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sexta-feira, 24 de março de 2006

Sonhos

Há sonhos que têm data marcada, contrariamente aos pesadelos que batem à porta sem aviso prévio. Assim foi, portanto, que acalentando ao longo de meia vida o sonho de um dia ver o Rio de Janeiro consegui pois exactamente há um ano realizá-lo. Li há pouco que ir ao Brasil e não ir ao Rio de Janeiro é como ir ao Vaticano e não conhecer Roma. Acredito que o Brasil estará cheio de lugares belos e misteriosos, mas para mim, assim era, e por assim ser, prometera a mim mesma que a primeira vez que pisasse as Terras de Vera Cruz teria de ser o Rio de Janeiro, a cidade que me acompanhara desde sempre, onde se refugiava a minha alma errante e onde residia parte da minha identidade.
A minha avó paterna era paulista, paulistana de nascimento, não perdeu nunca o sotaque doce e melódico desse português tão quente falado do lado de lá desse mar imenso. Dizia quêbrou, mêlão, isso sê faz e pronunciava o nome do meu pai como ninguém Fernandinho cheio de sotaque carioca, mesmo sendo ela própria o antagonismo desse doce falar. Com ela vieram também os hábitos gastronómicos, a feijoada à brasileira, com farofa, couve mineira, arroz branco e laranja, o queijo com goiabada e outras receitas mais, parte integrante de mim e das quais a minha mãe é a guardiã mais dedicada e talentosa. Ao longo da minha infância eram frequentes as vistas da Titia Didê, irmã da minha avó e tia do meu pai. Era algo extravagante e desinibida para os padrões lusos, tinha uma vida pouco convencional e esbanjava charme mesclado com o exotismo do linguajar e fisionomia voluptuosa.
E foi portanto que extasiada me passeei pela minha própria essência, pela imensidão da minha alma híbrida e mestiça ao calcorrear essa cidade verdadeiramente maravilhosa, para a qual as palavras me são curtas e pequenas, breves e encarquilhadas, tolhidas pela magnitude da tanta beleza e foi por isso que chorei de emoção quando vi do alto a cidade a meus pés e foi por isso que me enleei na nostalgia da chuva carioca sobre o mar de Ipanema e que ouvia as Águas de Março apenas na minha imaginação perante três dias de chuva que fechavam o Verão e que vi em sonhos passar a Garota em Ipanema e sentados no Veloso lá estavam Tom Jobim e Vinícius de copo de whisky na mão, mesmo sabendo que tudo isso é mito e que a tão famosa garota foi escrita longe daquele boteco. E imaginava Chico Buarque com os seus olhos límpidos cor de mar pousando nostálgicos sobre o oceano e ele passeando-se displicente pelo calçadão no Leblon. Foi assim também que ouvia em surdina o som da bateria no Carnaval e o Samba descendo dos morros para ser a própria cidade. E, vivendo no meu sonho também o sonho do meu pai, desce-me a tranquilidade de saber que também tudo isso ele viu através de meus olhos e coração escancarado. Há coisas que só o coração pode entender...

Foto: Rio de Janeiro, Março 2005

4 comentários:

  1. Ai L., que texto tão bonito! E como me identifico com ele! A única diferença é que ainda não realizei o sonho de ir ao Rio. Também tenho recordações de infância recheadas desse doce falar, embaladas por essa música bela entre todas. Obrigada.

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  2. Fico feliz por teres gostado. Este texto andou na minha cabeça desde o ano passado mas fico sempre com a sensação que o que descrevo está aquém do que senti naqueles momentos e no que sinto ainda. Até há uns dois anos era incapaz de chorar de emoção, mas naquele dia em que fiz a volta de helicóptero, quando saí, chorei emocionada. Beijos grandes

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  3. Este texto está lindo, L.
    E eu as recordações que tenho de infância desse doce falar é só mesmo: Gabriela ehhhh meu camarada!!

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  4. Obrigada Patrícia. O meu pai e a minha tia, e depois a minha mãe, tratavam sempre os meus avós por Mamãe e Papai. Acho que nem consigo enumerar a quantidade de coisas que eram de origem brasileira porque sempre fizeram parte da minha vida. O mais curioso é que nem tinha laços de grande afecto com essa minha avó. Bjs grandes e amanhã lá estarei a ouvir-te

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