Páginas

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Sol de inverno

Hoje. Segundo tempo da manhã. Dia de sol de inverno. Chego à sala. Furiosa com as faltas insistentes e largo um sermão irritado. Sei que o vêem. Sei que o sentem. Conhecem-me muito bem. Do meu lado esquerdo, enquanto escrevo o sumário e ajeito os livros na secretária, a insistência de uns olhos castanhos de súplica emoldurados por uma longa e cuidada cabeleira castanha. Stora, ouça-me, por favor. Vocifero que não pode ser, que não, que não aceito mais justificações de faltas fora de prazo. Não aceito. Não pode ser. A súplica continua, setora, não me grite, stora, por favor ouça-me. Insisto que estou a ouvir mas que não pode ser. Não vou fazer mais isso. Estendo-lhe as duas folhas A5, com ar assertivo. Não pode ser. Ela senta-se, resignada. Quase no fim da aula chama-me do lugar e pede-me que mais uma vez lhe dê atenção. Atenção. A atenção que todos precisam, pode ser um sorriso, uma festa no cabelo, uma risada em comum ou apenas a dúvida esclarecida na intrincada gramática alemã. Dou-lhe atenção. E ouço. Setora, a minha mãe está a trabalhar no Algarve. Só a vejo raramente. O meu irmão arranjou uma namorada e passa os dias com ela. Fico sozinha. Só quando eles vêm a casa é que me podem justificar faltas. A voz começa a tremelicar, os olhos castanhos de súplica mostram-me uma fragilidade que nunca tinha visto antes naquele corpo escorreito, sempre aperaltado e pronto a disparar se a importunarem muito. Os olhos subitamente brilhantes, lágrimas que espreitam e o lamento Que culpa tenho eu? Agarro-lhe a mão e tranquilizo-a. Nenhuma, digo, vá não chore. Tudo se resolve. E levo os papéis A5 de coração apertado. Muito bons são eles.

Momento sitemeter (24)

A quem procurou por 'blog a curva da estrada' e chegou aqui espero que não tenha ficado desiludido. Este blogue já teve melhores dias, pobrezinho.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Um queixume por dia nem sabe o bem que lhe fazia (5)

Três semanas para escrever meia dúzia de linhas e ainda refilam se lhes é perguntado pela prosa. Não há paciência. Ainda menos para eu me deixar irritar com uma coisa destas.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Estou a ler 'Meine russischen Nachbarn"


