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domingo, 13 de janeiro de 2008

Língua de papel

Meses a fio o recorte de jornal tombou da estante da sala como uma língua, preso numa moldura de sorrisos abertos algures do outro lado do Atlântico. Pendia da secção de literatura portuguesa e reclinava-se sobre a de literatura brasileira. Uma língua, a mesma, ou uma ponte que une as margens de uma só língua, em cada extremidade a sonoridade tão distante, separada pela língua, -ou seria o oceano?- e unida pela mesma. Um recorte de jornal apenas. Terá sido numa altura de pintura da sala que tudo aconteceu, é sabido que as infiltrações são geradoras dos maiores males, numa outra ocasião não se propiciaria o ímpeto arrumador, até porque, por aqui não impera a obsessão por arrumação, impera a obsessão por ter à mão livros, papéis e recortes de acontecimentos passados. Algum tempo depois surgiu o arrependimento amargo deste impulso furioso. O conteúdo do pequeno rectângulo voltou a estar na ordem do dia e assim fiquei: desfalcada do pedacito de informação que dava conta dos erros que opuseram Miguel Sousa Tavares a Vasco Pulido Valente na querela que tanta tinta fez correr. E irritada Mas porquê? Porquê? Às vezes num crescendo Mas há tanta porcaria que fica por aí… logo aquele. Que raiva! Quando a querela reloaded se instalou prometi a mim mesma que não ficaria, desta feita, desfalcada do pedaço de papel, umas quatro páginas do jornal e guardei-o em cima do sofá, à espera de melhor destino, impossível que era deixá-lo que nem uma língua entre as estantes. E tudo estava a correr bem, a leitura do livro prometida para quando a pilha de livros a ler emagrecesse, o pedaço reservado para posteriormente averiguar a veracidade das acusações, de leitura feita e livro nas mãos, tudo bem, dizia eu, tudo muito bem até o frio ter apertado e as páginas centrais do jornal, exactamente, precisamente as tais, aquelas e não outras, terem sido arrancadas sem mais e usadas para combater o frio, -sabe deus, alá e jah como o odeio o mafarrico- e acender a lareira. Tanta verborreia e questiúncula talvez não merecessem mesmo outro fim.

3 comentários:

  1. Meu sogro tinha o hábito de guardar recortes. Só que ele os colocava entre as páginas dos livros que estava lendo na ocasião. Nas muitas férias que passei em sua casa, ao ler livros da sua biblioteca, encontrava esses esquecidos recortes, às vezes datados de muitos anos. Uma vez lhe sugeri que contratasse uma bibliotecária para organizar e catalogar esses recortes mas ele não aceitou. Bem, pelo menos no calor de Recife os recortes estavam a salvo da lareira...

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  2. O meu pai também guardava muitos recortes e lembro-me de ver lá em casa um livrinho encadernado com recortes vários que alguém lhe deu. Esses também nunca foram para a lareira ;-)

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  3. Nesse caso eram duas línguas de trapos, duas línguas soltas a soltar veneno, Leonor. Nada de muito valioso, portanto. Se a casa ficou mais quentinha com elas a arder em línguas de fogo na lareira, tanto melhor. Quando leres o livro, que parece que não é mau, já tudo isso estará esquecido. E ainda bem, que na melhor língua cai a nódoa.
    Beijo
    ana

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