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segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Jesus vive

A travessia entre a sala dos professores e as salas de aula é um slalom perigoso entre palavrões e hormonas palpitantes. Na secretária junto à funcionária, quando fui recolher a chave para entrar na sala, encontrava-se um indivíduo, aluno da noite, à minha espera, assim foi a informação da funcionária. Quando me viu chegar, abeirou-se de mim e encetou a conversa.
Era um homem feito, de barba cerrada, alto e moreno, de olhar esbugalhado. Contrastava ferozmente com os alunos à sua volta e destacava-se pela altura. Digamos que a sua presença não me deixou particularmente à vontade em virtude do olhar fixo e algo parado no ponto que fixava. Queria pois aprender alemão e após ter consultado o Conselho Executivo, assim disse, e o parecer ter sido favorável, vinha então saber se eu não me importava que assim fosse. A minha sala de aula é como a Fundação Casa de Jorge Amado Quem for de paz, pode entrar, de resto, como a minha vida e, portanto, a porta estará sempre aberta para quem se dispõe a ser iluminado pela candeia do conhecimento, seja lá o que isso for. Assim sendo, disse ao homem que sim, que a partir da próxima aula poderia vir então familiarizar-se com a língua alemã. Na aula seguinte apareceu. Trazia já o manual e o restante material e sentou-se junto das alunas, oito apenas. Antes do início da aula informei-o de que se tratava do segundo ano de língua e que faltando-lhe o primeiro era natural que sentisse algumas dificuldades na língua de Goethe. Não se resignou. Disse que sim que iria aprender e eu mais não disse. Nada como sentir para constatar. Digamos que a presença do homem, tal como da primeira vez que o avistei, era algo intimidatória, também pelas suas proporções de Gulliver face às restantes alunas.
Teria passado uma semana ou semana e meia quando me chamaram ao Conselho Executivo. Que estava ali a fazer o homem, inquiriam. Pois mais não fazia do que lhe havia sido permitido por ele próprio, Conselho Executivo: assistir às aulas para aprender alemão, respondi. Que não. Que o homem nunca lá fora. Que não lhe tinha sido dada autorização. Ao que parece ter-lhe-ia sido dito que deveria aguardar por um parecer positivo mas como se sabe aprender é por vezes uma urgência inadiável e o homem, que mal podia esperar para se ambientar na língua de Kant, debandou sem demora rumo aos linguajares germanófonos. Na verdade, fiquei sem saber o que fazer. Por um lado, dizer-lhe que não podia mais assistir às aulas, apenas porque havia indícios de que sofria de alguns distúrbios mentais, não me parecia bem, porque não era fundamentado e o pobre homem era pacífico, atento e respeitador, por outro, a presença estranha dele criava um certo desconforto. E enquanto tudo se decidia, o homem percebeu que, faltando-lhe o ano de iniciação à língua alemã, a língua de Nietzsche se tornava tão imperceptível quanto a escrita hieroglífica antes da descoberta da Pedra de Rosetta e não mais apareceu nas aulas, justificando-se–me posteriormente com as lacunas sobre as quais o avisara.
Com o decorrer do tempo fui-o avistando amiúde. Umas vezes na sala de estudo às voltas com a Matemática, outras aqui pela aldeia praticando jogging e a última vez que o avistei foi ontem mesmo no dia da procissão da aldeia. À frente vinha um senhor idoso segurando um estandarte escarlate, depois outro mais novo com um dourado. Logo atrás um grupo de mulheres com cestos cheios de bolos à cabeça, depois a Virgem Maria montada numa burrica com o menino ao colo e São José impaciente puxando pelos três. Seguiam-se Santo António, a Senhora das Candeias, o andor da Senhora de Fátima, três Rainhas-Santas e uns anjinhos.
Em grande destaque, logo após, vestido de roxo, Jesus Cristo, de rosto ferido e coroa de espinhos. Com um ar compenetrado e recolhido carregava uma enorme cruz de madeira castanha onde estavam cuidadosamente inscritas as insígnias do Salvador. Atentei no Cristo. Iria jurar que já o tinha visto algures. Seria? Sim, era. Era ele. Jamais me teria passado pela cabeça que ilustre personagem tivesse abrilhantado as minhas aulas. Jesus vive afinal! Vive e quer aprender alemão.

10 comentários:

  1. Olha, e o Elvis tambem-ja vi o nme dele numa peticao a favor das bibliotecas publicas

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  2. A sério? Há malucos para tudo ;-)

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  3. o pobre do senhor chama-se mesmo Elvis-o que sempre e melhor que Staline de Jesus

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  4. Já tive um aluno chamado Jesus, mas Staline de Jesus é lindo.

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  5. e lindo e verdadeiro, era um delegado do PC ai dos arredores de Lisboa-Barreiro, salvo erro

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  6. Talvez ele quisesse apenas aprender a cantar "Jesu meine Freude"...
    E conheço um jovem de nome Elvis que durante um tempo foi editor de uma revista no escritório de design gráfico da minha ex-mulher. Ela e a sócia só o chamavam de "Elvis não morreu..."
    E, nos dois anos em que trabalhei em uma agência governamental que agenciava estágios para alunos das escolas públicas de curso médio, encontrei muitas "Daianes" e muitos "Michaels" (pronuncia-se mixaél).

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  7. Q surpreendente experiência para um professor de alemão! Só a mim não me acontecem :(
    E magnificamente contada :)

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  8. Agora é divertido mas fiquei um bocado assustada na altura tal como expliquei no texto. Ontem quando o vi na procissão achei imensa piada :-)

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  9. ;o)
    Realmentem quem diria que Jesus gostaria de aprender alemão!!

    Eu também (não que ache piada à língua em si mas porque gostava MESMO de perceber o que eles dizem!! :op) mas ainda não venci a preguiça de me inscrever algures...

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  10. "What if God were one of us?
    Just a slob like one of us?
    Just a stranger on the bus
    Trying to make his way home?
    Back up to Heaven all alone,
    Just like a holy rolling stone,
    Nobody calling on the phone.
    Excpet the Pope maybe in Rome..."

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