Dentro de mim vive um japonês. Tem a máquina fotográfica quase sempre à mão e, se se contém em situações menos próprias, deve-se apenas ao efeito disciplinador que exerço sobre o mafarrico. Nem sempre me obedece, causou-me pelo menos duas situações constrangedoras que me escuso aqui a contar. O japonês que as conte, se quiser, já me foi suficientemente embaraçosa a situação, as situações, melhor dizendo, que voluntarioso como é não se contentou com o feito e na primeira janela de oportunidade lá estava ele com o dedo indicador direito sobre o meu para um clique inevitável sobre, enfim, um daqueles locais sagrados, nomes e locais não são para aqui chamados. Advirto-o inúmeras vezes Pára, aqui não, nem penses, olha os letreiros, é proibido fotografar. Mantenho pulso firme e, quando o disciplino, a vida vai correndo relativamente tranquila. Admito que é insistente, contudo, não se deixa convencer à primeira, como se viu da tal vez perante o local sacrossanto e, às vezes, muitas, parece que me prime o indicador sobre o botão da máquina, sem que pouco lhe consiga fazer, sempre à espera do clique mágico bulimicamente fotografando para a posteridade as cidades e locais por onde deambulo.
O japonês e eu chegámos a um acordo para uma vivência mais pacífica, não obstante. Avisei-o peremptória que não fotografo, de todo, pessoas, serão animais em jardins zoológicos, por acaso? e comida nos restaurantes, era o que faltava, muito embora me perca em bancas de flores e frutas em mercados e lamente até hoje não ter tido a máquina à mão quando os girassóis em Amesterdão me sorriam das bancas, artisticamente dispostos em molhos, uma exaltação dos sentidos que colore a cidade entre canais, bicicletas e as cornijas decoradas das casas comprimidas umas contra as outras. Nessa ocasião, o japonês andava meio ausente, acompanhava-me com menos frequência e passava por momentos de aparente introspecção, talvez a justificação plausível para a ausência quase absoluta de fotografias dos dias de Amesterdão.
Com o advento das máquinas digitais, o japonês tornou-se abusivo e intromissor. É que não me larga. Num mero fim-de-semana fora de portas chovem às catadupas as quadrículas coloridas, pedacinhos brilhantes dos itinerários percorridos. Se saio para um passeio à beira-mar, segreda-me Olha ali! Dava uma bela fotografia. Mal saio a porta, um cutucar no ombro Que linda que está a passiflora. A pobre da gardénia quando se desmultiplicou em flores alvas e perfumadas não teve mais sossego, coitadita, todos os dias, todinhos, primeiro os botões, depois a flor que se desvela e mais uma, mais outra, três, quatro, cinco, de manhã, pelo zénite, ao entardecer. Um desassossego é o que é.
O japonês tem lugares de culto. À primeira visita chovem apenas fotografias, à segunda chovem ainda mais, uma selecção mais cuidada do já fotografado, a atenção ao pormenor, a luz, a perspectiva. Foi assim no Great Hall do Museu Britânico: da esquerda, da direita, de cima, a atenção na refracção de luz, os reflexos no chão, as pessoas que passavam. Adora o Museu, o salafrário. E de igual forma em Berlim, parece que tem uma predilecção por arquitectura contemporânea, de mau gosto não o posso acusar, na cúpula do Reichstag, uma, duas três, quatro, cinco e depois encaracolar-se pela subida e ver o céu ora azul, ora encoberto com nuvens brancas e a cidade em seu redor, esteve bem Norman Foster, disse-me, já me tinha dito o mesmo do Calatrava em Malmö, a propósito do Turning Torso, as Portas de Brandenburgo do lado direito, que coisa, agora encavalitadas, sussurrou-me, entrincheiradas entre embaixadas e bancos, e mais umas quantas fotografias ao monumento mais simbólico da cidade dividida.
E agora vou-me. O sol pôr-se-á dentro de minutos, sobre o mar desenhou-se uma pincelada prateada e o japonês chama-me. Não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele.
