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quarta-feira, 15 de março de 2006

Pobrezinhos

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram os pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida. (…)
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam--se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio em que os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de Reis Magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoroçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer moedas aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada, não tem a noção do dinheiro) (…)
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
António Lobo Antunes, Livro de Crónicas

Sou uma amante confessa da escrita de António Lobo Antunes. As suas palavras acompanham-me quase sempre e, a espaços, quando uma oportunidade surge, saltam-me a correr pela memória, casando na perfeição com a realidade à minha frente. Hoje foi um desses dias.
Pergunto-me se as inúmeras campanhas para angariar fundos para África não serão mais do que um exercício de caridade de pacotilha, uma afirmação de superioridade, um paternalismo bacoco para com os pretinhos, coitadinhos… e um exercício de afirmação social perante os incautos, resquícios talvez do passado colonialista.

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