Um burburinho constante vindo daquele lado da sala. Não que fosse muito estridente ou sequer perturbador. Indiciava porém alguma impaciência. Com o decorrer do tempo e depois de algumas chamadas de atenção, e também porque partilhávamos o mesmo espaço à mesma hora, fui-me apercebendo de onde vinha a inquietude.
Uma rapariga, não recém-chegada à escola pelo aparente à-vontade com que se deslocava, as calças sempre um palmo abaixo da linha de cintura, amiúde visíveis as réstias de roupa interior, o cabelo ora pelos ombros, ora apanhado e sempre, mas sempre, alguma inquietação e ansiedade na procura do computador disponível que lhe permitisse navegar por esse mundo fora. A impaciência frente a frente com o ecrã era presença habitual nas suas estadias no Centro de Recursos. Inicialmente identifiquei-me com a rapariga Caramba! Tamanha lentidão! Dá para adormecer aqui! Com a passagem do tempo e mesmo em dias em que a net voava pelas auto-estradas virtuais do espaço cibernético, a impaciência da jovem mulher em botão não debandava. O coração, o coração talvez, pensei, que o coração é um bicho matreiro e prega partidas aos prevenidos, quanto mais aos ainda jovens, carecidos de escudo afectivo contra as malvadezas do dito. E como também o coração tem os seus limites, cedo arrumei na estante a hipótese das partidas do órgão sentidor. Não, o coração não era.
Certo dia, quando estava com uma aluna minha, a rapariga voltou aos acessos de intemperança. A amiga a seu lado sorriu e sorriu-me e, dado o à-vontade, perguntou que raio significava aquela palavra. Respondi. A outra suspirou de alívio. Dias e dias à volta com a palavra mas nada de se figurar um sentido, um significado que fosse.
Abeirei-me delas. A rapariga, nos seus dezassete anos, sabia-o agora, tinha dificuldades hercúleas em decifrar vocábulos que lhe apareciam vezes sem conta no ecrã à sua frente. Entabulámos conversa, tocou para a entrada entretanto e cada uma foi à sua vida. Na semana seguinte o mesmo problema e o meu auxílio foi solicitado como tábua de salvação. E se eu não estivesse aqui? A rapariga respondeu Mas está e retorqui E se estivesses em casa sozinha? A rapariga encolheu os ombros, desta vez, resignada com a incapacidade de processar a informação que corria lampeira e sem vergonha no ecrã à sua frente.
Uma ocasião, questionou-me A Setora anda sempre com livros? Quase sempre. Porquê? A rapariga foi lesta na resposta Odeio ler! Como odeias ler? Passas a vida a ler aí no computador! Sim, retorquiu, Mas é diferente. A Setora já viu o camalhaço que são Os Maias? Não só vi, como li, respondi-lhe. Que cena! Disse-me. Aproveitei a deixa Então, mas o teu problema é o tamanho do livro? Até é, não tenho tempo de ler aquilo. Procurei o O nas estantes da literatura lusófona e estendi-lhe Os da minha rua do Ondjaki. Assim está melhor? Ela riu-se Mas isso presta? Tão fininho? Ri-me. Na adolescência raramente nos satisfazemos com algo. Leva e lê. Para a semana falamos.
Na semana seguinte a rapariga não apareceu. Tinha sido acometida de um catarro forte que a obrigara à reclusão do lar, a acrescer a isto, o Mercúrio estava retrógrado e, portanto, o computador de casa finou-se com um chiar fininho para nunca mais dar conta de si. É sabido que o Mercúrio é um péssimo conselheiro de todas as maquinarias, engenhocas e aparelhagens eléctricas e electrónicas.
Quando regressou, estendeu-me o livro Já li! E então? Questionei É muita louco! Quem é este Ondjaki? Aconselhei Vais à net e fazes uma pesquisa. Ah mas esta malta dos livros não está na net. A Net é muito à frente!!!! disse convicta. Deixei-a sossegada e esperei pela semana seguinte. Veio ter comigo Eh, ganda cena, setora! Já sei quem é o Ondjaki! Boa! respondi. Afinal, estava ou não estava na net? Regressei ao trabalho e perto do toque a rapariga veio ter comigo. Setora? Sim! Há mais livros destes?
Uma rapariga, não recém-chegada à escola pelo aparente à-vontade com que se deslocava, as calças sempre um palmo abaixo da linha de cintura, amiúde visíveis as réstias de roupa interior, o cabelo ora pelos ombros, ora apanhado e sempre, mas sempre, alguma inquietação e ansiedade na procura do computador disponível que lhe permitisse navegar por esse mundo fora. A impaciência frente a frente com o ecrã era presença habitual nas suas estadias no Centro de Recursos. Inicialmente identifiquei-me com a rapariga Caramba! Tamanha lentidão! Dá para adormecer aqui! Com a passagem do tempo e mesmo em dias em que a net voava pelas auto-estradas virtuais do espaço cibernético, a impaciência da jovem mulher em botão não debandava. O coração, o coração talvez, pensei, que o coração é um bicho matreiro e prega partidas aos prevenidos, quanto mais aos ainda jovens, carecidos de escudo afectivo contra as malvadezas do dito. E como também o coração tem os seus limites, cedo arrumei na estante a hipótese das partidas do órgão sentidor. Não, o coração não era.