O japonês e eu chegámos a um acordo para uma vivência mais pacífica, não obstante. Avisei-o peremptória que não fotografo, de todo, pessoas, serão animais em jardins zoológicos, por acaso? e comida nos restaurantes, era o que faltava, muito embora me perca em bancas de flores e frutas em mercados e lamente até hoje não ter tido a máquina à mão quando os girassóis em Amesterdão me sorriam das bancas, artisticamente dispostos em molhos, uma exaltação dos sentidos que colore a cidade entre canais, bicicletas e as cornijas decoradas das casas comprimidas umas contra as outras. Nessa ocasião, o japonês andava meio ausente, acompanhava-me com menos frequência e passava por momentos de aparente introspecção, talvez a justificação plausível para a ausência quase absoluta de fotografias dos dias de Amesterdão.
Com o advento das máquinas digitais, o japonês tornou-se abusivo e intromissor. É que não me larga. Num mero fim-de-semana fora de portas chovem às catadupas as quadrículas coloridas, pedacinhos brilhantes dos itinerários percorridos. Se saio para um passeio à beira-mar, segreda-me Olha ali! Dava uma bela fotografia. Mal saio a porta, um cutucar no ombro Que linda que está a passiflora. A pobre da gardénia quando se desmultiplicou em flores alvas e perfumadas não teve mais sossego, coitadita, todos os dias, todinhos, primeiro os botões, depois a flor que se desvela e mais uma, mais outra, três, quatro, cinco, de manhã, pelo zénite, ao entardecer. Um desassossego é o que é.
O japonês tem lugares de culto. À primeira visita chovem apenas fotografias, à segunda chovem ainda mais, uma selecção mais cuidada do já fotografado, a atenção ao pormenor, a luz, a perspectiva. Foi assim no Great Hall do Museu Britânico: da esquerda, da direita, de cima, a atenção na refracção de luz, os reflexos no chão, as pessoas que passavam. Adora o Museu, o salafrário. E de igual forma em Berlim, parece que tem uma predilecção por arquitectura contemporânea, de mau gosto não o posso acusar, na cúpula do Reichstag, uma, duas três, quatro, cinco e depois encaracolar-se pela subida e ver o céu ora azul, ora encoberto com nuvens brancas e a cidade em seu redor, esteve bem Norman Foster, disse-me, já me tinha dito o mesmo do Calatrava em Malmö, a propósito do Turning Torso, as Portas de Brandenburgo do lado direito, que coisa, agora encavalitadas, sussurrou-me, entrincheiradas entre embaixadas e bancos, e mais umas quantas fotografias ao monumento mais simbólico da cidade dividida.
E agora vou-me. O sol pôr-se-á dentro de minutos, sobre o mar desenhou-se uma pincelada prateada e o japonês chama-me. Não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele.
Liberta o japonês! É um pedido de um visitante assíduo. Mais imagens!
ResponderEliminarFantástico texto, mas isso já é habitual.
ResponderEliminarO teu japonês tem jeitinho, deixa-o à vontade! Já o meu é um bocadinho mais comedido, e "pela-se" por fotos de comida :oP
Bjos
Não posso libertar o japonês, ele já toma conta da minha vida o suficiente ;-)
ResponderEliminarMagnífico texto!!
ResponderEliminarp.s. - ... eu conheço um primo desse japonês! ;)
Obrigada, sinapse, eles andem aí ;-)
ResponderEliminarPior estou eu, Leonor: dentro de mim vive um desgraçado de um chinês que gostava de ser japonês mas não acerta uma... de vingança, não lhe compro uma máquina decente e ele tem de contentar-se com o telemóvel para dar asas à sua veia de fotógrafo (a bem dizer, veia é exagero... não passa de um capilar!)
ResponderEliminarGrande texto, como sempre. E deixa lá o japonês divertir-se, que ele merece e nós gostamos.
Beijinho