Páginas

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Aos pares como os sapatos

Corria o ano da graça de dois mil e três, estava na aldeia desde Janeiro, dia último, quando o Pão-por-Deus se fez anunciar no calendário. Acorri à superfície comercial do costume e abasteci o lar de guloseimas. Também eu na minha infância tinha ido ao Pão-por-Deus e, na aldeia, imaginava que a criançada aparecesse.
No dia um a campainha da porta terá tocado entre as oito e meia e as nove e depois disso até cerca das doze não houve mais sossego. Vinham quase sempre cuidadosos e raramente se aventuravam pelo portão adentro, a menos que os chamasse. O saloio não é rapaz de abrir as portas da mansão aos forasteiros e até que deixem de o ser são submetidos a provas extenuantes. Eu, pobre de mim, nem sempre consegui ultrapassar as várias barreiras. A criançada também conhecia este código, a panóplia de provações até que as portas se abram. O que a criançada não sabia é que, sendo eu mestiça da alma, híbrida de raízes a norte e além-mar, dou graças a deus e ao meu avô que se enamorou de uma brasileira paulista que havia de ser minha avó e aos meus pais beirões de alma e de afectos, as portas de casa abrem sem mais. O saloio também é muito cioso do seu palácio que cuida com rigor e protege dos usos quotidianos, é assim que proliferam casinhas e anexos, nada como poupar a casa, mais invicta do que um museu. A criançada também sabia disso, chovia nesse dia distante e tinham medo de me sujar a casa com as pegadas de lama, o que não sabiam é que aqui no número nove vivem almas tranquilas quanto à conservação imaculada da habitação.
Numa das visitas apareceu-me um ser mínimo, provavelmente nem se contariam três anos de vida decorridos. Era castiça. São-no sempre as crianças desta idade. Vinha acompanhada pela progenitora, uma criatura de traços rudes e beiças grossas que se explanou numa pequena palestra sobre os hábitos e raízes do Pão-por-Deus para esta vossa humilde escriba, ser único em casa naquele dia. E falou, falou, falou. Acrescentou a profissão, professora do primeiro ciclo, valha-me a santa, não podia ser antes outra coisa qualquer, e quando no fim me dirigi à criança para lhe dar um beijo, a pespenica júnior afastou-me de repelão, é bom que não tenha filhos, se fosse minha, tinha levado logo uma reprimenda no momento, o reforço não se deve fazer esperar, mas a pespenica sénior ficou ufana perante a manifestação da pespenica júnior, o caso Casa Pia tinha despoletado no mês primeiro desse mesmo ano, e acrescentou triunfalmente qual Pigmalião encantado com a sua obra Ela não vai a estranhos. Era bom de ver que uma nunca vem sozinha. Deslocam-se aos pares para um efeito mais eficaz. Perante isto ainda estive para lhe sacar os chupas e rebuçados, entra-me pela casa dentro e ainda me chama estranha? Contive-me naturalmente. Anos depois a pespenica voltou, reconheço-a à légua, já deixou a pespenica sénior em casa agarrada à verruga, mas herdou dela o mesmo pôr e dispor, que, calculo impere na relação com os outros. Aqui no número nove, pespeniquice fica à porta.

5 comentários:

  1. (gargalhada)
    O que eu já me ri com esta história dos pares como os sapatos. :D

    ResponderEliminar
  2. Eu tinha-lhe tirado os chupas! Olha que lata... estou como tu, é bom que não tenha filhos :o)
    Beijos

    ResponderEliminar
  3. No entanto, é uma história enternecedora. Lembrar acontecimentos passados e que até têm importância, deixa-nos sempre nostalgicos. Episódios pitorescos como este, não acontece a todos.

    ResponderEliminar
  4. A aldeia é pródiga em histórias, Mike

    Vontade não me faltou, fantasminha

    Regsitos, a mim acontecem-me alguns

    A aldeia oferece muitas viagens, Viagens Lacoste...

    Beijos a tod@s

    ResponderEliminar

Comments are welcome :-)