O penúltimo dia de Agosto brindou-me com chuva. Pela janela um dia cinzento. A cidade meio pálida e precocemente escura. Largo as malas e faço o que mais gosto: passear, ver, deambular com a ligeireza de quem nada tem para fazer se não deixar-se ir por entre a multidão e sentir, respirar, ver.
Subo a rua. O passo mais rápido pela chuva insistente na cidade que me surpreende sempre e nunca se esgota em cada visita.  E entro na livraria. Resisto a quase tudo menos a uma livraria recheada de títulos novos, livros baratos e o ambiente de uma religiosidade veneranda de silêncios pontilhados de virar de páginas virgens à espera de serem lidas. Um livro. Falta-me sempre um livro.
Os olhos recaem sobre o mais recente livro, à data, de Wladimir Kaminer, Meine russischen Nachbarn, e é esse que há acompanhar-me nos dias de Berlim, dias de sol e de chuva, dias de muito ver e de digerir história e gente a cada esquina. Não o acabarei, contudo. A cidade absorve-me.
Meine russichen Nachbarn, os meus vizinhos russos, conta a história de dois russos, Andrej e Sergej que convenientemente ocupam o andar por cima do de Wladimir Kaminer, lá na Schönhauser Allee, algures em Prenzlauer Berg, uma zona emergente de Berlim a viver os seus melhores dias depois da Queda do Muro em Novembro de 1989.Andrej e Sergej encetam uma nova vida nesta nova Europa que se quer livre e democrática derrubados os muros físicos que a cortavam em duas, os de lá e os de cá, Ossis e Wessis. Rondando os trinta anos,  Andrej de Leningrado, hoje São Petersburgo, e Sergej da Bielorússia provocam uma pequena revolução na vida aparentemente pacata dos habitantes do prédio de Schönhauser Alle. A porteira não gosta, os vizinhos reclamam do trompete logo pela manhã. Andrej luta com a língua alemã e apaixona-se pela professora enquanto Sergej assina exemplares d 'O Capital de Karl Marx que venderá no e-bay como relíquias do grande filósofo e ideólogo. As aventuras sucedem-se.
E ambos teriam tido uma vida anónima e tranquila, caso tivessem escolhido um outro local para viver. É que Kaminer é um observador atento da realidade, um crítico mordaz das várias vidas que já teve e escritor implacável a quem as aventuras acontecem sempre e de forma renovada. Não poderia desperdiçar esta oportunidade e fixa-os a uma narrativa de leitura muito fácil sem artifícios ou malabarismos estilísticos e despojadamente cativante. Na vida destes dois russos vemos desfilar a União Soviética a que Kaminer disse adeus em 1990 para abraçar Berlim como sua nova pátria, as cidades também são pátria. E as histórias entrelaçam-se. E os tempos. Há a União Soviética com as suas características peculiares, os russos que não riem e Kaminer explica porquê, os moscovitas, reconhecidamente rudes nos modos e a Rússia actual de novos-ricos. E há a Alemanha e Berlim, a vida na cidade, ressentimentos e singularidades. Muito portanto num pequeno livro de 222 páginas em tom humorístico e divertido.
A leitura implica um tu com que se possam trocar impressões, um interlocutor que se possa rir connosco ou opor-se ao que bebemos nos livros, um duelo de palavras e ideias. Para minha grande pena só dois livros de Kaminer estão traduzidos em Português O panorama literário alemão virou uma página acompanhando os ventos de mudança na Alemanha e na Europa. Wladimir Kaminer é um dos mais lidos escritores de língua alemã, por cá quase um desconhecido. Para quando mais um Kaminer em português, senhores editores? Até lá deixo-vos com uma pequena amostra:
"Um professor esforça-se por explicar a um pioneiro o que é o comunismo numa linguagem acessível. 'O comunismo é', diz ele, 'quando tens de comer morangos com natas todos os dias ao pequeno-almoço '. ‘Mas eu não gosto de morangos com natas’ responde o aluno. 'Não interessa', esclarece o professor,vais comê-los na mesma, quer gostes quer não".

Também no Delito de Opinião

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Limites

Em Março último, Cavaco Silva afirmava que havia limites para os sacríficios exigidos aos portugueses. Além dos limites aos sacríficios devia haver limites à paciência dos portugueses e ainda limites à distinta lata do primeiro ministro. E depois querem convencer-nos de que não há alternativa à austeridade. Esqueceram-se de um adjectivo possessivo de extrema importância. Não há alternativa à nossa austeridade, já que a vossa, senhores governantes, vai continuando a ser uma miragem. Tenham vergonha.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Às vezes

Lareira acesa.
Um copo de vinho tinto.
A noite que se recolhe lá fora.
Pacificação possível numa noite fria de Outono.

sábado, 19 de novembro de 2011

Vidas verdadeiramente despreocupadas


Um murro no coração

A cada ausência sua dor. Hoje não foi a revolta. Não foi o choro descontrolado. Apenas a sensação de ficar cada vez mais só e ver o mundo como o conheci partir lentamente à minha frente. Um por um.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Outono

Às vezes sinto-me como uma árvore sem folhas a quem, um a um, vão cortando ramos. Cortes fundos. Pedaços a menos.

À memória da minha tia de quem herdei o gosto pelo vermelho e com quem aprendi a fazer sonhos.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Confissões de uma mulher perdida

Descobrimos que só pensamos no mesmo quando até nos momentos tranquilos do quotidiano encontramos marcas, indícios, evidências da nossa nova condição de depauperados e humilhados. E não, não se pense que foi quando passei por uma montra decorada de Natal cheia de bolas reluzentes e pais natais pachorrentos e me impus o treino forçado para combater o próximo Natal e o outro, talvez ainda o outro e quem sabe todos os Natais doravante. A recusa determinada em não ver, não entrar sequer, ignorar por completo e não ter a mínima das tentações. Assim como quando acabamos uma relação e cortamos com tudo o que faça lembrar o dito cujo, um vai morrer longe enérgico um chega pra lá catártico, quero mas é esquecer que existes, ó Natal. Nada disso. Foi quando num fim de tarde batido pela chuva e numa conversa em alemão sobre o Outono comecei a achar que o Rilke era um visionário e que aquele poema que se me entrava pela alma estava prenhe de referências a esta triste sina lusa. Enquanto a discussão decorria dei por mim a fazer associações ao encontro deste fado lusitano de desgraçados e enjeitados. Podem chamar-lhe intemporalidade, que sim, que quando um poema é lido vive outra vez, muito bem, apelar à estética da recepção e nomear-me como co-autora do texto, perfeito. Nada me convencerá. Quando num insuspeito poema de Rainer Maria Rilke sobre o Outono, o défice, a ajuda externa e a Troika  estão presentes já não me resta mais nada. Estou perdida.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Berliner Mauer (9)

