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sábado, 24 de março de 2007

A balzaquiana

Há coisas que uma mãe não deve dizer a uma filha.
Atravessávamos a secção de roupa masculina, vindas da roupa de desporto. Vou atrás de ti disse a minha mãe Nunca sei para que lado é a saída. Entretanto, pôs-se-lhe ao caminho uma camisa laranja suave e disse O Hélder devia gostar desta camisa… Concordei, sim, era a cara dele. E depois a conversa retomou onde tinha parado antes da camisa, do zigzaguear entre os expositores de roupa estival e da curva para as escadas rolantes. Mas porque é que não compraste aquilo? inquiriu Porque ficava com a barriga à mostra respondi. Ressalve-se que a barriga à mostra se referia apenas a uma tarja da mesma proeminência abdominal. A minha mãe respondeu Ora essa, e qual era o problema? Esclareci Menina, já não tenho barriga para mostrar, resignada com a força da gravidade. A minha respeitosa progenitora atirou-me Olha lá, tu não andas sempre a ler literatura brasileira? O que é que diz o Vinicius de Moraes sobre as mulheres? A pergunta ficou suspensa. Lembrei-me que também o meu pai fazia referência a Vinicius quando se falava de barrigas femininas e que sempre foi apologista de que uma barriguinha dá um certo encanto às mulheres. De resto, o meu pai, homem de outras eras, sempre defendeu afincadamente a existência de curvas no corpo feminino. A minha mãe continuou Sim, o que é que ele dizia? E além disso as mulheres de 40 anos, as balzaquianas… BALZAQUIANAS? Sim, as mulheres de 40! esclareceu, isto para que não subsistisse a menor dúvida. Íamos a descer na escada rolante, amparei-me o melhor que pude no corrimão tão rolante quanto as escadas e ameacei-a que me precipitaria nas mesmas, caso continuasse a aplicar-me o epíteto, não por desrespeito ao Balzac, deus o tenha em descanso, mas porque, subitamente, olhei-me como nunca antes. Ainda hesitei em acusá-la a uma mulher que subia as escadas e quase se cruzava connosco, filha e mãe trocando palavras literatas entre Vinicius e Balzac.
A balzaquiana desceu as escadas com a sua mãe na sua nova condição. Ambas vieram para casa. A balzaquiana chegou a casa e fez queixas ao marido em frente à mãe A minha mãe hoje tratou-me mal… O marido quis saber da mãe Então hoje tratou mal a sua filha? A mãe da balzaquiana riu-se a perder, gargalhou e ripostou Coisas dela, só lhe chamei balzaquiana… A balzaquiana soltou um som, algures entre o gemido e a histeria Só?! A mãe da balzaquiana riu-se mais uma vez. O marido acrescentou Ah, isso são coisas que se chamem à sua filha?! A balzaquiana não viu, mas sabe que o marido terá dado uma piscadela de olho cúmplice à mãe da balzaquiana. A balzaquiana entregou-se à sua lamúria peganhenta. Saber-se para lá das quatro décadas era já de si um facto tortuoso com que lidava diariamente entre o espelho e as calças de ganga, o contorno dos olhos e as ancas. Assumir-se como balzaquiana um pesadelo. A balzaquiana reparte agora os seus dias esperando, rogando a deus, jah, alá e aos orixás que jamais a mãe lhe cite Vinicius de novo, senão correrá o risco de que ela lhe diga, quando, um dia, a balzaquiana estiver a perder-se por um desses cremes milagrosos contra as imperfeições irremediáveis que sim, que compre, Compra, compra, filha, mesmo não adiantando muito, é que Vinicius também dizia As muito feias que me perdoem mas beleza é fundamental.

15 comentários:

  1. :)

    Um beijinho para ti (e outro para a tua mãe).

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  2. Beijinhos também e re-bem-vinda ;-)

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  3. Cada vez gosto mais da tua mãe :-)
    Bjs

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  4. Ah, mas a tua mãe fez um update no Balzac. No tempo dele as 'balzaquianas' eram as mulheres de 30 anos. Felizmente para nós, parece que '40 is the new 30', lol.

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  5. A minha mãe é muito à frente... ;-)

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  6. "Une femme de trente ans a d'irrésistibles attraits...
    En effet, une jeune fille a trop d'illusions, trop d'inexpérience...
    La jeune fille n'a qu'une coquetterie, et croit avoir tout dit quand elle a quitté son vêtement; mais la femme en a d'innombrables et se cache sous mille voiles..."
    H. de Balzac

    Ou como se cantava no carnaval de 1950:

    Não quero broto, não quero,
    Não quero não,
    Não sou garoto
    Pra viver mais de ilusão,
    Sete dias da semana,
    Eu preciso ver,
    Minha balzaqueana.

    O francês, sabe escolher,
    Por isso ele não quer,
    Qualquer mulher,
    Papai Balzac, já dizia,
    Paris inteira repetia,
    Balzac acertou na pinta,
    Mulher só depois dos trinta.

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  7. Obrigada, Aventino, pelo seu contributo sempre a propósito e enriquecedor :-)

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  8. E também havia uma música nos anos 80 que dizia «Cristina, não vais levar a mal mas beleza é fundamental...» ;)
    Beijocas

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  9. Mas nós cá em casa é mais literatura... ;-)
    Beijos

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  10. Um update de certeza porque eu tinha um colega que me fazia o favor de me estar sempre a chamar Balzaquiana, e que bem me irritava!
    ;o)

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  11. Simpático esse teu colega ;-)

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  12. Ai, ai! Que mamã tão má...
    Obrigada aos amigos que compreenderam e viram que este termo balzaquiana foi dito com carinho :) Trinta? Quarenta? Que interessa? A vida, sim, a vida e o modo como se leva é que conta :)
    Obrigada Avenalve pela oportunidade... lembro-me bem dessa canção tal como recordo a que Carlos citou.
    Que velha!Eu é que já nem balzaquiana sou ... ah ah ah :)
    Bjs para todos

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  13. ahahaha que mãe bem disposta!

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  14. É impossível não rir com a teimosita ;)

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