and gold, bring things that shine,
Bring candlesticks and music, food and wine.
Bring in your memories of Christmas past.
Bring in your tears for all that you have lost.

Bring in the shepherd boy, the ox and ass,
Bring in the stillness of an icy night,
Bring in the birth, of hope and love and light.
Bring the Christmas life into this house.

Wendy Cope


Um Feliz Natal a todos os que por aqui passam.

Mercados de Natal (15)

Praga
foto: minha

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Lista de presentes

Dezembro. Pelas frestas da portada chuviscam-se-me gotículas de sol como feixes dourados, entrevejo a luminosidade, pressinto a manhã perfumada de sol e bela como apenas os dias de sol são. Agradeço veneranda, a quem saber-se-á jamais, a bênção de dias soalheiros em pleno Dezembro. E deixo que o Dezembro presente varra todos os passados, cinzentos, húmidos, frios. Dias breves sem sol. Faço-me à estrada deixando para trás tudo, a escola, os alunos, um período inteiro de aulas e trabalho, cansaço, exaustão. Faço-me à estrada e organizo mentalmente ao que vou. Natal. Presentes. E faço-me à vida como gosto, estrada fora, preocupações ausentes. Mentalmente sem papel ou lápis refaço listas, escrevo textos que deito janela fora se se me tornam inconvenientes ou metediços. Os textos são assim. Reescrevo outros, a frase, é sempre a primeira frase que me chama quando me lanço estrada fora. E já perdi muitas primeiras frases e muitos textos. Há textos que só se deixam apanhar pelas primeiras frases, como um fio numa meada de lã, encontrar sempre a ponta do fio, sem ela o novelo tornar-se-á num enriço, uma amálgama de fios desordenados, sem princípio nem fim. Perco-os por isso. Mentalmente distribuo presentes. E chego ao lugar com calma, a calma de um dia de sol belo, os dias de sol são menos tristes se sol houver. E faço compras. Telefonemas. Livros para a criançada não sem antes confirmar E o Ruca, têm o Ruca no Natal? Não? E sigo, ando por entre estantes e escaparates, gente com pressa, filhos, família. E confirmo a lista. Está tudo. Recolho a lista e regressa-me a culpa E o Papá? Está tudo não. Desta vez não foi o lugar vazio. Foram os presentes que não te comprei.

Mercados de Natal (14)

Christkindlmarkt, Viena
foto: minha

Terça-feira

À semelhança de outras situações na vida há que saber dizer não, romper com a tradição se elas não nos servir, trilhar caminhos livres sem a obrigação dos presentes, o dever dos festejos, a imposição de felicidade oca e balofa, a grilheta às ocasiões de circunstância ausentes de carinho e de afecto.

O resto da crónica está no sítio de sempre, no PNETMulher, claro.

imagem: Gaëlle Boissonnard

domingo, 21 de dezembro de 2008

Nacos de prosa (5)

Calma, meu anjo. Não se trata de uma gordinha pela metade, Meia. Nem da meia (aquilo de colocar nos pés) de uma gordinha, portanto, uma meia-gordinha.
Trata-se de você mesma, leitora, navegadora da Internet. Eu sei que você é meia-gordinha e que existe um erro de português aqui. Mas meio-gordinha não é o mesmo que meia-gordinha. Que me perdoem os amargos gramáticos, mas gordinha é meia. Meia-gordinha, Meia-gordinha soa melhor, sua menos. Meia-gordinha, como você está, no ponto.
Pró meu gosto, meia-gordinha é o que há. Aliás pra todo mundo que conheço. Só que ninguém assume: o brasileiro, influenciado pela moda francesa, quer a magra. Pra pegar onde? Pra segurar o quê? Pra recostar em claviculares saboneteiras? Pois é muito melhor espalhar sabonete pela bundinha de uma meia-gordinha.


Mário Prata, Diário de um magro 2. A volta ao Spa, Rio de Janeiro, Objetiva

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Nada

Cansada, exausta, extenuada abeiro-me do computador, quem sabe não sairá algo, esperança vã que me tem acalentado o espaços mínimos em que lazer se me permite, e impaciente vou procurando as palavras, chamo-as baixinho como a um gato, exactamente como um gato, ficam lá onde estão, acredito que imperturbáveis, nada sinto em meu redor, nem o restolhar mansinho das palavras quando chegam, silêncio, apenas silêncio, das palavras nada.

Mercados de Natal (11)

Spittelberg, Viena
foto: minha

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Eis que chega mais uma terça-feira

O velho tem os dias contados, porém. O velho é velho, nos dias que correm ninguém é velho. O pobre velho ver-se-á em breve num desses programas televisivos que operam verdadeiros milagres e declaram guerra feroz às imperfeições. Veremos o velho de boca aberta, entrapado com um turbante e, se tudo correr como esperado, teremos um velho que já não é velho, igual a todos os outros velhos que já o foram e com uma lista invejável de plastias: abdominoplastia, rinoplastia, o nariz rotundo é muito pouco elegante, uma blefaroplastia para um olhar mais jovem.

