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segunda-feira, 9 de abril de 2007

A vida por um canudo

O José era mais velho do que quase todos nós. Contavam-se pelos dedos, à data, os estudantes que teriam ultrapassado a idade média dos estudantes da Faculdade de Letras. Era casado, tinha um filho, uma vida muito mais complexa do que a dos restantes, com responsabilidades desconhecidas da maioria dos colegas e ousara fazer aquilo que nunca ninguém antes tinha feito na sua família: estudar. Fazia enormes e louváveis sacrifícios para que o seu sonho tomasse forma e, durante aqueles quatro anos de faculdade e dois de estágio imediatamente a seguir, nunca o vi de braços cruzados perante qualquer situação. Provinha da Beira Litoral, não que eu o reconheça como condição sine qua non para a voz corpulenta e estridente, mas avisava frequentemente, mais quando a vida não lhe corria a contento, que era da praia e com isto arrumava alguns dos assuntos. Depois da conclusão do curso, cada um seguiu a sua vida, como acontece geralmente. O José regressou à praia, ufano pelo seu feito, com todo o mérito, pois claro. Num encontro posterior relatou-me um episódio que recordo até hoje. Certo dia na aldeia lá da praia, chegou-lhe aos ouvidos que a dona da mercearia andava a duvidar de que ele tivesse concluído os estudos e a espalhar o boato pelas gentes ribeirinhas. O José tomou-se furioso de razões, compreensivelmente depois de tanto sacrifício. Certo dia, aparece na mercearia, para pedir explicações à mulher. Sim, afinal, como é que era? Então você anda a dizer que eu não acabei o curso? Algo me diz que nesta parte da contenda terá questionado se a mulher achava ele que não era doutor, e, sem mais demora, saca do certificado de habilitações e zás trás pás, esfregou-o na cara da caluniadora. Contou-me ele mesmo que lhe terá dito que ainda tinha outro em latim, uma referência directa ao canudo propriamente dito, aposto que até teria causado outra impressão na dona da mercearia com o selo e o lacre, mas que ela não percebia aquela língua. Além de alcoviteira era ignorante. A dona da mercearia da aldeia da praia ficou entupigaitada. O José tranquilo por ter reposto a verdade e recuperado a sua reputação de homem letrado com certificação. Não querem lá ver isto, duvidar de uma pessoa assim?
Vem isto a propósito do imbróglio em torno das habilitações de José Sócrates. Bem sei que o país não é Tibaldinho ou Carvalhal, mas também fica à beira-mar, que José Sócrates não vem da praia como o meu colega, agradeço que ninguém me esfregue com o certificado de habilitações na cara, muito menos que me arremesse com o selo do diploma, se não for doutor, engenheiro, arquitecto ninguém levará a mal, afinal nem todos somos como a dona da mercearia da aldeia da praia, mas uma coisa tenho como certa, mentir é muito feio, jamais se confiará em quem nos mente uma vez que seja, e quem não deve não teme, portanto, caro José Sócrates, em que é que ficamos?

12 comentários:

  1. Onde é que eu já ouvi essa das pessoas da Beira Litoral terem "voz corpulenta e estridente"? Ai a má fama segue-nos para todo o lado ;-P

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  2. lol
    Não te preocupes, eu sou arraçada da Beira Alta e voz corpulenta e estridente não me falta, nem a a mim nem à minha mãe ;-)

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  3. Entupigaitada ;o)
    Tens razão no que dizes.... mas também é sinal que neste país os políticos andam todos + preocupados em discutir o diploma do Sócrates do que problemas reais. Vão trabalhar! :)

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  4. Entupigaitada é um termo que sempre se usou em casa dos meus pais, mas que escrevi ontem pela primeira vez. Logo, quando estiver com a minha mãe já vou esclarecer a origem. Beijocas

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  5. Adorei esta tua crónica e estou de acordo contigo. Nada disto acontecia se este país não tivesse a obsessão dos Doutores e Engenheiros, que leva as pessoas até a inventar títulos académicos. O Presidente do Brasil tem o curso de torneiro mecânico e, este ano, pela primeira vez, mais de metade da população passou a viver acima do limiar de pobreza.

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  6. A começar pelo próprio PM, qual era o problema de não ser licenciado? Posso estar a saltar para as conclusões mas parece-me, pelo que foi dito, que ele foi a correr para a Independente para ser engenheiro, uma vez que estava a ter maior projecção política e sem canudo faltava-lhe "substância"... O que me chateia é a mentalidade mesquinha que leva a que as pessoas omitam quem são em favor daquilo que acham que devem ser. Por outro lado, também se dá o inverso: já fui olhada de lado pelos meus pares por ter progredido na carreira por causa de ter mestrado. Digo-lhes sempre que não foi por dormir com o chefe, o processo é claro e transparente, e que o mestrado pode ser feito por qualquer um: fizessem-no também. Se não o fizeram, não têm de atacar quem o fez. Enfim, mentalidade de caca, para não dizer outra coisa ;-)

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  7. A ideia para a crónica surgiu-me ontem na conversa com a minha mãe, que também conhece muito bem este meu colega. Sempre achei hilariante o episódio e imagino-o a entrar na mercearia de certificado de habilitações na mão.
    Bjs

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  8. Esclarecimento: entupigaitado era usado por o meu tio brasileiro :-)

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  9. Entupigaitar
    verbo
    Regionalismo: Brasil. Uso: informal.
    transitivo direto e pronominal
    causar embaraço ou embaraçar-se; fazer calar ou calar(-se); atrapalhar(-se), confundir(-se), desorientar(-se), desnortear(-se)

    Entupigaitado
    adjetivo
    que se entupigaitou; atrapalhado, embaraçado, confuso, mudo

    Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

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  10. Vou nomear o Aventino consultor para assuntos linguísticos e outros deste humilde cantinho!
    Obrigada mais uma vez :-)

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  11. :o)
    E eu vou começar a usar a palavra!
    Bjos

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  12. Pelo que li ou ouvi algures, é que há certos cargos políticos que exigem um licenciado, estando neles incluído o cargo de PM. Ora a ser verdade que o nosso PM não é licenciado, ele teria de se demitir do cargo. Parece que já houve um secretário de estado que foi destituído do cargo por isso mesmo.
    Uma parvoíce de uma lei, diga-se :-P

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