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sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Tortura medieval

Por fracções de segundo julguei que a minha orientação sexual espreitava naquele momento como nunca antes. É certo que nunca mulher alguma antes se tinha derramado sobre os pomos que eu exibia lampeira e descansada, mãos atrás da cabeça, como gosto de dormir ou de descansar. Que é lá isto? As mãos suaves e tépidas. Ó valha-me deus! Logo agora. O que tantos homens teriam de aprender com a competência e expertise da clínica à minha frente. Umas torcedelas de olhos para a maquineta em frente. Tudo bem, afirmou. A densidade atribuída à minha não-desova. Depois saio da sala, soutien no bolso, -as figuras que uma mulher faz- e logo após, mais um dos procedimentos a que as mulheres adultas e maduras estão sujeitas. Isso, agora o braço por cima, mais para dentro, está bom, e a advertência Vai doer. Vai doer? Como vai doer? Então mas isto não é tecnologia de ponta? Sim, sim, mas dói na mesma. Ai dói na mesma? E depois a tortura para que nenhuma mulher está preparada, valha-me a santa, o santo, o filho e o neto da santa e do santo. A mama, coitadita, em cima de um tabuleiro, e como um torniquete, algo que apertava, estatelava, esmagava, comprimia, calcava, espremia, premia, amassava, amachucava, amarfanhava, amolgava, achatava, aplanava, acachapava as minhas ricas maminhas. Tudo acompanhado com uma dor insuportável e a confirmação Pois é, dói um bocadinho. Um bocadinho? Depois daquilo, temi que em vez das meias luas que me ornamentam o torso, sairia de lá com duas prateleiras -o jeito que dariam para pôr o giz e o apagador enquanto esbanjo conhecimentos na sala de aula. Portanto, isto é só para avisar que para a próxima vez que for sujeita a esta verdadeira tortura medieval não respondo por mim e antes de lhes começar a atacar as canelas - os pés eram a única parte do meu corpo capazes de actuar adequadamente à situação- chamo o Comendador B para lhe dizer umas palavrinhas.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Texto procura-se

O dia para trás das costas finalmente. O caminho tranquilo na direcção do ocaso laranja. Uma tarja de mar inesperada no equinócio de Inverno iminente, o ziguezaguear pelas ruas da aldeia e, de repente, eis que me salta um texto ao caminho, pequeno é certo, as primeiras três palavras apenas, mas era um texto. Reconheci-o pela forma inesperada com que me surpreendeu. Sem aviso. Os textos não primam pela deferência. Aparecem sem se anunciar e saltam-me ao caminho em alturas pouco oportunas. Os textos fazem-me isto muitas vezes. Depois de passar as hortênsias do lado esquerdo, recompus a frase inicial, juntei-lhe mais uma palavra, agora com vírgulas a separar e, antes de chegar aos penachos do lado direito, já lhe tinha acrescentado um outro substantivo, características, talvez ou particularidades. Pisca para a esquerda, o ocaso alaranjado, viro à esquerda. Quando passei o chorão do lado direito ainda o sentia preso na imaginação, bem agarrado, como quando se segura um pássaro nas mãos, as asas em linha recta com o corpo distendido ao ritmo da respiração. Estava vivo, portanto. Chego a casa. Abandono-me ao ritmo que largo os livros em cima da mesa. Um suspiro profundo a recompor-me do dia e o texto soltou-se-me à primeira distracção. Ainda tentei agarrá-lo mas quando lhe deitei mão tinha-se libertado pela porta da sala entreaberta contra o crepúsculo lá fora. E foi assim que fiquei sem ele, esse tal texto que tinha na mão e em mim, esse que leriam agora caso não fosse tão rebelde e não me tivesse fintado ao pôr-do-sol.

