A mercearia nunca mais foi a mesma desde que a irmã da dona abandonou o mister. Seria a úrsula? Diz-me a irmã, a dona da mercearia, que eram os nervos. Um problema. Disse-lhe que sim, que os nervos são um problema mas que a tinha visto aflita da coluna e assim foi há uns tempos. A mulher insistiu As costas e a cluna era tudo por causa dos nerbos. Pois, pois, parecia-me uma pessoa ansiosa. Bocê, sabe lá… é teimosa a nha irmã. Eu queria levá-la ao massagista, aquilo era três dias e tava boa, mas ela quis ir ao preto de Alcainça… O preto de Alcainça? Sim, o massagista. Ah… Assim foi mais tempo. Ah pois. Mas onte já a bi no balhe, a balhar. Já tá boa! Felizmente. A diferença que faz o preto da Alcainça!
E dado este estado de coisas, a irmã que agora faz uns biscates aí nas casas de umas senhoras por causa dos nerbos na mercearia, a mãe a fazer um pãozinho delicioso e a outra filha num cafei, a dona outro remédio não teve se não pôr lá a filha mais nova, uma garota adolescente, robusta, com as protuberâncias abdominais a saírem-se-lhe pelas calças rebaixadas e para quem, ao contrário do mulherio administrador do estabelecimento, o cliente não é rei. À hora da novela o cliente é até um rapaz intrometido e inconveniente que não a deixa ver calmamente a saga infindoura no canto oposto à caixa resistadora no cocuruto duma estante.
A rapariga tem uma coisa boa no dizer da mãe, tem força, Mais força ca outra confessou-me um dia, e por força, entenda-se a impetuosidade de um panzer que irrompe entre os vegetais e a arca frigorífica, as sacas de cebola, as courgettes e a arca dos iogurtes sempre que necessário. Talvez por isto, uma ocasião, a estante onde se apoiou para chegar ao topo dum armário, certamente para satisfazer os desejos caprichosos de algum cliente, tenha cedido e os fregueses, eu incluída, brindados com uma chuva torrencial de chocolates Regina, Sugus de menta e melão, Conguitos e chupas. A rapariga na se ralou. Enquanto a freguesia ajuntava os chocolates do chão, nem um agradecimento, e a estante olhando-nos ameaçadora, ainda periclitante com uma das esquinas levemente enviesada a indiciar o resvale iminente. Nada a recear. Com esta cabeleira sempre amortecia as sombrinhas de chocolate que tinham resistido ao tombo.
O pesadelo voltou quando lhe pedi duas latas de feijão preto, que por azar me olhavam altaneiras doutra estante. Aí não haveria cabeleira que me salvasse mas, por esta altura, a rapariga já tinha adquirido maior agilidade de movimentos na travessia da mercearia e adquirira uma outra característica curiosa: a de zeladora escrupulosa da carteira dos clientes. A rapariga revirou as latas, leu as receitas nos rótulos, disse-me que gostava de comidas diferentes e por fim, atirou Atão mas porque é que bocê leba duas? Uma das grandes é mais barata que duas, ó, disse apontando para a etiqueta do preço, 50 cêntimos. Preferia duas pequenas, é certo, mas perante a evidência, e sob pena de passar por uma perdulária gastadora e arrasar a minha reputação na mercearia, lá trouxe a lata grande de feijão preto. Nada de mais: duas refeições a eito de feijão tropeiro.
Naquele dia, o queixume era outro: a máquina do Multibanco não funcionava. E que tinha aderido a outro plano e agora aquilo na daba nada e ainda por cima em Agosto, que tá tudo de férias. Uma cliente impacientou-se. E agora? Não tinha dinheiro e não queria ficar a dever. A dona tudo explicou de novo, largou um ou outro comentário pouco elogioso à companhia telefónica e por fim atirou à outra Ó melher, na te rales. A outra disse Ah pois, e se eu morrer? A dona Na te rales, já te disse, melher. Morreu aí uma há uns dias e rasguê logo o papel. Qué lá saber! Nesta altura terei dito algo, lamentando a morte alheia, mas qual quê… Atão, ela na podia ir à praia, foi à praia ca filha... Ah, pronto. E nisto, voltou a cliente à carga. Na te rales, bá, pagas depois. A filha atenta à contenda do paga, não paga, acrescentou Na se rale, se bocê morrer, a gente bai lá ó cemitério e pede o denhêro às pessoas no funaral. Deitei a mão ao bolso. Uma nota de dez euros. O suficiente para pagar os pêssegos e as ameixas. Se algum imprevisto acontecer, cruzes canhoto, pelo menos não terão o panzerzito a cobrar-vos as ameixas e os pêssegos, carecas e felpudos, à porta da derradeira morada. Há dinheiro que vem por bem na algibeira desprevenida.
E dado este estado de coisas, a irmã que agora faz uns biscates aí nas casas de umas senhoras por causa dos nerbos na mercearia, a mãe a fazer um pãozinho delicioso e a outra filha num cafei, a dona outro remédio não teve se não pôr lá a filha mais nova, uma garota adolescente, robusta, com as protuberâncias abdominais a saírem-se-lhe pelas calças rebaixadas e para quem, ao contrário do mulherio administrador do estabelecimento, o cliente não é rei. À hora da novela o cliente é até um rapaz intrometido e inconveniente que não a deixa ver calmamente a saga infindoura no canto oposto à caixa resistadora no cocuruto duma estante.
