Três anos e dez meses foi o tempo necessário para que me começassem a tratar por tu. Aqui na zona deve constituir um record absoluto, uma vez que o saloio salta do você, forma de tratamento discutível, para o tu a uma velocidade estonteante. A fórmula para manter distância é exactamente uma certa distância, sem sobranceria nem arrogância, apenas um toquezinho singelo e uma demonstração clara de que tu cá, tu lá não é tratamento que agrade. Tenho alguma dificuldade em dizer claramente que não gosto que me tratem por tu sem mais aquelas, e vou insistindo, tratando o meu adversário nesta contenda por um tratamento menos íntimo. Debalde, a maior parte das vezes. O saloio é um rapaz esperto e ardilosamente ignora as indirectas. Três anos e dez meses foi, pois, o record absoluto.
Na mercearia, as tentativas deram fruto durante igual período de tempo, três anos e dez meses, mas depois de lá ter entrado e eu e a dona, sozinhas na intimidade do carvão e do pão acabadinho de sair do forno, termos trocado impressões e palavras sobre o incompreensível mundo masculino, segredo agora bem guardado entre as cebolas e as pastas de dentes, as castanhas e os queijos frescos e que me escuso aqui de revelar, a ligação entre ambas estreitou-se e a deferência começou a desvanecer-se, como um quadro a óleo repentinamente transformado em aguarela.
Adensou-se tudo isto naquele dia em que, na sapataria, avisto a dona da churrascaria de uma aldeia vizinha, a que recorremos amiúde. É uma mulher talvez pelos trinta, beneficiada pela natureza, casada com um rapaz a quem a natureza não ajudou tanto na embalagem e ambos pais de uma princezita parecida com a mãe. A churrasqueira salva-nos em dias de preguiça absoluta, Sábados, Domingos ou feriados. Lá dentro os presentes vão rodando à medida que os grelhados se aprontam e finalizam e recozendo odores e fluidos em virtude das temperaturas dignas do inferno de Dante. Nada de grandes intimidades mesmo com um braseiro tão assertivo. Uma palavra que se troca, uma observação sobre o tempo ou a criança, o resultado do jogo de futebol, se lá for nos intervalos. A dona mantém a tranquilidade mesmo sob as temperaturas escaldantes e nunca se deu a grandes exuberâncias, ao contrário da dona da mercearia. Contudo, a relação que travamos não mais foi a mesma depois daquele rendez-vous na sapataria. Na vez seguinte que regressei à churrascaria o tu saltou-se-lhe sem qualquer problema e com um à-vontade surpreendente. Há vida além do balcão da churrascaria, descoberta por acaso numa loja de vender sapatos. Certo é que a descontextualização leva a que olhemos as pessoas de forma diferente e que, por vezes, descubramos que a sua existência se prolonga além dos locais onde, por hábito, são esperadas. Acontece com frequência com os alunos quando nos descobrem às compras no supermercado ou a beber um copo na noite. Afinal são humanos, os professores, vivem além dos portões da escola. Fazem compras, comem e bebem, divertem-se como o comum dos mortais.
Ao que parece, a descoberta responsável por esta súbita intimidade deu-se de forma inesperada: os pés. Além de ser professora, morar na aldeia vizinha e rival, comer teclado ou frango grelhado, sou ainda detentora de um par de pés 36 ou 37 dependendo dos sapatos, facto revelador duma igualdade desconhecida até então para a dona da churrascaria e que me colocou de igual para igual ao ponto de poder ser tratada por tu. Os ginecologistas mesmo após nos terem avistado as amígdalas, sem sequer termos aberto a boca, continuam com o tratamento cerimonioso e deferente, portanto nada de mais íntimo do que os pés. Mostrem tudo, se não quiserem ser tratados por tu, mas os pés jamais.
Na mercearia, as tentativas deram fruto durante igual período de tempo, três anos e dez meses, mas depois de lá ter entrado e eu e a dona, sozinhas na intimidade do carvão e do pão acabadinho de sair do forno, termos trocado impressões e palavras sobre o incompreensível mundo masculino, segredo agora bem guardado entre as cebolas e as pastas de dentes, as castanhas e os queijos frescos e que me escuso aqui de revelar, a ligação entre ambas estreitou-se e a deferência começou a desvanecer-se, como um quadro a óleo repentinamente transformado em aguarela.
Adensou-se tudo isto naquele dia em que, na sapataria, avisto a dona da churrascaria de uma aldeia vizinha, a que recorremos amiúde. É uma mulher talvez pelos trinta, beneficiada pela natureza, casada com um rapaz a quem a natureza não ajudou tanto na embalagem e ambos pais de uma princezita parecida com a mãe. A churrasqueira salva-nos em dias de preguiça absoluta, Sábados, Domingos ou feriados. Lá dentro os presentes vão rodando à medida que os grelhados se aprontam e finalizam e recozendo odores e fluidos em virtude das temperaturas dignas do inferno de Dante. Nada de grandes intimidades mesmo com um braseiro tão assertivo. Uma palavra que se troca, uma observação sobre o tempo ou a criança, o resultado do jogo de futebol, se lá for nos intervalos. A dona mantém a tranquilidade mesmo sob as temperaturas escaldantes e nunca se deu a grandes exuberâncias, ao contrário da dona da mercearia. Contudo, a relação que travamos não mais foi a mesma depois daquele rendez-vous na sapataria. Na vez seguinte que regressei à churrascaria o tu saltou-se-lhe sem qualquer problema e com um à-vontade surpreendente. Há vida além do balcão da churrascaria, descoberta por acaso numa loja de vender sapatos. Certo é que a descontextualização leva a que olhemos as pessoas de forma diferente e que, por vezes, descubramos que a sua existência se prolonga além dos locais onde, por hábito, são esperadas. Acontece com frequência com os alunos quando nos descobrem às compras no supermercado ou a beber um copo na noite. Afinal são humanos, os professores, vivem além dos portões da escola. Fazem compras, comem e bebem, divertem-se como o comum dos mortais.
Ao que parece, a descoberta responsável por esta súbita intimidade deu-se de forma inesperada: os pés. Além de ser professora, morar na aldeia vizinha e rival, comer teclado ou frango grelhado, sou ainda detentora de um par de pés 36 ou 37 dependendo dos sapatos, facto revelador duma igualdade desconhecida até então para a dona da churrascaria e que me colocou de igual para igual ao ponto de poder ser tratada por tu. Os ginecologistas mesmo após nos terem avistado as amígdalas, sem sequer termos aberto a boca, continuam com o tratamento cerimonioso e deferente, portanto nada de mais íntimo do que os pés. Mostrem tudo, se não quiserem ser tratados por tu, mas os pés jamais.
Foto: Neptuno
LOL, bem faço eu que não uso sandálias!
ResponderEliminarBeijos
Podes compara uns novelos de la azul ;-)
ResponderEliminarQuem diria que afinal os pés é que nos guiam... ;o)
ResponderEliminarEna... a minha ginecologista não me escancara DESSA maneira;) Vê quanto muito a boca do estomago!
ResponderEliminarÉ, a mim, quem me mexe nos pés é porque me pode chegar ao resto do corpo todo, não é para qualquer um!
lol, Patrícia!
ResponderEliminarEu cá sinto-me devassada... ;-)