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sábado, 15 de novembro de 2008

A biblioteca itinerante

A linguagem não verbal é um indicador mais fiável do que palavras múltiplas recheadas de aforismos, metáforas e oxímoros. Foi assim que, naquele dia pela manhã, percebi que a minha aluna Tatiana, com um ar sofrido, a voz arrastada e nas palavras que soltou, em total sintonia com o desespero da expressão do rosto luminoso, precisaria da minha ajuda.
Bem no início da aula, estava meio deitada sobre a carteira, ainda com a pilha de livros e dossiers por arrumar, quando se derramou ainda mais sobre a mesa, inclinou levemente a cabeça para o lado direito, espalhando os caracóis castanhos e brilhantes sobre os livros e soltou o lamento Setora, ó setora, olhe o livro que estou a ler. Nem um laivo de excitação nas palavras proferidas, nem uma pitada indelével de entusiasmo. Apenas a desilusão, a resignação perante mais esta provação que a escola aparentemente lhe propunha, o conformismo irremediável perante o livro pousado à sua frente, levemente tocado com os dedos à medida que soltava uma quase dor, uma aflição indiscutível. Quando lhe solicitei que me mostrasse o livro, veio indolente, como quem mostra ao pai ou à mãe um dói-dói à espera do beijo mágico com efeitos curativos poderosos Já passou? Já passou!
O livro estava intocado, tinha o preço marcado a lápis, uma edição dos Livros de Brasil que faria as delícias de alguns bibliófilos, e tinha aspecto de ter sido remetido para último lugar na estante da livraria através da selecção natural Tenho este e este da lista. Qual quer? Ah não, este não. A Tatiana acrescentou É tão chato, setora, não percebo nada disso. Quando questionei porque o lia, exactamente aquele e não outro qualquer, adiantou que teria ido à livraria com a lista de livros indicados para o seu ano de escolaridade e que, não havendo mais nenhum em stock, lhe venderam aquele.
E do livro não se questiona a qualidade, porém o efeito nefasto de rejeição da leitura começava a evidenciar-se na Tatiana. Pobre garota sentenciada à tortura de leituras dolorosas. Pedi-lhe a lista dos livros a ler. Entre eles uma quantidade avultada de lusófonos que dormiam tranquilos na minha estante, o contrário do que um livro deve ser, e prometi-lhe que no dia seguinte lhe levaria alguns. Os livros precisam de ser arejados e lidos. Nas primeiras linhas solta-se a empatia de que todas as leituras genuínas e prazeirosas devem ser feitas, sem intermediários nem imposições, assim seria pois, extensivo ao resto da turma que, entretanto, se me agarrou como a uma tábua de salvação contra livreiros gananciosos. E no dia seguinte levei o Manuel Rui, o Mia Couto, o Ondjaki e o José Eduardo Agualusa dispostos em camadas entre as capas de tecido. Viram, leram e escolheram. Alguns dos livros já voltaram. Com eles o regresso do alívio e das expressões sorridentes de que são feitas as adolescências felizes. O que é que uma professora não faz pelos seus alunos? Ler é prazer.


imagem: Pablo Picasso, The Lesson

10 comentários:

  1. A mim nunca nenhuma setora me emprestou livros.
    Deve ser um privilégio mudar algo na vida dessas pessoas pequenas que lhe aparecem pela frente.

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  2. Também no meu tempo se indicavam livros enfadonhos para lermos, o que nem sempre acontecia.

    Lembro-me que um dos que tivemos de ler "Os Maias", que por já o ter lido, na altura nem peguei nele.

    Tive de fazer exame, em que o livro fazia parte, adotei os resumos. Anos mais tarde, voltei a ler o livro com agrado várias vezes.

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  3. Info-excluído, sou apenas uma entre muitas, nunca a primeira e jamais a última. Bem-vindo :-)

    Registos, o problema aqui foi mesmo da livraria e a 'vontade' de vender. A lista de livros para o 11º ano é muito extensa e muito variada, felizmente.

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  4. O problema que a Teresa (Registos) coloca é bem real, Leonor, e, para mim, de difícil resolução. Primeiro, porque há livros recomendados e até obrigatórios para que não consigo despertar a curiosidade da adolescente que cá tenho em casa (agora no 12.º ano), que, no entanto, gosta de ler e lê muito (e cada vez lê mais em inglês). Segundo, porque eu própria, quando os li na adolescência, os achei uma «seca» e só alguns anos mais tarde – quando deixaram de ser obrigatórios e, sobretudo, quando comecei a saber apreciar a forma, para além do conteúdo - lhes descobri o encanto ou, pelo menos, o interesse. Enfim, a questão resume-se em saber até onde poderá forçar-se sem criar bloqueios.
    P.S.: As crianças ainda têm essa coisa amorosa que é devolver os livros emprestados. ;-D

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  5. Aqui coloca-se outra questão, Luísa, eu não sou professora de Português, logo aquilo que os meus alunos foram apreendendo das minhas leituras foi através da conversa de início de aula sem quaisquer obrigações. Se os quisesse motivar não conseguia, desta forma surgiu naturalmente e procuram-me ou mostram-me os livros que estão a ler. É muito giro.

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  6. Prazer e educar. Felicito-a, Leonor. :-)

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  7. Obrigada, Mike, tenho muito pudor em contar estas histórias não vá soar a gabarolice, quando não faço nada de mais, nada que alguns dos meus colegas não façam também.
    Beijinho

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  8. Dá gosto esse entusiasmo que ainda tens no ensino, Leonor. Apesar dos pesares...

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  9. "nunca a primeira e jamais a ultima" mas como ambas sabemos "algo" em vias de extinção, infelizmente ..
    Parabéns Leonor .. *
    Beijinho e Boa Semana

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  10. Se não houver entusiasmo não vale a pena, Ana. Os alunos não têm culpa de reformas insanes e para eles que lá estou.

    Once, um professor deve estar disponível para ajudar os seus alunos, mesmo que não seja da sua disciplina, como foi o caso. Tenho a certeza de que se fosse professora deles de Português não tinha conseguido esta relação. Como sou de Alemão surgiu tudo naturalmente.

    Beijinhos às duas :-)

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