Estávamos à mesa, pela hora de jantar, o anfitrião visivelmente cansado, também de nos ter à conversa, quando ela perguntou Então, diga-me, o s do caso possessivo já não se usa? O homem respondeu que sim, que se usava, ela insistiu, Então, é um erro, certo? Sim. A outra colega acrescentou que já em Portugal tinha dado conta do mesmo. A primeira não deu sinal de brandura nem de abrandamento. Preciso de saber, afirmou peremptória, se não estou a ensinar mal os meus alunos. Parecia alarmada, o anfitrião exausto e a conversa que, de repente, se transformava num debate aceso em torno da língua de Shakespeare, impacientava o nosso anfitrião, mais dado a artes culinárias e à informática. Valeu-lhe a fleuma britânica, certamente, e a deferência que se deve observar quando se tem convidados em casa. O homem levantou-se da mesa, entretanto, e, quando regressou, trazia na mão um livro Eats, shoots and leaves.E neste livro encontrei o que durante anos vivi: as questões da língua, a irritação com os erros, a vontade impetuosa de os corrigir, de entrar nos estabelecimentos e avisar que ali está um erro, coisa feia, um erro, e é de tudo isto que queria dar-te conta, meu pai. Chegar a casa e dizer-te Papá, trouxe um livro muito engraçado de Inglaterra e de te ver sorrindo Sobre quê, filha? Sobre pontuação e depois contar-te a anedota que vem na contra-capa e contar-te a versão que o Vince contou e ver-te o sorriso de sempre, e ouvir-te pausado a pedires-me Ora, mostra cá… e eu a dar-te o livro, os nossos dedos tocando-se levemente, tu a manuseá-lo como ninguém nunca o faz, o cuidado das páginas, a ternura do toque, e eu a pedir-to de novo, Dá cá, está aqui uma passagem muito engraçada , procurar a página e ler-ta. Isto lembra-te alguém? E tu de novo Não estou a ver, filhota… de sorriso malandro. E a conversa fluiria, ler-te-ia outra passagem, aquela em que a pontuação é considerada uma cortesia do escritor para com o leitor, por exemplo, responder-me-ias Vês, como eu tenho razão? estou certa de que me perguntarias Mas como é que descobriste esse livro?, contar-me-ias que ouviste alguém dar um erro hediondo na televisão, certamente dir-me-ias irónico Como aquela que escreveu a priori com um acento na tese de Mestrado, eu, pois claro, Papá e assim continuaríamos até eu dizer Bem, agora, vou-me, deixo-te aqui o livro. E tu Está bem, deixa aí para eu ver, agora não, logo, como sempre fazias, sempre logo. E essa é uma falta grande que me fazes, essa de não te poder contar como foi, esta de não te passar um livro, de ter comigo sempre o lápis que te ofereci e com o qual assinalavas os erros no rótulo da garrafa de azeite, de não poder discutir hifenização, apóstrofes, vírgulas e itálicos e esta é uma falta que tenho em mim sempre tão definitiva como um ponto final.
Ao meu pai, no dia em que dois anos passam.
Um beijo grande para ti.
ResponderEliminarFoste premiada... visita o meu blog e verás! :)
ResponderEliminarGostei muito.
ResponderEliminarNão vivo com saudade, de pouco sinto saudade. Somente conheci minhas duas avós, conheci, não convivi, não foram criados laços, poucos afectos. De lugares idem, a Lisboa teve sempre pouco para mim, o Porto ainda menos.
ResponderEliminarHá dias que sinto vontade de revisitar espaços, mas não por eles mesmos, apenas pelas pessoas... nem sempre objectivamente.
Por depressão já senti vontade de visitar Portugal, somente pelas pessoas, para entrar numa taberna, viajar num autocarro, comprar numa padaria, misturar-me entre multidões nas festas do Sto. António.
Essa sua saudade não a sei, rejeito querer sabê-la.
Se há dias que aqui venho à "curva da estrada" e é tão bastante ler umas linhas que me fazem sorrir - ah como isso é tão bom - há outros que me deixam deprimido, por razões que não são as minhas, mas que imagino virão a ser.
Beijos a todos e obrigada pelas palavras.
ResponderEliminarCaro James,
Faz muito bem em rejeitar essa saudade que desconhece. Seria bom que tivessemos sempre motivos para sorrir e dizer uns disparates aqui e acolá, como vou fazendo por aqui. A seguir virão textos mais solarengos, espero.
Não prometo, mas tento ;-)
As palavras, por mais absolutas, grandiosas ou sublimes que sejam, são de uma vacuidade e inutilidade totais quando se quer escrever um comentário a propósito de um momento tão profundo e tão dramático quanto este. Por isso, deixo.te apenas o meu abraço.
ResponderEliminarCarlos
E o teu abraço é mais forte que as palavras. Obrigada, Carlos.
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