sábado, 24 de novembro de 2007

Centros comerciais

Há quem diga que centros comerciais são sítios feios, catedrais do consumo e consumismo, lugares sem alma, vazios de coração onde, quando entramos, deixamos abandonada à porta a nossa essência. Pois eu digo-te que não, porque para mim todos os sítios podem ser belos, se a nossa alma também o for. E como a sinto tranquila e recostada na almofada da paixão, de igual modo se me revelam os espaços físicos e temporais por onde contigo deambulo, espelhando o estado de alma abençoado. O poeta dizia há metafísica bastante em não pensar nada. Eu, que gosto muito do poeta, digo-te, meu amor, há uma plenitude indizível em não pensar nada, se estamos lado a lado, porque não precisamos de nada pensar, que o sentir basta-nos para viver. Que interessa se passeamos entre gente apressada e tropeçamos em sacos de plástico ou de papel reciclado, repletos de marcas e slogans publicitários? Importa, se nos movemos em nuvens de fumo ao som de música estridente e nos perdemos, por segundos, na multidão exaltada e irrequieta, se sempre juntos em nossa alma estamos? Incomoda-te, quando mergulho nas camisolas coloridas ou brancas, nos tops básicos monocromáticos ou nas t-shirts com florzinhas azuis ou arabescos laranja? Não, pois não? Porque, se te pergunto gostas desta? Tu, a quem pouco movem as camisolas, olhas e respondes que sim, a mim tudo fica bem, dizes. Pensas com o sentir, meu amor, e por isso me dizes tão bela. O amor é uma companhia. / Já não sei andar só pelos caminhos, porque já não posso andar só dizia o poeta. Também eu já não sei andar só pelos caminhos.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Ai que Saudades

da Jamaica e de Cuba e de Nova Iorque e do Brasil e de Cabo Verde
e duma água de coco
e duma caipirinha
e dum mojito
e duma espetadinha de camarão na praia e
duma cachupa no Mateus.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Cheiro a puta

Desconheço de onde terá partido esta ideia do cheiro a puta. Não tendo cheirado nenhuma, não que me lembre ou que saiba, não sei de onde o fui buscar nem porque adoptei esta denominação. O Verão também cheira. Um perfume doce e cálido como um beijo no pescoço. O cheiro a puta é diferente. Trata-se daquele odor intenso, como por exemplo, pot pourri - que nojo- ou incenso de rosas - que porcaria-, um odor quente e incomodativo - que vómito-, sempre associado às rosas dos perfumes de gosto duvidoso- que grande nojo-. Entro no clube de vídeo, o cheiro pestilento do tabaco no ar e a observação de rompante Que cheiro! A rapariga, de cigarro na mão, arremessa-me um olhar interrogativo Cheira mal? Cheira a tabaco. No mesmo instante o cigarro apagado e a informação Deixa lá que a partir de Janeiro já não pode ser. Entretanto, o cheiro nauseabundo do tabaco num recinto fechado em dia de humidade copiosa intensificava-se. Mais um reparo E quanto mais para dentro, pior. A rapariga meio sem jeito, mas apenas meio. O outro meio estaria a chamar-me nomes pelas costas pela interrupção do cigarro prazenteiro e os remoques constantes, ou pela frente, uma vez que, perante o casaco semiaberto, olhou curiosa. Não, não estou grávida, afirmei, Sou mesmo assim, perdigueira. Na tentativa derradeira de me minorar o sofrimento, a rapariga refundiu-se atrás do balcão e soou entretanto o ruído fricativo de um ambientador. Três, quatro ou cinco baforadas e o odor repugnante pelo ar, esgueirando-se entre as caixas do DVDs até me atingir letalmente o olfacto. Disse-lhe Que horror! Que cheiro este! Ainda é pior! É melhor fumares. Espreitei lá para os lados da secção de filmes x-rated por via das dúvidas. O cheiro a puta tinha de vir de algum lugar.

Os meus respeitosos agradecimentos

à Ana e à Sinapse
que me salvaram a mãe de morrer envenenada.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

À atenção dos transeuntes, amigos e visitantes

O que é que uma mãe não faz por uma filha? Tudo, certo? Pois o que uma filha faz por uma mãe não anda muito longe do que o que a progenitora se permite pelo seu rebento. Primeiro o diminutivo. Nonô? Sim? Lembras-te de quando puseste o fisalis no blogue? Lembro. E lembras-te que apareceu logo alguém a dizer que conhecia? Sim. É que podias pôr lá no blogue a fotografia daquele arbusto lá de baixo... Arbusto? Qual arbusto? Arbusto lá em baixo? Ninguém sabe o que é aquilo. Credo, estarreci. No blogue, blogue? Valha-me deus, lá se me vai a reputação. Aquilo é um blogue de respeito, onde já se viu pôr uma fotografia do arbusto, mamã? Vai parecer os classificados de um pasquim qualquer. Ora essa. E, ainda por cima, perguntar às pessoas se conhecem? Aqui a risada sonora e descomprometida da minha mãe, literalmente divertindo-se com o meu constrangimento. E a conversa retomada Eu já provei, mas não faço ideia do que será. Provaste? Provaste tipo comer, digerir, deglutir? Provar provar? Provei. Mas o jardineiro já me disse para não provar mais. Diz que pode ser venenoso. Meu rico jardineiro. Homem sábio. Estou capaz de lhe erguer uma estátua pelo desgosto a que me poupou de ver a minha mãe envenenada com os frutos do arbusto sem nome, movida pela curiosidade de restituir a identidade ao arvoredo desenfreado. E antes que a minha progenitora se lembre de ir provar outra vez os frutos do arbusto incógnito ou de nos obrigar a provar o dito como faz ao almoço Quer um bocadinho? aqui fica o apelo. Amigos, transeuntes, leitores leais e dedicados e visitantes, algum de vós faz alguma ideia do que será aquele bicho frondoso aqui em baixo? Ajudem uma filha desesperada. O que uma filha não faz por uma mãe.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Momento Houaiss