Haus Schwarzenberg.

fotografia minha

Berliner Mauer (8)

East Side Gallery

fotografia minha

Berliner Mauer (7)


Potsdamer Platz
 fotografia minha

Berliner Mauer (6)

Niederkirche Strasse

fotografia minha

Berliner Mauer (5)

Bernauer Strasse

fotografia minha

Berliner Mauer (4)

Potsdamer Platz


fotografia minha

Berliner Mauer (3)

fotografia minha

Berliner Mauer (2)


Berliner Mauer (1)

Bernauer Strasse, Berlim.
fotografia minha

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Segunda pela fresca

Testes na mão prontos a entregar. Uma pergunta final atrás dos óculos, olhos excitados e apressados, o teste sobre a mesa com a caneta em riste Stora, é preciso pôr o país? Respondo Não, não é. Um rosto entrepõe-se na conversa, alto e espigadote, a adolescência tão presente no rosto sarapintado de ameaça de barba. Remata Estás ver? Não é preciso pores o país. Confirmo, Sim, pode deixar omisso. Ao meu lado, a resposta rápida como o meu eco Ouviste? A stora diz que podes deixar omisso. Arrumo os testes, preparo-me para sair. Mas eu não sei o que isso é, de sorriso largo e encaminhando-se para a porta. Só faltou perguntar se era com h.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Apetece-me não

Estão a ver aquela banha da cobra contemporânea de que temos todos de ser felizes, ó tão felizes, levar um vida saudável, largarmo-nos em caminhadas, comer fruta e vegetais, espantar o stress, levantar os rabos dos sofás e mexê-los, gastar menos e ter uma vida toda ela sorrisos, ursinhos com flores e citações muito fofinhas e dar graças aos deuses pelas ninharias do dia-a-dia? Pois. Excluindo espantar o stress não me apetece nada. Nada de nada. Apetece-me o sofá e um chá quente, biscoitos se biscoitos me apetecer. Apetece-me não ir, não andar, não fazer. Apetece-me não. Posso?

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Pão-por-Deus

Lá fora há um dia de sol que me cumprimenta pela janela da sala. Melros que se penduram na vedação ou rasam a relva depenicando aqui e ali. A gata deitada a meus pés no tapete e a quietude que me retempera dos dias de alma gelada, acontecem esses dias, têm acontecido muito dias desses. E os cães ladram. Um ladrar díspar subitamente insistente. Vem aí gente, gente desconhecida. A gata inquieta-se como se cão fosse. Vem gente. Eu sei que eles hão-de vir. A campainha estridente. Vêm aí. Apuro o ouvido enquanto caminho para a porta. São eles. Em escadinha e de rostos sorridentes aparecem-me ao portão e olham com curiosidade quem os chama da porta de casa Venham cá! E vêm. Abrem os sacos de pano para onde vou depositando rebuçados, chupa-chupas, moedas de chocolate e línguas de gato, irmãmente distribuídos para cada um dos sacos e atentamente supervisionado pelos olhinhos brilhantes e bochechas rosadas. E lá vão arrastando os pés, chilreando como só eles e verificando a safra Já tenho muitas coisas ou Obrigada ou soltando verbalizações impensadas de que só as crianças são capazes Esta casa é muito engraçada, Finalmente alguém que nos abre a porta e um lamento Senhora, seja boazinha para nós que este é o último ano. Regressam os que no ano anterior vinham com as mães e tias, agora em bandos chilreantes, outros que assumiram o papel dos progenitores e orientam os mais pequenos na tradição. Alguns mais afoitos dão-me um beijinho e relembro-os Para o ano há mais! Tradição cumprida. Para o ano há mais. Lá fora há um dia de sol que me cumprimentou pela janela da sala. Cá dentro faz sol.