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quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

Conto de Natal

Esta é primeira versão de um conto que escrevi para uma oficina de escrita do conto em Abril passado. Lembrei-me deste texto pelo pressentimento nele contido. Aqui fica:

Esse tempo não chegara ainda. Ela sabia, não obstante, que ele chegaria. Se calmo ou impetuoso desconhecia porém. Sabia apenas que quando chegasse ela amaldiçoar-se-ia por um dia ter desejado que houvesse saltos no calendário e que dessa forma se excluíssem meses, festividades e celebrações que secretamente começava a odiar. Detestava obrigações.
Estava certa que nesse tal tempo vindouro três coisas lhe faltariam: o aroma da canela a espraiar-se pela casa, o sorriso complacente e carinhoso do pai, a euforia infantil e contagiante da mãe. Se mais lhe faltaria não se lhe permitia agora adivinhar. O futuro deve permanecer incerto para que o presente se torne suportável.
Enquanto esse tempo desenhado no futuro se mantinha distante, repartia os dias numa pacata existência com sobressaltos esporádicos reflexos de outros sobressaltos passados.
Apaziguava-se com a vida nos dias de sol e calor. Amargurava-se com o viver nos meses de frio e chuva. A canícula do zénite não lhe toldava o sentir, uma brisa mais áspera amarrotava-lhe por vezes o ser. O Inverno deixara há muito de ser um período de tempo balizado por dois momentos exactos no calendário do qual arrancava pequenas folhas mentalmente, apenas presas por um picotado indelével. Desejava amiúde poder arrancar, de igual forma, as memórias tortuosas do calendário da sua memória. Tal não lhe era permitido contudo. Sem memória deixamos de ser quem fomos para passar a ser quem somos, pensava, e assim deslizava por entre a invernia e o estio com o que era e o que fora.
Mal se aproximavam as primeiras chuvas e o sol se escondia abrupto e sem timidez lá ao fundo no horizonte platinado que avistava da janela da cozinha e se, no alpendre de casa, os pés lhe arrefeciam sem aviso nos chinelos veraneantes, decretava ser daí em diante Inverno.
Com o Inverno surgiam as castanhas assadas na praça da vila piscatória sovada pelo mesmo mar que lhe acenava da janela da cozinha, o chilrear dos pássaros nessa mesma praça e a bruma obstinada ora como uma cortina esvoaçante ora como uma manta opaca e pesada, suspensa meses a fio. No início do seu Inverno comprava sempre uma abóbora, e esventrando-a sobre a bancada da cozinha, reduzia-a a doce, distribuindo-o posteriormente pelos vizinhos. A linguagem dos afectos raramente se socorre de palavras.
No decorrer de todos os Invernos surgia invariavelmente com o desconforto do frio, que sem cerimónias se lhe instalava na alma, uma data incontornável no calendário cristão. Em criança agradara-lhe esta data. Havia alegria e despreocupação no ar. Os dias eram contados com esmero e ansiedade. O dia propriamente dito quando chegava era tão desejado que mal se podia fazer esperar e todos os minutos e horas pareciam eternidades. Tudo isto lugares comuns, tão comuns e banais como a própria existência. Questionava-se se, caso na sua vida não habitassem todos estes lugares comuns revestidos da menor importância para o decurso da humanidade, a própria vida teria sentido. Esperando um momento de excelência acima do comum dos mortais arriscava-se a ver a vida passar a seu lado, passear-se ali mesmo rapioqueira e displicente. Imaginava-se estática no cais de embarque e a vida sorridente acenando-lhe da janela do comboio em movimento.
No início desse mesmo Inverno decidiu que talvez pudesse ser diferente e, por assim ser, povoando-lhe a mente o sonho de que noutras paragens seria decerto diverso o sentir e fazer da tal data comemorativa, fez as malas e partiu à descoberta.
Partir era uma eterna vontade, um chamamento constante e incessante. Nesta partida estava contida a curiosidade e o desejo desse Natal que ao longo da vida lhe parecera mais autêntico, mais genuíno e espiritual, o Natal dos cânticos, das crianças vestidas a rigor de gorros e luvas, em tons de verde e vermelho com uns salpicos de dourado e uns farrapos de neve alva nos cocurutos das casas e das árvores altaneiras, não o Natal branco imortalizado pelos cantores americanos esbanjando charme e glamour, antes o Natal mais soturno e acolhedor ao jeito do Velho Continente, o Natal de Dickens decididamente, iluminado com velas e candeias seguras por pequenas mãos enluvadas contra a inclemência do Inverno, cantado um uníssono por vozes imberbes.