Ide ler sobre o velho no sítio do costume, no PNETMulher, já se sabe.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Sobretudo

Podia começar com a famosa citação de Álvaro de Campos, O que existe em mim é sobretudo cansaço. Podia usá-la pois. O início de texto atraente e chamativo, a vontade de entrar pelas palavras e mergulhar no cansaço que existe em mim. Em mim existe sobretudo cansaço. Cansaço da vida profissional virada do avesso. Cansaço de continuar como sempre, como se de nada se tratasse, cansaço da Ministra da Educação, do Primeiro-Ministro, das faltas dos deputados. Cansaço crepuscular de opinadores sobre tudo e todos, achadores de tudo e mais alguma coisa, convictos palradores de opiniões balofas prenhes de preconceitos e ausentes de conhecimento do que se fala afinal, pedagogos de pacotilha, mestres de vão-de-escada formados em coisa nenhuma que não seja tudo, cansaço da ignorância alardeada como bandeira, cantada como hino, cansaço de convicções pré-fabricadas, cansaço de opiniões ocas, cansaço de peroradelas inanes, cansaço deles todos. Muito cansaço.

Mercados de Natal (9)

Schönbrunn, Viena
foto: minha

domingo, 14 de dezembro de 2008

Natal

É Natal cá em casa.
A lareira acesa.
As gatas a dormir.
A árvore de Natal sóbria,
luzes que brilham,
mínimas como bagos de luz.
A tranquilidade do dia que se embala
definitivamente
nos braços da noite
chuvosa e fria
lá fora.
O crepitar dos corações solitários.
É Natal.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Breve crónica de um almoço perfeito

À mesa mais mulheres do que homens, apenas por uma maioria estreita, mesa redonda convidativa a conversas intensas, comensais bem-dispostos e disponíveis para um convívio harmonioso e despretensioso, exactamente como gosto. E a conversa fluiu. Foram blogues, cães e gatos, signos, escritores, cidades, línguas, livros e mais seria se a sineta das obrigações não tivesse soado para cada um. Um almoço perfeito.


Espreitem aqui para uma versão completa.

Mercados de Natal (8)

Viena
foto: minha

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Soltai as trunfas

Podia dizer-vos para irem buscar as calças justas, deixar crescer as trunfas, agarrar-se à guitarra e arrebanhar a primeira garota gira e estilosa, como se amanhã não existisse. Digo-vos apenas para irem ali ao lado deixar uma palavrinha ao metaleiro que completa hoje um ano de blogosfera. Enquanto isso deixo-lhe a tarde que esperemos possa um dia passar com uma cachaça de rolha. Nem só de metal vive um homem. Ele sabe que sim.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Nos dias de hoje

Ser professor nos dias de hoje implica muitas coisas. Implica, por exemplo, isto Stora, a stora sabe aquela música dos Guns n' Roses que tem uma rapariga a ter um orgasmo? É que era mesmo uma rapariga a ter um orgasmo lá no estúdio, isto Stora que nota é que eu tive? Não sei, não me lembro. Mas a nota da Maria a stora sabe. Já não gosto de si, stora ou isto Stora, o stor de Educação Física é todo bom, stora é que o homem é todo bom e isto ainda Stora, o Francisco rapou os pêlos das pernas. Todinhos. Tá todo lisinho agora, stora. Ser professor nos dias de hoje implica muitas coisas.

Mercados de Natal (7)

Bratislava
foto: minha

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Tu cá, tu lá

Os dias de invernia revelam mistérios insondáveis encobertos pela bruma. Um desses dias de frio pálido a revelação fez-se como epifania Vê lá tu que a minha mãe está cheia de tosse. As sogras, entre outras maleitas que variam em intensidade de acordo com a tipologia de sogra, têm tosse, portanto não me surpreendi, surpreendente é que não tenham tosse nem coisa alguma, e continuei com a minha vidinha não sem antes ter lamentado o facto. Muito bem. Terei acrescentado o habitual, sou rapariga parca em falas no que respeita a assuntos médicos e estados de saúde fragilizados por doenças de pouca monta, largo habitualmente um É fruto da época. Está muito frio ou Anda aí uma virose furiosa. Pois, pois, uma maleita danada. Uma gripe horrorosa, consoante os dias e a disposição e ando para a frente sem me perder em delongas e em lamentos pungentes e ladainhas lancinantes Não lhe passa. Está a tomar Azomyr mas não lhe passa a tosse. Tendo em conta que estava um frio de enregelar até o mais afoito ser invernoso não valorizei a verbalização mas fiquei em suspenso com a prontidão do nome oficial da mezinha contra estados calamitosos, aparentemente um antitússico que, pela desenvoltura, devia ter-me já sido apresentado antes. Não tinha. Não conhecia. Fiquei a cogitar de onde, como, quando e porquê surgira assim, sem mais e com inusitada rapidez, o nome de um fármaco, particularmente vindo de um ser para quem o estômago começava no estômago e se prolongava pelo abdómen e para quem os enigmas da medicina mais banal e quotidiana sempre foram mistérios tão insondáveis como Stonehenge ou a construção das Pirâmides. E hoje ele apareceu outra vez A tosse da minha mãe não passa. Nem com o Azomyr. Quanta intimidade. O tratamento coloquial e estreito. O que me incomodou foi o tu cá, tu lá com o dito antitússico, ainda por cima incompetente, a abordagem sem cerimónia nem salamaleques. Prevejo um estreitamento de relações com o Brufen, conversas de pé de orelha com o Benuron, tertúlias com o Clónix, bate-papos com o Aerius e conferências com Ciproxina, um dos antibióticos de largo espectro, fala-se muito neles nos dias que correm, algo me diz que são importantes.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Com alarme incorporado

