A minha avó materna nasceu a dezassete de Agosto de mil e novecentos. Teria hoje cento e seis anos caso fosse viva, idade altamente improvável e, portanto, recordo-a hoje, como em quase todos os dias da minha vida, com carinho e ternura mas com a resignação e conformismo do óbvio. Às vezes penso que ela e o meu pai partilham juntos os dias da eternidade.
Viveu oitenta e nove anos e sempre a conheci da mesma maneira: roupa preta do luto permanente pela filha e marido e cabelo branco, alvo e revolto. Na infância o contraste suscitava a minha curiosidade, como se fosse uma avó a preto e branco. Era pequenina e de convicções inversamente proporcionais ao seu tamanho. Com ela passei vinte e quatro anos da minha vida. Ajudou-me a crescer e através dela tive a percepção da mudança radical dos tempos nessa travessia que foi fazendo século fora. Era uma amante indefectível da televisão e confessava amiúde Agora há coisas muito bonitas! maravilhada com as descobertas humanas e a evolução da tecnologia .
Não se conformava, porém, com o caminho desregrado dos modos e costumes. Conta a minha mãe que ela e a minha bisavó terão destruído as páginas de um livro do Egas Moniz, onde eram dadas as ver aos incautos as partes pudibundas de homem e mulher, para proteger a minha mãe, de tenra idade, desse pornógrafo também Prémio Nobel da Medicina. A minha mãe nunca se conformou com a castração do livro. Vinda do tempo em que mostrar o tornozelo era já uma ousadia, tudo o que na óptica da minha querida avó implicasse falta de pudor e de vergonha era catalogado a preceito. Que o diga eu, que no alto dessa idade guerreira e quando dei em usar saias que descobriam as coxas grossas, era sempre olhada com reprovação veemente e chamadas de atenção punitivas e castigadoras. Amiúde colocava-se por trás de mim e tentava, em vão, puxar as saias para baixo. As repreensões vinham em dois sentidos: um, não havia direito de andar assim com as carnes a descoberto, uma falta de vergonha e dois, não havia direito de ter umas carnes assim e andar assim, com as ditas destapadas. A idade adulta trouxe-me a lucidez ausente na idade guerreira e hoje sei que a segunda repreensão era justa, a bem do sentido estético.
Nesses tempos idos a minha avó recorria com muita frequência a uma expressão da qual ainda fazemos uso presentemente. Não sei o que terá aprendido nos livros, amante e devoradora que era dos mesmos, mas sei que repetidamente e quando lhe era dado a observar um comportamento devasso, despudorado e debochado, classificava-o, utilizando esse grande insano do Nero, o Imperador pirómano. Dizia Ai que pouca vergonha. Estamos no tempo do Nero! Quando me vi perante o Coliseu de Roma e do outro lado o que terá sido a casa do debochado mor do Império Romano, ocorreram-me de imediato esses tempos, os do Nero, do porco debochado, do libertino imoral entregue aos prazeres de Baco sem reservas, e, de novo, ouvi a minha querida avó evocando a idade dos excessos. Acredito que caso a minha querida avó vivesse hoje consideraria o Nero um pobre inocente perante o que lhe seria dado a observar na caixinha mágica mas continuo sem saber quem iria evocar para qualificar os tempos contemporâneos. É que depois do Nero nem eu me lembro de um maluco tão grande.
Viveu oitenta e nove anos e sempre a conheci da mesma maneira: roupa preta do luto permanente pela filha e marido e cabelo branco, alvo e revolto. Na infância o contraste suscitava a minha curiosidade, como se fosse uma avó a preto e branco. Era pequenina e de convicções inversamente proporcionais ao seu tamanho. Com ela passei vinte e quatro anos da minha vida. Ajudou-me a crescer e através dela tive a percepção da mudança radical dos tempos nessa travessia que foi fazendo século fora. Era uma amante indefectível da televisão e confessava amiúde Agora há coisas muito bonitas! maravilhada com as descobertas humanas e a evolução da tecnologia .
Não se conformava, porém, com o caminho desregrado dos modos e costumes. Conta a minha mãe que ela e a minha bisavó terão destruído as páginas de um livro do Egas Moniz, onde eram dadas as ver aos incautos as partes pudibundas de homem e mulher, para proteger a minha mãe, de tenra idade, desse pornógrafo também Prémio Nobel da Medicina. A minha mãe nunca se conformou com a castração do livro. Vinda do tempo em que mostrar o tornozelo era já uma ousadia, tudo o que na óptica da minha querida avó implicasse falta de pudor e de vergonha era catalogado a preceito. Que o diga eu, que no alto dessa idade guerreira e quando dei em usar saias que descobriam as coxas grossas, era sempre olhada com reprovação veemente e chamadas de atenção punitivas e castigadoras. Amiúde colocava-se por trás de mim e tentava, em vão, puxar as saias para baixo. As repreensões vinham em dois sentidos: um, não havia direito de andar assim com as carnes a descoberto, uma falta de vergonha e dois, não havia direito de ter umas carnes assim e andar assim, com as ditas destapadas. A idade adulta trouxe-me a lucidez ausente na idade guerreira e hoje sei que a segunda repreensão era justa, a bem do sentido estético.
Nesses tempos idos a minha avó recorria com muita frequência a uma expressão da qual ainda fazemos uso presentemente. Não sei o que terá aprendido nos livros, amante e devoradora que era dos mesmos, mas sei que repetidamente e quando lhe era dado a observar um comportamento devasso, despudorado e debochado, classificava-o, utilizando esse grande insano do Nero, o Imperador pirómano. Dizia Ai que pouca vergonha. Estamos no tempo do Nero! Quando me vi perante o Coliseu de Roma e do outro lado o que terá sido a casa do debochado mor do Império Romano, ocorreram-me de imediato esses tempos, os do Nero, do porco debochado, do libertino imoral entregue aos prazeres de Baco sem reservas, e, de novo, ouvi a minha querida avó evocando a idade dos excessos. Acredito que caso a minha querida avó vivesse hoje consideraria o Nero um pobre inocente perante o que lhe seria dado a observar na caixinha mágica mas continuo sem saber quem iria evocar para qualificar os tempos contemporâneos. É que depois do Nero nem eu me lembro de um maluco tão grande.
Papalagui,
ResponderEliminarquero lhe agradecer suas visitas, assim como as palavras tão afetuosas e sinceras que deixou para mim.
Muito obrigado, de coração !
Jôka de Copacabana
Gostei muito de recordar a sua avó, q conheci.Lembro-a mesmo com ar de avó, a preceito, não como as avós de hoje, como eu :)
ResponderEliminarBjos para as descendentes dela.
Jôka, de nada. Seu blogue é obrigatório para quem tem o Rio no coração como eu.
ResponderEliminarBeijinhos grandes, Milucha. A minha avó era mesmo uma avó à antiga do seu tempo. A Milucha é uma avó a preceito dos tempos modernos ;-)
A minha avó tinha também uma expressão preferida, que usava em situações emelhantes às que descreves: "está o mundo roto!", exclamava ela escandalizada. E, também nós, continuamos a usá-la.
ResponderEliminarLeonor! I feel like I'm cheating, but not true. I wanted to tell you of the good you are doing. We both love your writing, these crónicas. I print them out and my wife can read them too. We enjoy them so much because they provide an accessible interval from the realities here for 5 precious minutes.
ResponderEliminarSo there! Bless you. Stewart
I´m so happy I can bring some joy into your life. Thank you so much, it´s really the best compliment. Bless you too.
ResponderEliminarL.
pudores
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