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sábado, 1 de abril de 2006

Crónica da Carne Seca

Lembrei-me pois que das duas únicas vezes que fui ao Brasil trouxe para o meu querido pai carne seca. Na verdade nunca foi pessoa de grandes exigências e sempre que eu viajava sorria-me feliz e dizia-me apenas para me divertir e aproveitar tudo, tudinho mesmo. Quase sempre ele e a minha mãe iam buscar-me ao aeroporto e quase sempre ele estava nas primeiras filas em frente à porta de desembarque de mão no ar para se fazer ver no meio da multidão, sempre feliz por me/nos ter de volta, ansioso pelo nosso regresso. Qualquer ausência era grande e ao fim de sete ou oito dias ele próprio, meio a sério meio a brincar, se afirmava saudoso. Quando regressei da última vez e vi o seu espaço vago diante dos meus olhos, o prenúncio do seu iminente afastamento súbito e inesperado e abracei a minha querida mãe sozinha, senti, ainda sem saber, que aquela tinha sido infelizmente a primeira vez, de todas as seguintes que me esperarão, que tal acontecia. A saudade não espera pela partida definitiva, impõe-se ao menor sinal do coração.
Mas contava eu que, embora o meu querido pai não fosse exigente e se contentasse com os pequenos prazeres da vida, não era homem de sucedâneos ou substitutos em termos gastronómicos, logo, a feijoada à brasileira para fazer jus ao seu epíteto tinha de ter carne seca impreterivelmente. Assim terá sido habituado também pela sua mãe, a minha avó brasileira. Este seu desejo não foi ao longo dos tempos fácil de realizar. Lembro-me de apenas um local em Lisboa vender a dita carne que, diga-se em abono da verdade, sempre me repugnou um pouco em virtude do cheiro intenso que exala aquando da sua cozedura. O próprio feijão preto era igualmente difícil de encontrar. Várias pessoas foram trazendo carne seca ao meu pai, directamente do Brasil, e sei que lhes ficou grato até ao último dos seus dias.
Quando lhe perguntei o que queria que eu lhe trouxesse do Brasil, chegada que era a minha vez de lá ir, a resposta foi categórica: carne seca, pois claro. Obviamente o desejo foi satisfeito de ambas as vezes, embora da última ele não tenha já podido provar, mas de ambas senti um calafrio ao pensar que na alfândega, ao pedirem-me para abrir a mala, poderiam confiscar-me a carne seca, repousada que estava bem no fundo da mala, escondida com a roupa desalinhada e uns quantos pares de havaianas de cores e padrões diversos. A sensação de prevaricação não se comparava ao desgosto de depois de termos carregado quatro ou cinco quilos de carne seca a abandonarmos mesmo às portinhas da liberdade e de chegar ao pé do meu pai de mãos a abanar, despojada da tão desejada iguaria. Dispor-me-ia até a ir a Fátima a troco da carne seca, jamais poderia desiludir o meu querido pai dessa forma. Sei, contudo, que me diria Deixa lá, filha. Há coisas piores... sobrepondo sempre a felicidade do reencontro à falta da carne seca. Por graça não se sabe de quem, do acaso certamente, sempre cheguei com a encomenda e aqui entendi melhor a dimensão que as coisas aparentemente pequenas podem tomar quando não existem perto de nós.

*Recomenda-se a leitura desta crónica ao som da Feijoada Completa de Chico Buarque acompanhada de uma caipirinha.

6 comentários:

  1. A saudade não espera pela partida definitiva, impõe-se ao menor sinal do coração.
    Que frase extraordinária. Tão verdadeira.

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  2. Mas é mesmo verdade. Antes de o meu pai partir, eu senti que ia acontecer. Beijos grandes

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  3. Vais ser tu que me vais ensinar a fazer feijoada à brasileira??
    Eu levo a cachaça e as limas, boa?

    Beijocas grandes L.!

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  4. Combinado! Mas primeiro tenho de aprender com a minha mãe. Quanto às caipirinhas, o Hélder é mestre e mojitos também faz muito bem :)

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  5. Pode ser caipiroska para mim??? :o)

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