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quarta-feira, 26 de julho de 2006

Na terra dos faraós

O zénite egípcio é impiedoso com os mortais. Estava um calor abrasador, inqualificável, seco. A única parte exposta do corpo, os dedos dos pés, além da face e mãos, pareciam esturricar verdadeiramente, crestar que nem courato de leitão e julguei que, quando dali saísse ou talvez lá para o final do dia, quando o sol egípcio se embalasse finalmente no outro lado do rio junto aos faraós, a pele dos dedos dos pés se escalpasse, descascasse como um lagarto abandona o seu casaco.
O Egipto é um dos lugares do mundo cheio de história e mistério, único pelo legado que ainda subsiste no seu lugar de origem, o último reduto das pilhagens sucessivas perpetradas ao longo dos tempos. Fora do Egipto a colecção de arte egípcia mais grandiosa que pude contemplar encontra-se no Metropolitan Museum of Art em Nova Iorque, mas nada me causou tanta emoção como quando me vi perante a Pedra de Rosetta. Anos a fio, o meu querido pai explicou-me que aquele pedaço de basalto negro continha a chave para decifrar toda a escrita hieroglífica e que foi, pois, através dela que se desvendaram os mistérios contidos na escrita enigmática. Quando finalmente me encontrei frente a frente com a pedra no British Museum, as peças do puzzle juntaram-se e, de repente, a história que o meu querido pai me apresentara desvelava-se perante o meu olhar. Assim foi ao longo de muitos episódios da minha vida. As histórias do meu pai foram unindo-se como um puzzle, peça a peça, uma a uma, encaixando-se com a precisão de um dominó e, uma vez encontrada mais uma peça desse imenso legado de que me fez guardiã, corria para lhe contar, ligava-lhe impelida pelo entusiasmo quase infantil Papá, hoje vi a Pedra de Rosetta e ele comigo e eu com ele, assim vejo o seu sorriso, trocávamos umas palavras mais. No regresso dizia-me E sabes que…? completando com mais um pouco de História a história, brindando-me com mais um episódio, preenchendo com um livro procurado no corredor e como sempre oferecido sem demora Leva, filha, leva para tua casa. Às vezes pergunto-me porque não posso eu ser ainda como tantas outras filhas do mundo, tê-lo vivo e saudável junto a mim, junto a nós.
Estávamos então pela hora do almoço, depois da travessia do Nilo, no Templo de Karnak em Luxor. Eu e o H. guardámos silêncios grandes nesta viagem, não porque se nos calasse a alma, mas porque a contemplação da beleza assim o obriga, quase como uma veneração mística, um recolhimento reverente. Assim foi também no Vale dos Reis e perante a beleza sublime da mascara fúnebre de Tutankhamon no Museu Egípcio no Cairo.
Após as explicações da guia e ao termos ainda um tempo livre longe uns dos outros, dos restantes turistas, decidimos aventurarmo-nos mais além no Templo. Lado a lado lá fomos, eu com os dedinhos dos pés em brasa, coberto que se encontrava o restante corpo em respeito à cultura visitada, e o H. de máquina em punho. Teríamos talvez trocado um ou outro comentário, algo como Mas como é que estes gajos naquela altura faziam coisas destas? perante a monumentalidade do templo e a resposta mais comum durante aqueles dias Impressionante! quando a uns metros à nossa frente se apresentaram dois polícias. Estavam armados até aos dentes e, na ausência de vivalma em nosso redor, julguei estarmos a invadir uma zona proibida, vedada aos vistantes. Um deles chamou-nos e, para nosso grande espanto misturado com uma pitada de desconfiança, indicou-nos o caminho para uma estátua da qual restavam apenas os membros inferiores. Sim, por aqui, vá, olhem ali, vá, dêem cá a máquina, vá, subam para ali, isso, agora baixem-se, isso, um sorriso e zás, um clique e uma foto tirada, vá agora de pé, isso levantem-se, mais um sorriso, outro clique e outra foto. A tudo obedecemos, de resto, o que fazer quando, além de nós os dois e o fotógrafo de ocasião, por acaso, polícia, apenas um outro polícia também, armado também? Quando descemos do colo do deus da Fertilidade, ele estendeu-nos a máquina e ao mesmo tempo, absolutamente desprovido de pudor, a mão. Queriam o quê? Vir ao Templo de Karnak, ser fotografados, sem turistas à volta, num local recôndito e resguardado, ainda por cima no colo do Deus da Fertilidade, a custo zero? Há turistas que não se enxergam.
Templo de Karnak, Luxor, Egipto.
foto: já se sabe de quem...

9 comentários:

  1. Faço a mesma pergunta que tu, com a mesma saudade!
    Beijos grandes

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  2. Idem aspas...
    E que saudades tenho eu das conversas com o meu pai.

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  3. Este post encerra um dos maiores mistérios da humanidade. Como é que os egípcios conseguiram fundar a brilhante civilização de há milénios e chegar aos anos de hoje no estado em que chegaram, em que até as autoridades policiais fazem cenas dessas?... Onde terão perdido o brilhantismo de outrora?
    Mistério...
    Beijola. :)

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  4. Por acaso uma das coisas que me assusta no Egipto é o calor. Dou-me muito mal com temperaturas tão elevadas e a falta de circulação de ar (se em Mérida, Agosto, 40 e picos graus, e estava a ver que caia pró lado...)
    Mas quero tanto lá ir.
    De preferência sem polícias, pelo sim pelo não :o)

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  5. Se o policia manda...

    Tb me pergunto o mesmo todos os dias. Con tanta gente estupida por aí, porquê o meu pai?

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  6. O teu post anterior, "Let thy feet", já havia me trazido a lembrança da minha visita ao Museu Britânico, especialmente para ver a Pedra de Rosetta! E com o teu relato de agora me senti muito feliz e valorizei muito mais ter tido a oportunidade de mostrá-la pessoalmente à minha filha e chamar a sua atenção para os detalhes dos nomes de Cleópatra e Ptolomeu circundados, de explicar-lhe como se chegou a chave para decifrar os hieróglifos.
    O importante é teres vivido todos esses momentos com o teu pai.
    Bjs

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  7. Tento evitar esta pergunta para não me zangar com a vida. A revolta e a dor são uma mistura explosiva, vou-me ficando pela dor para me apaziguar com a vida. Às vezes o que me preocupa é a intolerância que criei relativamente a outras coisas. Não consigo deixar de achar que perder quem amamos é a pior das dores e da saudade e vou relativizando o resto.

    Aventino, a partilha do que gostamos com quem amamos é das coisas mais belas e valiosas da vida. :)

    E agora o Egipto, carlota, é estranho mas tive a sensação de estar ocupado por um povo que nada tem a ver a anterior civilização. De todos os sítios onde estive foi onde senti o maior assédio ao turista e não gostei disso. Mas claro que é um sítio a visitar.

    Beijos grandes a tod@s :))

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  8. Ontem esqueci-me de dizer que também vi a Pedra da Roseta o ano passado no British Museum.

    E, infelizmente, se há coisa que este mundo não é, é justo... Fico triste por vocês, que já não podem partilhar a vossa vida com o vosso pai, mas tentem pensar é nos momentos bons que passaram com eles. E que o que eles querem é que vocês continuem a apreciar a vida e a ser felizes. E os amigos cá estão para tentar mitigar as saudades do que partiu...

    Beijos grandes!

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  9. É verdade, fantasminha, a vossa presença aqui tem sido uma ajuda inestimável nestes meus dias :)

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