Enfim, chegou o mais glorioso dos dias, a data imorredoira de vinte e dois de Outubro do ano da graça de mil setecentos e trinta, quando el-rei D. João V faz quarenta e um anos e vê sagrar o mais prodigioso dos monumentos que em Portugal se levantaram, ainda por acabar, é verdade, mas pela catadura se conhece o catacego. Não se descrevem tantas maravilhas, Álvaro Diogo não viu tudo, Inês Antónia tudo confundiu, Blimunda foi com eles, parecia mal não ir, mas não se sabe se sonha, se está acordada. Eram quatro da manhã quando saíram de casa para apanharem um bom lugar no terreiro, às cinco formou a tropa, ardiam archotes por toda a parte, depois começou a amanhecer, bonito dia, sim senhores, Deus cuida bem da sua fazenda, agora se vê o magnífico trono patriarcal, ao lado esquerdo do pórtico, com as suas cadeiras e dossel de veludo carmesim, com guarnições de ouro o chão coberto de alcatifas, um primor, e numa credencia a caldeirinha e o hissope, mais os restantes instrumentos, já se armou a procissão solene que dará a volta à igreja, el-rei vai nela, atrás os infantes e a fidalgaria, conforme as suas precedências, mas o principal da festa é o patriarca, benze o sal e a água, atira água benta às paredes, (…) e depois vai bater por três vezes com o báculo na porta grande do meio, que estava fechada, às três foi de vez, é a conta que Deus fez, abriu-se a porta e entrou a procissão, pena temos nós de que não entrem Álvaro Diogo e Inês Antónia, e também Blimunda, apesar do nenhum gosto, veriam as cerimónias, umas sublimes, outras tocantes, umas de derrubar-se prostradamente o corpo, outras de sublimar-se aceleradamente a alma, (…) , e nisto se passou a manhã e grande parte da tarde, eram cinco horas quando o patriarca começou a missa de pontifical, que, claro está, levou o seu tempo, e não foi pouco, enfim chegou a termo, dali subiu à tribuna da casa de Benedictione para lançar a bênção ao povo que esperava cá fora, setenta mil, oitenta mil pessoas, que num grande sussurro de movimentos e vestes se derrubaram de joelhos no chão, momento inesquecível, por muitos anos que eu viva, (…) a festa continuará, oito são os dias da sagração e este é o primeiro.
José Saramago, Memorial do Convento.
Foto: minha
José Saramago, Memorial do Convento.
Foto: minha
Magníficas obras, de D.João V e de Saramago.
ResponderEliminarQue boas recordações me trouxe este post!
ResponderEliminarBeijos aos dois :))
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