Certo dia, quando estava com uma aluna minha, a rapariga voltou aos acessos de intemperança. A amiga a seu lado sorriu e sorriu-me e, dado o à-vontade, perguntou que raio significava aquela palavra. Respondi. A outra suspirou de alívio. Dias e dias à volta com a palavra mas nada de se figurar um sentido, um significado que fosse.
Abeirei-me delas. A rapariga, nos seus dezassete anos, sabia-o agora, tinha dificuldades hercúleas em decifrar vocábulos que lhe apareciam vezes sem conta no ecrã à sua frente. Entabulámos conversa, tocou para a entrada entretanto e cada uma foi à sua vida. Na semana seguinte o mesmo problema e o meu auxílio foi solicitado como tábua de salvação. E se eu não estivesse aqui? A rapariga respondeu Mas está e retorqui E se estivesses em casa sozinha? A rapariga encolheu os ombros, desta vez, resignada com a incapacidade de processar a informação que corria lampeira e sem vergonha no ecrã à sua frente.
Uma ocasião, questionou-me A Setora anda sempre com livros? Quase sempre. Porquê? A rapariga foi lesta na resposta Odeio ler! Como odeias ler? Passas a vida a ler aí no computador! Sim, retorquiu, Mas é diferente. A Setora já viu o camalhaço que são Os Maias? Não só vi, como li, respondi-lhe. Que cena! Disse-me. Aproveitei a deixa Então, mas o teu problema é o tamanho do livro? Até é, não tenho tempo de ler aquilo. Procurei o O nas estantes da literatura lusófona e estendi-lhe Os da minha rua do Ondjaki. Assim está melhor? Ela riu-se Mas isso presta? Tão fininho? Ri-me. Na adolescência raramente nos satisfazemos com algo. Leva e lê. Para a semana falamos.
Na semana seguinte a rapariga não apareceu. Tinha sido acometida de um catarro forte que a obrigara à reclusão do lar, a acrescer a isto, o Mercúrio estava retrógrado e, portanto, o computador de casa finou-se com um chiar fininho para nunca mais dar conta de si. É sabido que o Mercúrio é um péssimo conselheiro de todas as maquinarias, engenhocas e aparelhagens eléctricas e electrónicas.
Quando regressou, estendeu-me o livro Já li! E então? Questionei É muita louco! Quem é este Ondjaki? Aconselhei Vais à net e fazes uma pesquisa. Ah mas esta malta dos livros não está na net. A Net é muito à frente!!!! disse convicta. Deixei-a sossegada e esperei pela semana seguinte. Veio ter comigo Eh, ganda cena, setora! Já sei quem é o Ondjaki! Boa! respondi. Afinal, estava ou não estava na net? Regressei ao trabalho e perto do toque a rapariga veio ter comigo. Setora? Sim! Há mais livros destes?
Bué da gira, esta cena!
ResponderEliminarÀs vezes tenho dúvidas sobre a existência de alguns jovens. Quero dizer: de onde vêm?, o que fazem aqui?, para onde vai toda a informação que era suposto absorverem?, para onde vão eles próprios?...
:)
Beijola.
Ó 'stora! Eu até gosto de ler, e até li "Os Maias" e até gostei (se bem que menos 200 páginas não fizessem mal ao Mundo :)), e até tenho livros, e até tenho livros que sei que eu vou gostar de ler, e até há muitos outros que não tenho mas hei-de ter, e alguns desses livros até nem são muito grandes, e... e... e... Só me falta mesmo lê-los! Mas a 'stora vai ver... Neste Verão vou retomar as leituras! :)
ResponderEliminarEste texto é a mais oura ficação. Faz parte de um exercício que tive de fazer para uma Oficina de Formação sobre Bibliotecas e Literacia. Inspirei-me nas minhas horas no Centro de Recursos, algo que faço com enorme prazer e nas minhas alunas em geral.
ResponderEliminarCristina, se quiseres o livro fininho, empresto-to ;-)
Carlota, ontem na Oficina de que falei debatemos muito isso. Algo se perde ao longo do caminho e que convém identificar para que se possa fazer algo. Às vezes parece que os jovens regridem entre os vários ciclos. Enfim, preocupações de professores.
Beijos
Então, bom trabalho!
ResponderEliminarBeijola.
oura ficação é giro :(
ResponderEliminarpura ficção
Obrigada, Carlota
Caramba, e eu a pensar que tinhas convertido mais uma alma... ora bolas! Já sei, dás este texto a ler numa aula e pode ser que eles vão depois ler o Ondjaki!
ResponderEliminarO objectivo do exercício era esse mesmo: uma estratégia para a formação de leitores mediante um perfil que nos era dado. O meu era uma aluna de 17 anos que achava que "a internet é que está a dar", "a leitura não é coisa que esteja na moda", e que tinha pouco vocabulário. Para mim, que não sou de Português, foi mais fácil pegar nesta situação e contar uma estória:-)
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