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terça-feira, 2 de setembro de 2008

Mightier than the sword

Os dias de chuva convidam ao recolhimento entre portas. Entro na livraria pela enésima vez. Passo revista pelos mesmos livros, fazendo mentalmente a verificação dos que ainda compraria antes do regresso, somo e subtraio quilos à bagagem asceticamente cauculada, x pares de calças para x camisolas, nem mais nem menos, pares de sapatos controlados apenas pelo grau de conforto, poucos portanto e constato o que já sei, os livros terão de ser levados comigo, não há mala que comporte tantas letras e não gosto dos livros amachucados. Tu sabes. Tropeço no After Dark do Murakami e oscilo Levo? Não levo? Reviro o livro, confirmo capa e contracapa, leio as primeiras linhas, três por dois, tentação demoníaca, e a tradução? Directamente do japonês? Melhor do que a portuguesa? Não levo. Uma volta mais. Agora artigos de papelaria. Cadernos, caderninhos, dossiers, sacos, estojos, lápis e borrachas, agendas para 2009 e detenho-me perante a caneta. Preço ridículo. O valor das coisas nem sempre se estabelece em relação directa com o preço. Ensinaste-me tu ao longo das quatro décadas em que me apontaste caminhos. A caneta diz The pen is mightier than sword, a citação de Edward Bulwer-Lytton em tons levemente mais claros, o contraste harmonioso com a cor da caneta, a azul escura é mais bonita, constato, e penso, agarrando imediatamente na primeira disponível aos dedos curiosos Que gira. Vou levar para o Papá. E a mente que faz marcha-atrás mais veloz do que a mão que coloca a caneta no lugar inicial, o presente rebobinado e o passado presente entre os dedos que lêem The pen is mightier than the sword. E o presente que continua numa sucessão de atropelos e de regressos inevitáveis ao passado que fez do presente o que ele é. Vou levar para o Papá. A frase que se me atravessa a mente, a euforia infantil do presente, ensinaste-me também, oferecer sempre sem nada esperar em troca, um dos prazeres sempre cultivado e evidente no sorriso genuíno e generoso que oferecias com o presente, mais valioso, as mãos que alcançam canetas, lápis e borrachas rodando-os docemente na ponta dos dedos para retorná-los desapontada ao lugar, os olhos humedecidos que finjo acometidos de uma alergia repentina, que outra razão?, os gestos desengonçados, o nó na garganta que se esperaria resolvido, diz que o tempo ajuda, mentiras cobrindo as ausências, panaceias para males sem cura. Vou levar para o Papá, ocorre-me outra vez, pego na caneta, escolho uma entre muitas, eliminando as que contêm imperfeições, a caneta diz-me The pen is mightier than the sword, o passado cutuca-me no ombro, três anos decorridos, de caneta na mão aproximo-me da caixa Vou levar para o Papá e aqui a tenho, Papá, sei que vais gostar.

À memória do meu pai

9 comentários:

  1. sem palavras .. de novo.

    Beijinho

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  2. Ola Leonar,
    É uma grata satisfação estar visitando o seu encantador e sugestivo blog.
    Gostei muito.
    Do Brasil:
    Geraldo

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  3. Tenho certeza, Leonor. Ele vai adorar.
    Um beijo grande,
    Martha

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  4. A dor que permanece não é mais do que a forma de subsistência da saudade, que outra coisa não é além da eternidade conquistada pelos que fazem parte de nós. Não queremos que o tempo cure isso, pois é a forma de sabermos ser humanos, no que de bom há em ser humano. Assim são inspiradores estes textos, assim compreendemos que o coração é mais poderoso do que a caneta mais poderosa do que a espada. Trespassam quem os lê com uma ternura que não existe no aço.

    Obrigado, Leonor.

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  5. Vocês são parte importante da memória que perpetuo e ajudaram-me diariamente com as vossas visitas e palavras a que o dia-a-dia fosse menos duro. Essa é uma dívida de gratidão que terei sempre convosco. A minha vida teria sido infinitamente menos rica e mais dolorosa, se não me tivessem acompanhado ao longo destes dias com tanto carinho e apoio, que me comovem. Eu é que agradeço estarem cá para mim e estou certa de que o meu pai ficaria indescritivelmente grato por me ajudaram e acarinharem.
    Beijos grandes

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