No dia em que resolvi, alvitrei, aventei a hipótese de trocar as minhas lentes de contacto mensais, à razão de setenta e oito euros para seis meses, por umas diárias, à razão de sessenta euros por mês, estava nos antípodas de imaginar que este raciocínio, elementar e básico que qualquer criança em idade escolar resolveria sem dificuldade, se transformasse numa operação matemática elaborada e complexa e uma carga de trabalhos.
Entrei na loja curiosa, era a primeira vez que ali entrava, e após a abordagem inicial e o atendimento solícito do empregado, jovem e sorridente, disse ao que vinha não sem antes inquirir o preço das ditas lentes por um, um mês apenas. Perante o preço exclamei São mais caras então. O empregado pendurou a expressão de quem estava a Leste, mais a leste impossível, corria o risco de já estar a Oriente, quando repeti a lógica, da batata naturalmente Se para um mês custam sessenta euros e para seis meses custam quase oitenta, fica mais barato para seis meses. Do outro lado nada. Nadinha. Nicles. Népia. Desisti. Venham as de seis meses que a vida está cara e a carestia não se compadece com devaneios de uma criatura enfadada com as suas lentes semestrais, de resto, um assunto de importância cabal no contexto socioeconómico actual.
Continuava a olhar para o empregado, é mais forte do que eu, valha-me a santa, caramba, um raciocínio do mais elementar esbarrava contra a inabilidade do rapaz como se chocasse contra o Muro de Berlim. Arrumei a tralha, quase cem euros em coisa nenhuma que não servia para vestir nem comer nem ler mas sem a qual correria o risco de comer o que não queria, vestir o que não desejava e livrinhos só se tivessem letras corpo dezasseis é que lhes conseguiria deslindar um sentido. Saio da loja a refilar mentalmente A culpa é dos professores do Básico, há sempre mais culpados além de nós próprios, admite-se que não aprendam a ler, escrever e a fazer operações de aritmética logo no primeiro ano? Mania de não ensinar a tabuada. E depois vêm com a #$%&”@ do Magalhães. Ensinem-nos mas é a ler e a escrever, rais partam, e deixem-se de folclores. E ia eu nisto, refilando, respingando e retorquindo quando o alarme da óptica deu sinal de si. Um barulho irritante e estridente que orientou olhos múltiplos na minha direcção. O rapaz fez um olhar condescendente extensivo às colegas de profissão e ordenou-me que continuasse a marcha, lá para onde ia, provavelmente aliviado de me ver pelas costas, ninguém gosta de ver a vida dificultada por operações aritméticas arrojadas e complexas dignas de um qualquer Einstein. Era o sistema, o sistema, essa entidade invisível, omnipresente e omnipotente, tem sido acusada dos mais variados crimes, mais um menos um não era relevante. Que fosse o sistema pois.
Quando entrei no supermercado, o alarme reincidiu. Mais um barulho estridente. Depois de reclamar, o empregado, segunda versão, disse que não fazia mal, era o dito sistema. Irritada com tanta apitadela questionei se quando saísse o alarme iria tocar. Disse que sim com a maior naturalidade, mas, como gosto deste mas, para não me preocupar. Ai preocupo-me, preocupo-me, é óbvio que me preocupo Imagine que passam os meus alunos e presenciam a cena? O rapaz condescendeu e ficou-me com os cem euros de próteses oculares e quando saí afirmou, perante as apitadelas inexplicáveis Já noutro dia tivemos aí uma professora que também apitou. E assim ficou tudo esclarecido. Já não bastava o médico conhecer-me pelo cabelo, ser ofendida pela maga dos bigudis, agora apito no supermercado.

Mercados de Natal (1)

Munique
foto: minha