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quinta-feira, 19 de março de 2009

Os intróitos da morte

Para afastar a morte há que prepará-la com antecedência. Quando o tempo se mostrou de feição para a sementeira, o meu pai foi avisado com a habitual insistência pelo jardineiro. O jardineiro tinha vontade férrea, assumia o jardim como seu e de mais ninguém, eu o meu pai excluídos, e plantava o que muito bem entendia em vez do que os meus pais muito bem entendiam.
Assim sendo, eram comuns desentendimentos que o jardineiro resolvia através da minha mãe, gestora eficiente da conflitualidade dos morangos e das batatas e, muito importante, do HeraGate. O HeraGate instaurou-se no dia em que, alegadamente, a hera que cobria a parede da garagem teve uma síncope nocturna e caiu redonda no chão. Ora a hera não cai sozinha e o jardineiro não gostava da hera, exactamente ao contrário do meu pai, logo a dúvida instalou-se quando olhámos pela primeira vez a nudez despudorada da parede da garagem e a hera se manteve estendida, fazendo-se despercebida, indisponível para mais interrogatórios e conversas.
Teria sido no dealbar da Primavera e acedendo aos pedidos do jardineiro, uns pés de morango e umas alfaces, que o meu pai o meteu no carro, o jardineiro só jardinava, não conduzia, e rumaram ambos à feira semanal numa localidade perto. Pela hora do almoço o meu pai apareceu lívido e meio consternado. O jardineiro, por seu turno, foi avistado fazendo a ronda às estrelícias e aos amores-perfeitos, impávido e sereno, como era seu hábito, impassível perante o mundo à sua volta mas perscrutando a mais ínfima flor. Só podia ser coisa do jardineiro.
Vinham pois a caminho de casa quando o jardineiro pediu ao meu pai que parasse à porta do cemitério. Contava-se que era homem previdente, que teria já acautelado a indumentária para quando o barqueiro o viesse buscar e que reservada no guarda-fatos estaria a farpela para o adeus final. Ora o jardineiro era rapaz que não se deixava ficar e já que ali estava, que entrasse, pois claro, portanto o meu pai que tinha pavor da morte e de cemitérios e de todos os rituais em torno da senhora da foice, foi convidado a entrar no campo santo, tendo-lhe sido feita uma visita guiada à assoalhada do jardineiro, assim a baptizou o meu pai, logo que recuperou o humor daquela visita insólita à campa que o jardineiro tinha comprado para ele próprio. A verdade é que tanta preparação lhe granjeou noventa e três anos de vida, sobrevivendo ao meu pai. Para afastar a morte há que prepará-la com antecedência.

4 comentários:

  1. Lembro-me de um dia, em miúda, ouvir o meu pai dizer que morreria aos 64 anos. Foi uma frase que gravei na memória porque me impressionou, mesmo que esse dia me parecesse muíto longínquo (o meu pai devia ter por volta dos 40, nessa época) e porque alguma coisa no tom de voz dele - que não era nada de premonições e coisas dessas - me disse ele não estava a brincar. Não estava, porque morreu com 64 anos. Há coisas que nunca mais se esquecem.

    Este texto (tão bonito!) lembrou-me esse episódio. Não sei se ele estava a preparar a morte, mas a verdade é que não conseguiu afastá-la.

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  2. Que estranho, Ana, há coisas que a razão jamais explicará.
    Beijos

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