Quando acordou na capital britânica estava leve e renovada. Para trás, as obrigações e responsabilidades, as contas do mês e as compras do supermercado, os detergentes e branqueadores, o papel higiénico e os guardanapos. Saiu para a rua feliz e despreocupada. Consigo, além do companheiro de viagens e de vida, apenas o júbilo dos irresponsáveis.
Havia gente, gente e mais gente. Turistas de cores e linguajares diferenciados coloriam as ruas, preenchiam os mercados como um imenso pontilhado numa tela, povoavam os parques desnudados como uma pincelada mais brilhante contra o cinzento pastoso, assombravam os cantos mais recônditos da cidade, deixando-a desvelada perante os olhares perscrutadores, privada da sua própria intimidade. Uns carregavam sacos, quase todos apressados e de passo estugado, outros detinham-se em frente dos monumentos e, esboçando um sorriso ou articulando uma pose consentânea com a ocasião, deixavam-se fotografar para na posteridade recordar tais dias, talvez, se na posteridade memória deste passado existir ou exibir, num tempo mais imediato e próximo, no escritório a colegas e conhecidos como atestado da incursão à velha Albion.
A imensa mole humana avançava como uma torrente para as lojas, cuja música, entrecortada pelo o barulho persistente da máquina registadora, se esvaía no turbilhão de vendilhões. Depressa concluiu que o Natal dos livros que lera era mais belo que o que se pavoneava na sua frente e a arrastava a espaços numa enxurrada de compras, sacos e pacotes, lembranças e presentes. O aroma da canela a espraiar-se pela casa, o sorriso complacente e carinhoso do pai, a euforia infantil e contagiante da mãe surgiram-lhe na memória. Confirmou que dessas sentiria falta um dia.
E foi assim que numa encruzilhada alguém vindo não se sabe de onde os abordou. Ela olhou-o de soslaio. Era um homem magro de feições vincadas e rosto longo. Trazia no semblante um sorriso aberto e nos gestos um desembaraço gingão. Destacava-se no meio da multidão. Era alto ainda que algo curvo, carcomido pelo tempo decerto, talvez por um tempo incerto. As vestes pardacentas repeliram-na instintivamente. Ele permaneceu imperturbável, aparentando nada lhe afectar a manifesta falta de à-vontade dela. Abeirou-se afável. Ambos pararam expectantes. Ao que viria permanecia um mistério.
Ele não se mostrou minimamente incomodado perante a rigidez dos passeantes. Abeirou-se do rapaz e pediu-lhe um cigarro no seu linguajar anglófono. De seguida aconchegou-se na rapariga e quase segredando-lhe ao ouvido proferiu algo que até hoje não se deixou divulgar. Ela sorriu algo tímida, ruborizando levemente em sintonia com a cor do casaco que envergava. O rapaz a seu lado assistia complacente. Pegou então na mão enluvada da rapariga e colocou-lhe um beijo mesmo na palma da mão, fechando-a carinhosamente. Despediu-se do rapaz, agarrou-o, deu-lhe um abraço vigoroso como só os homens sabem fazer e enquanto se afastava ligeiro entre a diabólica multidão, soltou um “merry christmas”.

5 comentários:

  1. Já te disse que escreves maravilhosamente??
    Beijo grande.

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  2. Hmmm que lindo!!!

    Vim aqui matar saudades do teu blog e vim desejar-te um FELIZ NATAL e um BOM ANO NOVO cheio de saúde e alegria!!!

    Beijinhos da Snowshoee

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  3. Muito obrigada, Snowshoee. Um óptimo Natal para ti e um um 2006 cheio de coisas boas. Bjs

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  4. Profundo e lindo! Parabéns, querida, escreves maravilhosamente...

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  5. Esta é a primeira versão do texto e a megera que orientou a oficina de escrita do conto disse que a história do sem-abrigo não tinha piada nenhuma. Há gente que nem merece o tempo que perdemos com ela... Bjs grandes

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