Um qualquer dia pelo fim da tarde rumo ao supermercado para me atafulhar nas inevitáveis compras, mantimentos para humanos, gente canina e felina. Uma ou outra pessoa conhecida. Depois das saladas paro no talho, uma cara conhecida. A mãe como está? Bem, obrigada. Uma dúzia de palavras trocadas. Digo ao que venho ao talhante. Incapaz de calcular quantidades com precisão, indico claramente o número de pessoas a quem se destina a carne: duas. Uma pergunta salta do lado: Não têm filhos? Sorrio e respondo negativamente. E que tens tu a ver com isso? O questionário prolonga-se Mas já estão casados há um tempo… Respondo com quase absoluta exactidão o número de anos. Recolho a carne aos desejos de boa tarde e de bom fim-de-semana e faço-me à vida, praguejando com os botões contra esta espécie muito particular de bisbilhotice alheia que afoga uma mulher sem fruto e que aparentemente deve explicações à população em geral Não têm? E porquê? Porque não? Porque sim? Porque assim assim? Bem sei que as questões reprodutivas são assunto público de há um tempo a esta parte, fazem inclusive manchete nas revistas cor-de-rosa, coitadito do filho do Cavaco que não conseguiu que a mulher desovasse durante uma década, as fornicadelas, tentativas e intentonas conversa de café ou de jantar, com pormenores sórdidos e de gritante mau gosto, detalhes de ciclos e luas, as paridelas, águas e contracções, o colo do útero dilatado. Os cocós das crianças, consistência e cor e sei lá mais o quê que não me interessa absolutamente são tema recorrente e que se adivinha depois das tentativas e intentonas. Conversas altamente edificantes. A exibição constrangedora de algo que deve ser íntimo e que apenas a duas pessoas diz respeito, a três no caso dos cocós. E depois voltar à conversa com os visados e vê-los nuinhos, esbaforidos e esforçados, aos ais e uis com data e hora, as mulheres com uma perna aqui e outra em Belém, com enfermeiros e médicos à dúzia a coscuvilhar-lhe as entranhas e elas a esgadanhar-se nas paridelas sempre tão coloridas e suadas. Lindo de se ver, maravilhoso para se descrever. Aquelas pessoas jamais são as mesmas, essas e outras. Aconteceu-me um dia no local de trabalho, alguém lamuriar-se, dizer com frequência que andava a passar muitas necessidades, o marido tinha os legumes chochos e encarquilhados e depois euzinha, valha-me deus, conhecer o pobre homem numa outra situação e pensar Mal empregado. Um homem tão jeitoso e simpático com o hidráulico avariado, pena que se lhe foi a mola. Ainda estive para lhe dar uma palmadinha solidária nas costas mas mal o conhecia, embora o conhecesse mais do que queria e muito mais do que devia. Se a Bíblia fosse reescrita seria certamente incluída uma adenda Crescei, multiplicai-vos mas contai uns aos outros.
Eu bem me repito, mas se só fazes textos fantásticos, que mais posso dizer? :)
ResponderEliminarE este está na mouche, e entendo-te na perfeição.
Jinhos.
Obrigada :-)
ResponderEliminarAinda bem que me entendes, é que não é aquela conversa que se tem a duas, é o assunto nacional em que se torna...
Beijoquinhas
Eu também passo a vida a ouvir conversas que não me interessam, que muitas vezes pagaria para não ouvir. Nos transportes públicos as pessoas falam ao telemóvel como se estivessem sós numa cabina insonorizada. Da vulgar fofoca à queca do dia anterior, do insulto gritado ao dilema de uma mulher casada tentada a ceder aos avanços do colega que a assedia, acho sempre que já ouvi de tudo, mas cada viagem reserva uma surpresa. Vai-me valendo o MP3...
ResponderEliminarComo, para todos os efeitos, a minha vida tem sido absolutamente escandalosa, pelo menos ninguém me pergunta por isso! Mas bem te entendo, Leonor.
ResponderEliminarLOL! Adorei! Só com um texto destes uma pessoa se alivia! É que, desculpa lá, também me sinto vingada pela tua escrita. Pela parte que me toca, refiro-me obviamente ao inefável e vai ter outro?. (como é que se faz um smiley a meter os dedos goela dentro?)
ResponderEliminarAinda bem que me compreendem. Há alturas em que acho que é só comigo. Beijocas
ResponderEliminarClaro que não é só contigo, Leonor. A coscuvilhice nacional mete o nariz nas intimidades mais sórdidas e descabeladas de cada um... e a culpa é quase sempre dos próprios, que falam de mais e depois queixam-se!
ResponderEliminarAdorei o texto, e já me fartei de rir.
Os que falam muito também querem saber muito.
ResponderEliminarObrigada :-)
No ponto...
ResponderEliminarExcelente texto Leonor!
Obrigada, Patrícia, estou muito mais descansada, afinal não é mau feitio meu, pelo menos não nesta situação :-)
ResponderEliminarCada um leva com as suas perguntas! Da próxima vez que me perguntarem "então e namorado?" ... afivelarei uma expressão condoída (de auto-comiseração), olhinhos humedecidos, e responderei num fundo de voz: "Morreu. Acidente." ... retirar-me-ei visivelmente alterada e deixarei a pessoa perguntadeira com as suas perguntas penduradas ...
ResponderEliminarlol
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