A rapariga tem uma coisa boa no dizer da mãe, tem força, Mais força ca outra confessou-me um dia, e por força, entenda-se a impetuosidade de um panzer que irrompe entre os vegetais e a arca frigorífica, as sacas de cebola, as courgettes e a arca dos iogurtes sempre que necessário. Talvez por isto, uma ocasião, a estante onde se apoiou para chegar ao topo dum armário, certamente para satisfazer os desejos caprichosos de algum cliente, tenha cedido e os fregueses, eu incluída, brindados com uma chuva torrencial de chocolates Regina, Sugus de menta e melão, Conguitos e chupas. A rapariga na se ralou. Enquanto a freguesia ajuntava os chocolates do chão, nem um agradecimento, e a estante olhando-nos ameaçadora, ainda periclitante com uma das esquinas levemente enviesada a indiciar o resvale iminente. Nada a recear. Com esta cabeleira sempre amortecia as sombrinhas de chocolate que tinham resistido ao tombo.
O pesadelo voltou quando lhe pedi duas latas de feijão preto, que por azar me olhavam altaneiras doutra estante. Aí não haveria cabeleira que me salvasse mas, por esta altura, a rapariga já tinha adquirido maior agilidade de movimentos na travessia da mercearia e adquirira uma outra característica curiosa: a de zeladora escrupulosa da carteira dos clientes. A rapariga revirou as latas, leu as receitas nos rótulos, disse-me que gostava de comidas diferentes e por fim, atirou Atão mas porque é que bocê leba duas? Uma das grandes é mais barata que duas, ó, disse apontando para a etiqueta do preço, 50 cêntimos. Preferia duas pequenas, é certo, mas perante a evidência, e sob pena de passar por uma perdulária gastadora e arrasar a minha reputação na mercearia, lá trouxe a lata grande de feijão preto. Nada de mais: duas refeições a eito de feijão tropeiro.
Naquele dia, o queixume era outro: a máquina do Multibanco não funcionava. E que tinha aderido a outro plano e agora aquilo na daba nada e ainda por cima em Agosto, que tá tudo de férias. Uma cliente impacientou-se. E agora? Não tinha dinheiro e não queria ficar a dever. A dona tudo explicou de novo, largou um ou outro comentário pouco elogioso à companhia telefónica e por fim atirou à outra Ó melher, na te rales. A outra disse Ah pois, e se eu morrer? A dona Na te rales, já te disse, melher. Morreu aí uma há uns dias e rasguê logo o papel. Qué lá saber! Nesta altura terei dito algo, lamentando a morte alheia, mas qual quê… Atão, ela na podia ir à praia, foi à praia ca filha... Ah, pronto. E nisto, voltou a cliente à carga. Na te rales, bá, pagas depois. A filha atenta à contenda do paga, não paga, acrescentou Na se rale, se bocê morrer, a gente bai lá ó cemitério e pede o denhêro às pessoas no funaral. Deitei a mão ao bolso. Uma nota de dez euros. O suficiente para pagar os pêssegos e as ameixas. Se algum imprevisto acontecer, cruzes canhoto, pelo menos não terão o panzerzito a cobrar-vos as ameixas e os pêssegos, carecas e felpudos, à porta da derradeira morada. Há dinheiro que vem por bem na algibeira desprevenida.
foto: minha
Com aquele abraço para o Aventino.
Simplesmente genial, novamente me ofereceu um sorriso
ResponderEliminarObrigada, James. Fico feliz pelo sorriso :-)
ResponderEliminarObrigado :-)
ResponderEliminarE a nova personagem parece promissora!
Ai melher como tu escreves bem!
ResponderEliminar:)
Ai Papalagui!! o que já me ri!! está delicioso, este post! aliás, todos os posts da série Mercearia são deliciosos! ... o sotaque, parece que estou a ouvi-las, adorei aquele Uma das grandes é mais barata que duas, ó! ... e o cafei, o que me ri com o cafei!
ResponderEliminar... delicioso, genial, tão bem escrito!!
Beijinhos, bom fim-de-semana! ... e vai à mercearia mais vezes, porque agora estamos pendentes das cusquices tal qual como a cachopa está pendente da novela! ;)
A mercearia é um manancial de estórias... ontem mesmo fui lá mais uma vez à hora dos Morangos com Açúcar e acho que podia ter trazido a mercearia inteira para casa que a rapariga nem queria saber.
ResponderEliminarObrigada a todos :)
Isto não é um texto, é um filme. Com cores, som, cheiros e tudo. Delicioso, Leonor.
ResponderEliminar:-)
ResponderEliminarLOL
ResponderEliminarEu também já não perco um capítulo desta novela!!!
Não percebo como na semana passada me escapou este capítulo!!!
ResponderEliminar:)
Eu, que sou muito económica, como diz o Chefe, congelo numa caixinha de plástico as metades das latas grandes. Assim evito comer a mesma coisa dois dias depois! :)
Mas o feijão tropeiro não dá para congelar, podia era ter pedido só uma lata pequena :-)
ResponderEliminarTenho de voltar à mercearia, ver se saco mais uma estória mas se me descobrem o blogue levo tanta cachaporra...
LOL! LOL! :D
ResponderEliminarDeixa lá, que enquanto houver Morangos com Açúcar e coisas do género, ninguém te descobre o blog!
Já no que respeita à tua outra afirmação, deixa-me discordar dela. TUDO é congelável. Torta de laranja, inclusivamente. :)
Beijola grande.