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terça-feira, 14 de novembro de 2006

A descoberta da intimidade

Três anos e dez meses foi o tempo necessário para que me começassem a tratar por tu. Aqui na zona deve constituir um record absoluto, uma vez que o saloio salta do você, forma de tratamento discutível, para o tu a uma velocidade estonteante. A fórmula para manter distância é exactamente uma certa distância, sem sobranceria nem arrogância, apenas um toquezinho singelo e uma demonstração clara de que tu cá, tu lá não é tratamento que agrade. Tenho alguma dificuldade em dizer claramente que não gosto que me tratem por tu sem mais aquelas, e vou insistindo, tratando o meu adversário nesta contenda por um tratamento menos íntimo. Debalde, a maior parte das vezes. O saloio é um rapaz esperto e ardilosamente ignora as indirectas. Três anos e dez meses foi, pois, o record absoluto.
Na mercearia, as tentativas deram fruto durante igual período de tempo, três anos e dez meses, mas depois de lá ter entrado e eu e a dona, sozinhas na intimidade do carvão e do pão acabadinho de sair do forno, termos trocado impressões e palavras sobre o incompreensível mundo masculino, segredo agora bem guardado entre as cebolas e as pastas de dentes, as castanhas e os queijos frescos e que me escuso aqui de revelar, a ligação entre ambas estreitou-se e a deferência começou a desvanecer-se, como um quadro a óleo repentinamente transformado em aguarela.
Adensou-se tudo isto naquele dia em que, na sapataria, avisto a dona da churrascaria de uma aldeia vizinha, a que recorremos amiúde. É uma mulher talvez pelos trinta, beneficiada pela natureza, casada com um rapaz a quem a natureza não ajudou tanto na embalagem e ambos pais de uma princezita parecida com a mãe. A churrasqueira salva-nos em dias de preguiça absoluta, Sábados, Domingos ou feriados. Lá dentro os presentes vão rodando à medida que os grelhados se aprontam e finalizam e recozendo odores e fluidos em virtude das temperaturas dignas do inferno de Dante. Nada de grandes intimidades mesmo com um braseiro tão assertivo. Uma palavra que se troca, uma observação sobre o tempo ou a criança, o resultado do jogo de futebol, se lá for nos intervalos. A dona mantém a tranquilidade mesmo sob as temperaturas escaldantes e nunca se deu a grandes exuberâncias, ao contrário da dona da mercearia. Contudo, a relação que travamos não mais foi a mesma depois daquele rendez-vous na sapataria. Na vez seguinte que regressei à churrascaria o tu saltou-se-lhe sem qualquer problema e com um à-vontade surpreendente. Há vida além do balcão da churrascaria, descoberta por acaso numa loja de vender sapatos. Certo é que a descontextualização leva a que olhemos as pessoas de forma diferente e que, por vezes, descubramos que a sua existência se prolonga além dos locais onde, por hábito, são esperadas. Acontece com frequência com os alunos quando nos descobrem às compras no supermercado ou a beber um copo na noite. Afinal são humanos, os professores, vivem além dos portões da escola. Fazem compras, comem e bebem, divertem-se como o comum dos mortais.
Ao que parece, a descoberta responsável por esta súbita intimidade deu-se de forma inesperada: os pés. Além de ser professora, morar na aldeia vizinha e rival, comer teclado ou frango grelhado, sou ainda detentora de um par de pés 36 ou 37 dependendo dos sapatos, facto revelador duma igualdade desconhecida até então para a dona da churrascaria e que me colocou de igual para igual ao ponto de poder ser tratada por tu. Os ginecologistas mesmo após nos terem avistado as amígdalas, sem sequer termos aberto a boca, continuam com o tratamento cerimonioso e deferente, portanto nada de mais íntimo do que os pés. Mostrem tudo, se não quiserem ser tratados por tu, mas os pés jamais.
Foto: Neptuno

5 comentários:

  1. LOL, bem faço eu que não uso sandálias!
    Beijos

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  2. Podes compara uns novelos de la azul ;-)

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  3. Quem diria que afinal os pés é que nos guiam... ;o)

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  4. Ena... a minha ginecologista não me escancara DESSA maneira;) Vê quanto muito a boca do estomago!

    É, a mim, quem me mexe nos pés é porque me pode chegar ao resto do corpo todo, não é para qualquer um!

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  5. lol, Patrícia!
    Eu cá sinto-me devassada... ;-)

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