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quarta-feira, 11 de julho de 2007

As partidas de Mercúrio

Um burburinho constante vindo daquele lado da sala. Não que fosse muito estridente ou sequer perturbador. Indiciava porém alguma impaciência. Com o decorrer do tempo e depois de algumas chamadas de atenção, e também porque partilhávamos o mesmo espaço à mesma hora, fui-me apercebendo de onde vinha a inquietude.
Uma rapariga, não recém-chegada à escola pelo aparente à-vontade com que se deslocava, as calças sempre um palmo abaixo da linha de cintura, amiúde visíveis as réstias de roupa interior, o cabelo ora pelos ombros, ora apanhado e sempre, mas sempre, alguma inquietação e ansiedade na procura do computador disponível que lhe permitisse navegar por esse mundo fora. A impaciência frente a frente com o ecrã era presença habitual nas suas estadias no Centro de Recursos. Inicialmente identifiquei-me com a rapariga Caramba! Tamanha lentidão! Dá para adormecer aqui! Com a passagem do tempo e mesmo em dias em que a net voava pelas auto-estradas virtuais do espaço cibernético, a impaciência da jovem mulher em botão não debandava. O coração, o coração talvez, pensei, que o coração é um bicho matreiro e prega partidas aos prevenidos, quanto mais aos ainda jovens, carecidos de escudo afectivo contra as malvadezas do dito. E como também o coração tem os seus limites, cedo arrumei na estante a hipótese das partidas do órgão sentidor. Não, o coração não era.
Certo dia, quando estava com uma aluna minha, a rapariga voltou aos acessos de intemperança. A amiga a seu lado sorriu e sorriu-me e, dado o à-vontade, perguntou que raio significava aquela palavra. Respondi. A outra suspirou de alívio. Dias e dias à volta com a palavra mas nada de se figurar um sentido, um significado que fosse.
Abeirei-me delas. A rapariga, nos seus dezassete anos, sabia-o agora, tinha dificuldades hercúleas em decifrar vocábulos que lhe apareciam vezes sem conta no ecrã à sua frente. Entabulámos conversa, tocou para a entrada entretanto e cada uma foi à sua vida. Na semana seguinte o mesmo problema e o meu auxílio foi solicitado como tábua de salvação. E se eu não estivesse aqui? A rapariga respondeu Mas está e retorqui E se estivesses em casa sozinha? A rapariga encolheu os ombros, desta vez, resignada com a incapacidade de processar a informação que corria lampeira e sem vergonha no ecrã à sua frente.
Uma ocasião, questionou-me A Setora anda sempre com livros? Quase sempre. Porquê? A rapariga foi lesta na resposta Odeio ler! Como odeias ler? Passas a vida a ler aí no computador! Sim, retorquiu, Mas é diferente. A Setora já viu o camalhaço que são Os Maias? Não só vi, como li, respondi-lhe. Que cena! Disse-me. Aproveitei a deixa Então, mas o teu problema é o tamanho do livro? Até é, não tenho tempo de ler aquilo. Procurei o O nas estantes da literatura lusófona e estendi-lhe Os da minha rua do Ondjaki. Assim está melhor? Ela riu-se Mas isso presta? Tão fininho? Ri-me. Na adolescência raramente nos satisfazemos com algo. Leva e lê.
Para a semana falamos.
Na semana seguinte a rapariga não apareceu. Tinha sido acometida de um catarro forte que a obrigara à reclusão do lar, a acrescer a isto, o Mercúrio estava retrógrado e, portanto, o computador de casa finou-se com um chiar fininho para nunca mais dar conta de si. É sabido que o Mercúrio é um péssimo conselheiro de todas as maquinarias, engenhocas e aparelhagens eléctricas e electrónicas.
Quando regressou, estendeu-me o livro Já li! E então? Questionei É muita louco! Quem é este Ondjaki? Aconselhei Vais à net e fazes uma pesquisa. Ah mas esta malta dos livros não está na net. A Net é muito à frente!!!! disse convicta. Deixei-a sossegada e esperei pela semana seguinte. Veio ter comigo Eh, ganda cena, setora! Já sei quem é o Ondjaki! Boa! respondi. Afinal, estava ou não estava na net? Regressei ao trabalho e perto do toque a rapariga veio ter comigo. Setora? Sim! Há mais livros destes?

7 comentários:

  1. Bué da gira, esta cena!
    Às vezes tenho dúvidas sobre a existência de alguns jovens. Quero dizer: de onde vêm?, o que fazem aqui?, para onde vai toda a informação que era suposto absorverem?, para onde vão eles próprios?...
    :)
    Beijola.

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  2. Ó 'stora! Eu até gosto de ler, e até li "Os Maias" e até gostei (se bem que menos 200 páginas não fizessem mal ao Mundo :)), e até tenho livros, e até tenho livros que sei que eu vou gostar de ler, e até há muitos outros que não tenho mas hei-de ter, e alguns desses livros até nem são muito grandes, e... e... e... Só me falta mesmo lê-los! Mas a 'stora vai ver... Neste Verão vou retomar as leituras! :)

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  3. Este texto é a mais oura ficação. Faz parte de um exercício que tive de fazer para uma Oficina de Formação sobre Bibliotecas e Literacia. Inspirei-me nas minhas horas no Centro de Recursos, algo que faço com enorme prazer e nas minhas alunas em geral.

    Cristina, se quiseres o livro fininho, empresto-to ;-)

    Carlota, ontem na Oficina de que falei debatemos muito isso. Algo se perde ao longo do caminho e que convém identificar para que se possa fazer algo. Às vezes parece que os jovens regridem entre os vários ciclos. Enfim, preocupações de professores.
    Beijos

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  4. oura ficação é giro :(
    pura ficção

    Obrigada, Carlota

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  5. Caramba, e eu a pensar que tinhas convertido mais uma alma... ora bolas! Já sei, dás este texto a ler numa aula e pode ser que eles vão depois ler o Ondjaki!

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  6. O objectivo do exercício era esse mesmo: uma estratégia para a formação de leitores mediante um perfil que nos era dado. O meu era uma aluna de 17 anos que achava que "a internet é que está a dar", "a leitura não é coisa que esteja na moda", e que tinha pouco vocabulário. Para mim, que não sou de Português, foi mais fácil pegar nesta situação e contar uma estória:-)

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