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terça-feira, 26 de agosto de 2008

Pelo cachaço como os gatos

As manhãs de estio convidam à indolência de distribuir o tempo ao ritmo da vontade de cada um. Levantei-me cedo para os meus próprios padrões em tempo de nada fazer, pus pés ao caminho nas havaianas de sempre, e, rua acima, fui até ao centro da aldeia tomar um café. A manhã pode ser o mais energizante dos tónicos. De um lado da estrada a declaração de amor que se mantém de há um tempo a esta parte Amo-te gorduchinha, seria para mim?, do outro as flores que crescem sem adubo nem pesticidas, melhores do que as holandesas, dizem-me, o pé mais alto e firme, uma casa que foi restaurada, o sol que entretanto se faz sentir nas costas e a tranquilidade do périplo, casas e flores de um lado e de outro. Chego finalmente ao centro, entro no café e digo ao que venho, atento na empregada que me olha de frente e eis que me salta um texto de trás do balcão, pareceu-me escondido no bolso do avental da empregada, exactamente no golo derradeiro do café. Procuro o dinheiro, largo-o no balcão, deito um olhar último à empregada, despeço-me e sinto as palavras a encarreirar-se. Uma frase inteirinha Ah malandro, logo agora. Saio do café, olho a igreja em frente e, antes que o texto me fuja, senti algumas palavras a espernear assim que entrei pela rua apertada. Os acentos estrebuchavam que nem coelhos amarrados pelos pés, as vírgulas impacientavam-se em corropios, os pontos de exclamação davam encontrões uns aos outros. Larguei-os logo, são os mais dispensáveis e estavam a provocar grande convulsão no texto. Agarrei-o com vigor pelo cachaço como as gatas fazem às crias, firme e seguro, sem amarrotar as expressões e amachucar os eufemismos. Não me escapas. Rua abaixo, casas e flores de um lado e de outro, o sol a bater-me na cara. Agarrei-o como pude e o texto veio conformado mas impaciente, as vírgulas irrequietas, as metáforas ansiosas e os adjectivos aflitos.
Abro a porta apressada, estava mesmo mesmo a fugir-me, os textos fogem-me algumas vezes. Arrebanho a primeira folha em branco, um lápis ali por perto e solto finalmente as palavras, vírgulas, adjectivos, metáforas e eufemismos. Apanhei-te, malandro.

7 comentários:

  1. brilhante como sempre :)
    Cheia de imagens sentidas e visiveis a sua escrita Leonor .. :)

    Beijinho *

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  2. A maior parte das vezes fogem-me, os perdidos... e não volto a encontrá-los. Não é o teu caso. Ainda bem.

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  3. Que bonito, Leonor. Os textos têm fugido de mim.

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  4. ai Leonor!!! que este texto é delicioso de se ler!!

    os acentos estrebuchavam que nem coelhos amarrados pelos pés

    agarrei-o com vigor pelo cachaço como as gatas fazem às crias, firme e seguro, sem amarrotar as expressões e amachucar os eufemismos.

    OK, desisto ... não vou copiar aqui frase por frase! é que é o texto todo! lindo!!!!

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  5. looool!! reli o meu comentário e parece-me que fiquei com todos os pontos de exclamação que foste largando pelo caminho!

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  6. Já te disse que os teus textos fugidios são magníficos? E têm graça, os malandros!

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  7. Obrigada a todas :-)

    Provavelmente o texto que agarrei não será tão do vosso agrado como este.

    Beijinhos

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