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domingo, 21 de maio de 2006

Da Escola Primária

A minha professora primária das terceira e quarta classe dividia os alunos em três classes distintas: primeiro, as preferidas, segundo, as que, não sendo preferidas, tinham pais com prestígio social e/ou habilitações literárias acima da média e terceiro, as que, não cumprindo nem o primeiro nem o segundo requisito, eram pau para toda a obra, os bombos da festa e as escolhidas para levarem porrada a torto e direito, protegidas que estavam pela obediência cega à autoridade da professora primária, minha senhora. Igualmente se distribuíam os alunos na sala de aula, sendo que, e à semelhança do Coliseu romano, as desprivilegiadas sentavam-se lá para trás. Lamento sinceramente ter sido incluída no segundo grupo. Preferia ter levado reguadas, se fosse preciso, a sentir que não as levaria apenas porque a professora tinha respeito pelos meus pais, nem sequer afecto por mim, logo, não arriscaria um acto imponderado de umas reguadas só porque sim. Em verdade se diga que nunca as mereci, mas em verdade se diga também que duvido que as outras, as tais que não tendo quem as protegesse nem pais detentores de títulos académicos ou equivalentes, as merecessem também.
Lembro-me até hoje de um belo dia em que a Q. foi chamada ao quadro para fazer uma composição sobre Os Frutos. A Q. dava muitos erros e, perante a exposição a que tinha sido submetida perante o resto da classe, obviamente não melhorou o seu desempenho, como tal, os erros jorravam em torrente. Recordo as lágrimas misturadas com o giz branco no quadro preto, o choro da Q. e as belas bordoadas infligidas pela Dona A., deus a tenha em descanso. Este é o episódio que mais me ocorre quando relembro esses dias, um fantasma que me assalta a espaços, estaria na terceira ou quarta classe, e desde então desenvolvi esta repulsa visceral por categorizações sociais.
Ontem encontrámo-nos quase todos: as preferidas, as intocáveis pelas razões que se sabe e as burras e desprivilegiadas pelos motivos já mencionados. Ontem jantámos juntos celebrando os trinta e um anos que distam do momento em que deixámos a escola primária. Ontem ao jantar não houve burras ou inteligentes, preferidas ou respeitadas. Ontem ninguém se sentou atrás de ninguém. Ontem éramos apenas nós, mulheres e homens adultos quase todos com filhos, cada um com o seu percurso, felizes por nos revermos. Ontem tinha a alma grande e tranquila por sermos só nós, sem estigmas nem rótulos.

8 comentários:

  1. Este belo texto fez-me lembrar o long round de pancada que foi a minha escolaridade até ao 9º ano: da 3ª à 4ª classe, por parte das professoras; a partir daí, dos colegas. Estou piamente convencida de que a segunda parte não teria acontecido se eu não tivesse interiorizado muito cedo que só servia para levar pancada, graças às 'minhas senhoras' que me instruiram na primária. Valha-me ao menos a feliz recordação da professora da 1ª classe... E como é possível continuar a sofrer com isso tantos anos depois? Mas é.

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  2. Que bonito voltarem a encontrar-se tantos anos depois! Aí está um encontro que também gostava de fazer. Felizmente para mim, nunca houve da 1ª à 4ª classe uma réguada na minha turma! Tinha uma professora magnífica que ainda hoje recordo com uma grande saudade. Chamava-se e chamávamos-lhe Lídia! Simplesmente Lídia! Onde quer que ela esteja, Obrigada!

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  3. Nem mais. Sabes que ao longo destas três décadas receei que estes rótulos nos tivessem definitivamente afastado e estou convencida que as vidas futuras de algumas de nós reflectiram a fraca expectativa que a professora tinha das alunas. Agora sei que há estudos científicos que provam isso mesmo.
    É impressionante que me lembro de poucas coisas destes dois anos de Escola Primária mas nunca me esqueci desta injustiça.

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  4. A minha resposta era para a Ana mas apareceu depois.
    Ainda bem que foi assim contigo, Patrícia, aliás devia ser sempre assim. O jantar foi muito giro e divertido.

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  5. Eu só fui a um jantar da turma da secundária e jurei para nunca mais. Éramos tão felizes, tão unidos e, tantoa anos depois, todos queriam saber quanto ganhavam os outros.

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  6. O que eu gostei neste jantar foi não haver esse tipo de conversas, que me irritam solenemente. Fico surpreendida quando as pessoas me vêm com essas conversas. Tive uma "amiga" que se encarregava de saber quanto ganhava cada um, sempre me perguntei como o fazia e, acima de tudo, porque o fazia. Quando estive na Áustria, em trabalho, numa das sessões em que se falava dos austríacos e dos hábitos culturais, foi-nos dito que havia três temas tabu: religião, política e dinheiro. Detesto temas tabu, mas lembro-me sempre disso quando a conversa resvala para aí. Que me interessa o que os outros ganham? Interessa-me que sejam felizes, o resto não me diz respeito.

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  7. Como o texto está belíssimo, fui parar na tua sala de aula. E fiquei curiosa por saber de Q.
    O que foi dela, se é feliz, se é mãe...

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  8. A Q. tem três filhos e acho que será feliz sim :)

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