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sábado, 17 de janeiro de 2009

Quem não tem medo de Florbela Espanca

Das características que o meu pai me deixou como legado lamento não ter herdado a capacidade cirúrgica de não deixar passar uma gralha que fosse. Habituado e familiarizado com a língua portuguesa também por motivos profissionais tornou-se num guardião implacável. A meio das conversas, quando lia uma revista ou se lia um rótulo, aconteceu num duma garrafa de azeite e noutro de uma garrafa de vinho, a perspicácia aliada a muita prática saltava sem pedir licença. Acontecia, por exemplo, a incursão ao prontuário a meio do almoço ou do jantar, uma busca rápida nos dicionários na estante do corredor entre a sopa e a sobremesa, o prato principal que seria debatido ainda ao café e cuja digestão se prolongaria pela tarde e noite fora, dias, meses e anos se fosse preciso. Às vezes pergunto-me como seria se me lesse o blogue, os alqueires de vírgulas a colocar, as alterações que sugeriria no seu jeito único, Tens ali uma coisita, bem, não sei, mas eu, se fosse a ti… Era então chegada a altura para eu me afirmar, Pois, mas eu gosto assim. Isso que dizes não é a mesma coisa. Regularmente ficaríamos ambos naquilo que um e outro fazíamos melhor um com o outro, ou não fôssemos tão parecidos na afirmação dos nossos pontos de vista: teimar irredutivelmente para ficar inabalavelmente no mesmíssimo lugar. E caso a genética me tivesse bafejado não haveria por aqui gralhas ou imprecisões. Não bafejou infelizmente. Podia ter-me levado a irredutibilidade nos pontos de vista a troco de umas vírgulas e rigor, até porque não só o meu pai era um velador devoto da língua. A minha mãe é uma zeladora atenta. Nada passa em branco. Digo-lhe Já leste a crónica desta semana? Já. Gostei muito, mas, olha, tens lá uma vírgula a mais... ou uma letra a menos ou a mais. Há sempre algo a faltar ou a sobrar. Desta vez não foi a crónica. Desta vez estava eu em frente ao computador, algures pela hora de almoço, a ditar um soneto de uma conceituada poetisa portuguesa a uma amiga, quando soou o alerta da pontuação Vírgula? Eu não punha aí uma vírgula. Desatenta à leitura que eu fazia e do que fazia, ouvindo apenas a minha voz, a minha mãe continuou Tantos pontos de exclamação? Ó Florbela Espanca, para a próxima que te puseres a escrever sonetos pergunta aqui à minha mãe que ela dá-te uma ajudinha com a pontuação, sim? Tanto ponto de exclamação, mulher. Havia necessidade?

14 comentários:

  1. Haveria realmente? Não sei... o que sei é que, neste texto, há necessidade de uma virgulazita aqui e além; mas o escritor também tem o seu estilo e tenho que respeitar... pelo menos tento :)
    E os acentos? Ai ai...
    Jinhos

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  2. LOL
    Não falha, a minha mãe!!!! Acentos? Falta de acentos é pior que falta de vírgulas... ;-)
    Beijoquinhas

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  3. Eu não tenho medo, Leonor. Já da sua mãe... (risos)
    (Ai se a Senhora sua mãe lê este comentário...) ;-)

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  4. A senhora minha mãe vem aqui ao blogue e a prova é que foi a primeira a comentar (a teimosita é ela), mas pode ficar tranquilo, Mike :)

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  5. Ressuscitasse a Florbela e diria, como Cyrano de Bergerac: «Impossible, Monsieur; mon sang se coagule / En pensant qu'on y peut changer une virgule.» ;-)

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  6. Ó Luísa, o francês é uma língua estranha. Só sei bom dia, boa tarde e pouco mais... Sou a prova viva das reformas no Ensino, apanhei uma que me retirou a segunda língua. Valeu-me ter alemão depois:(

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  7. Impossível, Senhor; o meu sangue coagula
    Se penso que podem mexer numa vírgula. ;-D

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  8. Ora, a Florbela era uma hiperbólica e os tempos eram de grandes arrebatamentos e chiliques (pergunta à tua mão se é assim que se escreve) ruidosos...
    E quem é que não semeia gralhas num texto? Eu tenho muitas, a esvoaçar no meio das minhas palavras, não duvido. Já me emendaste uma, há algum tempo, e agradeço-te por isso. :-)

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  9. "à tua MÃE", emendo. Vês o que eu dizia? Parece que foi de propósito...

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  10. É verdade, Ana, mas às vezes é muito irritante :-) Só faço esse tipo de reparos em privado e a pessoas muito mas muito especiais. Tenho a sorte de ter veladoras dedicadas que me vão indicando esse tipo de imperfeições
    Beijinhos

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