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domingo, 15 de abril de 2007

(...)
O que farei daqui para a frente, se existir daqui para a frente? Livros, claro, foi para isso que me mandaram para o meio de vós. Quando isto sucedeu lutava com um, tinha outro pronto, já antigo, pronto há um ano e tal, para Outubro. Para dar tempo aos tradutores de o traduzirem e saírem mais ou menos na mesma altura que em Portugal. Esse livro tem a melhor prosa que fiz até hoje, parece recitado por um anjo. Aquele em que trabalhava é apenas um embrião, cerca de metade do primeiro esboço, falta-lhe quase tudo. A partir de agora, se calhar, falta-lhe tudo. Voltarei a ele? Uma coisa de cada vez, não é Henrique? Vamos a ver. De uma forma ou outra a gente luta sempre. Momentos de quase esperança, momentos de desânimo. Não: momentos de muito desânimo e momentos de desânimo maior, Como se me obrigassem a escolher entre o que não vale nada e o que vale ainda menos. Este mês deram-me um prémio literário. Estão sempre a dar-me prémios e claro que tenho prazer nisso, não sou mentiroso nem hipócrita. Toda a gente foi muito simpática.
e sem que eles sonhassem
(sonhava eu)
o cancro
ratando, ratando, injusto, teimoso, cego. Mói e mata. Mata. Mata. Mata. Mata. Levou-me tantas das pessoas que mais queria. E eu, já agora, quero-me? Sim. Não. Sim. Não - sim. Por enquanto meço o meu espanto, à medida que nas árvores da cerca uns pardais fazem ninho. A primavera mal começou e eles truca, ninho. Obrigado, Senhor, por haver futuro para alguém.


António Lobo Antunes, "Crónica do Hospital"
“Visão”, 12 de Abril 2007

5 comentários:

  1. O fdp do cancro...já me levou um dos pais, o ano passado quis levar-me o «outro». Que ALA tenha a mesma quase esperança que o «outro». Seja para escrever livros, ou para fazer o que lhe der na real gana.

    Beijocas

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  2. Infelizmente também fiquei sem o meu pai por causa do fdp :-(
    Esta crónica é das coisas mais impressionantes que já li pela lucidez com que é tratado o assunto na primeira pessoa e com o brilhantismo de sempre da escrita de ALA. Espero sinceramente que melhore.
    Beijocas

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  3. Também li a crónica na Visão. Não sabia da situação...
    Beijos

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  4. Esta crónica é espantosa.Li, reli e divulguei, qaundo saiu na 'Visão'.Lembrei-me do 'De Profundis, Valsa Lenta' do Cardoso Pires, também partindo de uma vivência pessoal como enfermo.Maravilhosos os dois!

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  5. Esse também um dos meus livros de eleição. Acho que nunca a leitura de uma crónica me incomodou tanto como esta.
    Beijos

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