- Mas por que é que respondem sempre na defensiva, meninos? Um pergunta é apenas uma pergunta. Nem mais nem menos.

- E isso é o quê, setora?

- Isso o quê?

-Isso, da defensiva.

Momento calimero

ai
ai
ai
ai
ai
ai
ai
ai

terça-feira, 13 de novembro de 2007

A diferença que um homem faz

Um olá especial a quem cá passa para ver isto.

Afinal havia outro

O Tibúrcio estava cabisbaixo. Deambulou entre uma e outra cadeira. Observei-o pelo canto do olho sentado numa cadeira de lado para a mesa, o rosto apoiado nas mãos. Mau, passa-se algo com o grande, o maior, o nosso Tibúrcio. Perguntar-lhe estava fora de questão, não fosse o Tibúrcio arremessar-me com uma das suas doutas tiradas ou questionar a legitimidade da abordagem Que queres tu? que como se sabe o Tibúrcio tem a cabeça toda em escadinha: ele no topo, grande como Moisés com as tábuas no Monte Sinai e o povo humilde, rasteiro, bem cá em baixo, dando vivas Quem é grande, quem é? O Tibúrcio regressou entretanto para o computador, resmungou algo entre dentes, maldisse a ministra da educação, rosnou ferozmente contra os pontos E eu? Eu? Grande. Douto. Admirado. Competente. Ai que se nos vai o Tibúrcio! Visivelmente agastado. Abatido. Deprimido. Pobre Tibúrcio. Que mal lhe afligiria agora? Cruzei-me com ele na escada mais tarde. Murmurou um cumprimento sumido e mal engendrado e, depois pelo queixume crescente, o alarido das gentes na sala de professores, percebi então o mal do Tibúrcio. A verborreia de sempre. Ah e tal, eu com tantos créditos e pontos e elogios. Uma palavra solta, uma frase completa da qual sobressaia O Melhor Professor. Era injusto bradava. Afinal não tinha sido ele. O Tibúrcio, o grande Tibúrcio. Uma injustiça, é o que é.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Deliziosi biscotti croccanti

Os alunos de quarta-feira não são os alunos de sexta-feira. Os de quarta são relativamente sociáveis, acatam os reparos, são interessados e curiosos. Os de sexta-feira só sossegam com ameaças e respectivas tomadas de posição, não acatam, não ouvem, são rebeldes e quase indomáveis, inquietos, agitados, ansiosos e endiabrados. Na sexta-feira, quando me lembrei de lhes passar um filme e uma ficha de trabalho pareciam nunca ter visto filme algum na vida, comentavam alto tudo o que viam, tudo o que ouviam, faziam perguntas de rajada e, por momentos, pensei ter recuado no tempo e encontrar-me na sala de cinema do velhinho e defunto cinema onde se gritava ao cowboy que matasse o índio lá da plateia. E depois lembrei-me do cãozinho meu vizinho, saltita nas patas da frente e de trás quando nos vê e nada o consegue parar na expressão do seu contentamento. Os meus alunos não saltitam de felicidade ao verem-me mas saltitam na agitação que os caracteriza e só as ameaças os fazem parar. Para a próxima levo deliziosi biscotti croccanti. Pode ser que assim sosseguem e antes que venha a protectora dos animais e a dos alunos desprotegidos lançados nas garras impiedosas dos seus mestres aviso, desde já, que gosto muito do cãozinho e que gosto muito dos meus alunos. Deliziosi biscotti croccanti.

