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segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Um muro de letras

Na altura em que o tomate Raf estava a dois euro e quarenta e nove cêntimos, eles entraram a meu lado no supermercado. Vinham algures pela direita e demos passagem uns aos outros, eu dei-lha a eles, eles deram-ma a mim, e entretanto, sem saber já quem entrou primeiro, absolutamente irrelevante no contexto, encontrei-me dentro do estabelecimento propriamente dito. Comecei pela habitual ronda das saladas, há que viver saudável e os vegetais, diz-se, são parte integrante do bem-estar físico, que naturalmente produz efeitos imediatos, assim se espera, sobre essa nebulosa da harmonia interior anunciada e vendida também nos coloridos suplementos dominicais. Os frutos vermelhos, por exemplo, são antioxidantes poderosos. Quem sabe levada por isso abeirei–me da enorme banca onde estavam dispostos os tão apregoados Raf, feios, mas saborosos, a publicidade naqueles dias era inequívoca.
Do lado oposto ao meu, debruçado sobre o mesmo expositor, encontrava-se o casal com quem me cruzara à entrada. Julgava-os deambulando algures noutro corredor, a decisão das saladas nem sempre é pacífica e na languidez do dia que entardecia deixara a pressa amarrada ao poste do stresse pretérito. Abordaram-me entretanto Ó menina, a que preço é o tomate? O preço estava bem visível: dois euro e quarenta e nove o quilo e, não fora a intervenção rápida da mulher, leitora perspicaz de rostos alheios, jamais teria compreendido a razão da pergunta. Lamentarei o resto da vida a expressão desconfiada e incrédula que soltei sem sequer balbuciar palavra. A mulher acrescentou então em auxílio do marido A gente não sabe ler. Preferia pensar que o meu rubor era reflexo dos frutos à minha frente e não o constrangimento perante a situação. Respondi de imediato e fui à minha vidinha cheia de letras e números e sinais e símbolos que sei descodificar e que me orientam por esse mundo fora. Não era o caso do casal que deixara para trás. A realidade conhecida, em Portugal a taxa de iliteracia não é prestigiante, tinha, a partir de agora, dois rostos desorientados perante um mero preço de supermercado, a diferença significativa entre as estatísticas e as pessoas. Um homem e uma mulher à mercê da disponibilidade alheia, prisioneiros da sua incapacidade de descodificar mensagens escritas. Dois mundos separados por um muro de palavras e letras incompreensíveis.
E assim é em pleno século XXI. Enquanto os sorrisos pendurados alardeiam as virtudes das novas oportunidades, selados com beijos e apertos de mão vigorosos, e o choque tecnológico ocupa o lugar cimeiro das preocupações governamentais, alguns permanecem excluídos. Não têm rosto, não ficam bem na fotografia e não dão votos. Não são ninguém.



Este texto foi escrito para o Corta-Fitas e repescado hoje no Dia Internacional da Alfabetização

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