Páginas

domingo, 9 de setembro de 2007

O coxo e o cego

Na aldeia há um cego. Na aldeia há um coxo. Na aldeia há um cego e um coxo. O cego vê melhor que muitos que não o são. Diz-se que o cego é um rapaz bem informado. O cego anda quilómetros todos os dias. Vestido com um colete fluorescente, faça sol ou faça chuva, o cego percorre a aldeia, rua acima, rua abaixo. Em tempo de chuva, o cego traz o chapéu-de-chuva pendurado na gola do casaco, como um pêndulo, para um lado, para o outro, rua acima, rua abaixo. O cego, de vez em quando, dá umas bengaladas nos carros que estão estacionados à frente da tabacaria, à esquerda, à direita.
O coxo não é manco, é coxo. Coxeia para um lado e para o outro com uma flexão ao centro. O coxo não coxeia para cima e para baixo como outros coxos. O coxo não coxeia com igual intensidade, faça chuva ou faça sol, para esquerda ou para direita com uma ligeira flexão ao centro. O coxo é mais novo que o cego, mas algo me diz que, nos dias em o coxo coxeia mais, vê menos que o cego que aquilo é um coxear etilicamente impulsionado. Nesses dias o coxo coxeia muito e coxeia para um lado e para o outro, para cima e para baixo, às vezes cuida-se que se vai estatelar no chão, mas equilibra-se, ergue-se mais um pouco e depois mais uma desequilibradela, à esquerda ou à direita. Mas isto é mais nos dias em que o coxo vê menos do que o cego.
O cego e o coxo têm vidas tranquilas, mais o cego que o coxo, é certo, mas que julguei periclitantes quando apareceram um dum lado e outro do outro lado da rua onde mal cabe um carro. O coxo para a esquerda e para a direita, o cego às bengaladas para a esquerda e para a direita, e o coxo para cá e para lá num equilíbrio instável na berma da rua sem passeios, e eu que deslizava cuidadosamente entre o coxo para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, e o cego, bengalada cá, bengalada lá, pensei por momentos que lá se iam, ou o coxo ou o cego, ou o coxo ou o cego, ou o coxo ou o cego, o cego ou o coxo? O coxo ou o cego? O coxo? O cego? O coxo! Ai, que é o cego e isto até chegar ao cruzamento e ver o coxo para a esquerda e para direita e o cego, bengalada aqui, bengalada ali, pelo espelho retrovisor e a rua a estreitar-se cada vez mais e a desaparecer à medida que me afastava. E ainda há quem diga que a vida na aldeia é aborrecida.

9 comentários:

  1. Eu adoro o teu blogue, farto-me de tentar deixar comentários mas isto é super burocrático! Escreves muito bem, espero que as férias tenham sido óptimas. Beijinhos meus e do Afonsinho. Imagina que qualquer dia faz 3 ANOS!
    Beijocas

    ResponderEliminar
  2. Malvado blogue... burocrático? ;-)
    Obrigada e beijinhos para ti e para o Afonso.

    ResponderEliminar
  3. Duas novas aqiusições para a galeria de tipos da tua aldeia.
    Bem-vinda!

    ResponderEliminar
  4. Ainda bem, James :-)

    Aventino, este episódio já é antigo mas disse mal da minha vida quando os vi na rua, cada um do seu lado.
    Beijinho

    ResponderEliminar
  5. Bom ... contigo a comentá-la desta forma ... a vida na aldeia não é aborrecida, não!

    Um texto magistral, perfeito! Parabéns!

    ResponderEliminar
  6. Atribulações de uma urbana na aldeia...
    Já me ri com vontade, Leonor!

    Beijos
    Ana

    ResponderEliminar
  7. Obrigada pelo beijinho * e pela lembrança! No meio de tanto stress, os amigos foram quem mais nos fez comemorar :)

    ResponderEliminar
  8. Sinapse, até já uma sex-shop houve na aldeia! ;-)

    Ana, não sou propriamente urbana mas daqui também não, às vezes digo que sou mestiça, feita de pedacinhos espalhados entre a Beira Alta e o Brasil.

    De nada, Witchie. Espero que tenham tido um dia bonito :-)

    ResponderEliminar

Comments are welcome :-)