Budapeste

foto: minha

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Maioridade

João Ubaldo Ribeiro, 66 anos, brasileiro, natural de Itaparica, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. Wladimir Kaminer, 40 anos, russo, natural de Moscovo, escritor, jornalista, animador de rádio, fundador da Russendisko. Embora vinte e dois anos de vida e um continente apartado pelo Atlântico os separem, estes dois homens partilham entre si, além do labor da escrita, uma mesma cidade. Não há evidência de que alguma vez se tenham encontrado, desconhece-se se algum dia se terão cruzado na Ku´ damm ou em qualquer outra rua da urbe mais emblemática do século XX. E, mesmo sem se saber o seu paradeiro durante o longínquo ano de 1990, altura em que ambos partilharam a cidade, Berlim une os dois escritores. Assim conta a história de João Ubaldo Ribeiro, que a convite do DAAD passa quinze meses em Berlim e que a partir da sua vivência na cidade e do confronto com uma realidade que o esperava com todos os estereótipos do brasileiro da Amazónia, escreve um livro delicioso, cheio de humor e peripécias narrando as aventuras desses quinze meses em território germânico. Enquanto isso, Wladimir Kaminer, recém-chegado da Rússia politicamente em escombros e socialmente desvalida, talvez habitando já no Schönhauser Allee, também o título de um dos seus livros iniciais, vive Berlim de forma tão intensa e estranha quanto Ubaldo Ribeiro. O mesmo olhar de fora, crítico, irónico, sarcástico, focado na cidade em pleno processo de mudança, engalanada com todas as cores da liberdade, exuberante na esperançada transmutação.
João Ubaldo Ribeiro regressa ao Brasil, para trás a experiência de Berlim e a rua Storkwinkel, a morada berlinense que admite ter-lhe deixado saudades, e brindou-nos com um belíssimo livro, breve, mas prenhe das impressões de um brasileiro em Berlim e que acabaria por emprestar o título à obra.
Kaminer ficou. Berlim torna-se, entretanto, o cadinho fervilhante de que são feitos quase todos os seus livros. Kaminer assume-se como não berlinense no único livro que dedica abertamente à cidade, Ich bin kein Berliner, a paródia evidente a uma das afirmações mais simbólicas do século passado. A dúvida persiste, no entanto, e para saber fica, se este estatuto de forasteiro serve à escrita, à figura pública do escritor ou ao real sentimento de inadaptação que provou ser um dos ingredientes imprescindíveis e de sucesso nas obras de Kaminer, mais ainda se pensarmos que tem intenções de candidatar-se a Burgomestre da cidade.
E Berlim não é cidade mãe, materna e acolhedora. Não tem regaço nem colo. Não nos canta canções de embalar nos crepúsculos agitados. Berlim é o oposto da mãe: dispersa, áspera, desigual, imensa e indiferente. Em Berlim podemos ser anónimos eternamente, um entre muitos na multidão frenética, multicolor, multicultural, lançados à mercê dos humores da sua altivez e intensidade que congrega a ironia e contradição dos acontecimentos históricos e sociais mais transformadores da Europa do século XX. E duma cidade assim, a história inscrita em cada pedra e a espreitar a cada esquina, só podiam brotar muitos livros, possíveis pela comunhão com a cidade que 9 de Novembro de 1989 permitiu.

foto daqui

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Um mundo inteiro

O Tibúrcio esteve dois computadores ao meu lado com três colegas de permeio. O Tibúrcio estava tiburciando Ah e tal, trabalho aqui e ali e acolá, e lá e coiso e isto e aquilo, sou o maior, e lá dizem, fazem e acontecem. A parceira do Tibúrcio no computador a tudo lhe dizia que sim, não se deixa adivinhar se por cortesia ou convicção. O Tibúrcio continuava ufano, embriagado com a fama que diz ter, ébrio de si mesmo em crescendo à medida que as palavras ecoavam e se elevavam sobre o ruído do teclado. O Tibúrcio, que ficou para trás pela sua própria mão, alardeava a injustiça suprema obrada sobre a sua magnânima, excelsa, excelente, competente, fantástica, estupenda, admirável pessoa e, foi nisto, que de repente se salta com os pontos. Eu, eu é que tinha mais pontos do que todos na escola, mas eu sou injustiçado, vilipendiado, ofendido. Pontos? Mas que pontos Tibúrcio? Não há mais pontos. Pobre Tibúrcio, acorrentado ao passado, embriagado de si mesmo. Enquanto isso há trabalho de sapa para fazer, mas a esse o Tibúrcio vira a cara Que é lá isso? Ah! Eu? Eu, o grande, o bom, o melhor de todos fazer esse trabalheco? Onde já se viu? Como se atrevem? Não sabem que eu sou o Tibúrcio? Fora o trabalho um espectáculo onde todos observassem o Tibúrcio e lá estaria a ele, olhando-se onanista, afagando o ego como quem faz festas a um gato, voraz no amor desmedido que nutre pela sua grandiosa pessoa, vociferando de forma a que todos, todos o ouvissem, todos sem excepção. E, entre mim e o Tibúrcio, não há um, dois, três ou quatro colegas de permeio. Um mundo inteiro é pouco.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Do que não vem nas receitas

Reabro o suplemento do jornal deixado ao acaso sobre o sofá na certeza de ser relido uma ou duas vezes mais. Percorro pela segunda vez as paragens sugestivas, viagens low-cost, e os olhos focam quase nas últimas páginas uma receita de ginjinha: 1 kg de açúcar, 1 kg de ginja, 2,5 l de aguardente, 1 pau de canela.
A melhor ginja artesanal que terei bebido foi feita pela mão da minha tia, corria então o longínquo ano de 1995, há mais de uma década, portanto. O aroma desprendia-se de imediato no contacto do néctar rubro com o cálice de dimensões generosas, assim me cutuca a memória presente da mescla do perfume da canela com a cor densa de textura licorosa, ou não fosse ginja, com os frutos mínimos esféricos no fundo da garrafa bojuda que julgo ainda existir em casa dos meus pais. E vem tudo isto a propósito das receitas de cozinha. Podem incluir o mais sofisticado e rigoroso modo de preparação, ingredientes de qualidade excelsa, exóticos, raros, frescos, biológicos, mas caso sejam ausentes e desvalidos do toque mágico e alquímico de quem os une, casa, funde e mistura, qualquer cozinhado potencialmente perfeito e opíparo transformar-se-á numa sensaboria inodora e insípida. E, também por isso, nunca entendi quem aferrolha a sete chaves segredos de cozinha, guarda para si receitas e toques especiais que, teoricamente e aos olhos dos avaros e zelosos guardiães dos mistérios de sabores, transformam um simples prato num manjar divino. Qualquer receita é potencialmente um desastre ou um sucesso, assim a mão de quem a labora e prepara. Por isto também tenho a certeza de que jamais provarei ginja como a da minha tia.


Imagem a partir daqui


também no GR

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Vinganças

Duas horas após a entrada na sala de espera, finalmente a hora chegara. Boa tarde, cumprimentos, a identificação e o reparo perante o meu peso Mas eu lembro-me de si. Não era assim. Ah pois não. Era mais selvagem, inconsequente, irresponsável. Tranquilizante pensar que o peso e a responsabilidade se excluem na minha vida e que, perante a inevitabilidade da responsabilidade e o domar do bicho inquieto em mim, o peso é o contrapeso como quando se compra safio na praça. A prelecção sobre os malefícios do tabaco. Sim, pois. Mas eu não fumo, doutor. Pois, mas que fazia mal a isto e àquilo e aqueloutro. Sim, sim, claro. E que hoje em dia já não havia razão para se fumar. Claro, calculo. Há muitos métodos para se deixar o tabaco. Pois, pois. Há pensos e pastilhas e uma mão cheia de outros métodos. Certamente. Um ou dois dedos de conversa técnica sobre assuntos do corpo. Depois a observação rigorosa e atenta. Um ligeiro ataque de tosse, entretanto, e a confissão imediata É do tabaco. Credo. Tabaco? Tabaco? O doutor fuma? questionei impertinente e surpreendida. É o vício, é puro vício. A confissão ainda mais surpreendente que a revelação do fumo Até me fez corar agora… A vingança justa para quem, além de me fazer reparos sobre o peso, coscuvilhava convincente recantos recônditos onde ser algum deveria no mais inimaginável dos dias perscrutar.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Pão-por-deus

No dia de Pão-por-deus as portas de minha casa escancaram-se, um prolongamento evidente da alma risonha e desvelada. Espreito-os pela janela, depois do chilrear que habitualmente os denuncia. Descem a rua e encaminham-se decididos para a minha porta. Tocam à campainha. Abro-lhes a porta, dizem ao que vêm e, de saco aberto, pregam os olhos vivos e iluminados na mesa colorida com recipientes vários: rebuçados, chupa-chupas, moedas de chocolate e gomas. No olhar o sentido de justiça infantil e com ele escrutinam quantas moedas a um e a outro, quantos chupas e se todos levam em igual quantidade de cada uma das guloseimas ao dispor. De ano para ano o crescimento evidente. Alguns dispensaram, entretanto, a vigilância familiar e regressam mais confiantes à procura das moedas de chocolate ou das bolinhas, imprescindíveis neste dia de alma iluminada. Um beijo, uma festa na cabeça, agradecem felizes, com os sacos tilintando e os sorrisos inestimáveis. Até para o ano.