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segunda-feira, 15 de junho de 2009

Os dias com Eulálio

Os dias com Eulálio não foram simples. Não que tenham sido propriamente problemáticos ou fastidiosos, Eulálio é fluente e agradável na conversa, mesmo naquela cama de hospital e apesar dos cem anos - onde já se viu centenário com tamanha memória?- mas a história raramente tem o mesmo fim. Cada vez que se julga ter sido rematado o desaparecimento de Matilde surge mais uma versão. E assim andamos, corremos, cavalgamos páginas - quase duzentas- para saber como foi com Matilde, como foi com Matilde, afinal? Contudo, Eulálio, ainda cheio de pose e de pergaminhos, apesar de na penúria, Eulálio d’ Assumpção, não esqueçamos, é um velho arguto e sagaz que burila a história de um amor infeliz ao sabor de si próprio e da sua memória. Ora com a filha ora com as enfermeiras vai trocando palavras que oscilam esparsas ou consistentes na esperança de fixar a memória de ancião. E Matilde. Sempre Matilde. Voa temporariamente a resgatar os interlocutores perdidos no passado, há que perdoar Eulálio por estas ausências pontuais, para retomar a vida longa agora confinada às quatro paredes de um quarto de hospital, infecto, diz ele. E assim galgamos páginas. Mais e mais. Na senda de Matilde, com a história do Brasil em pano de fundo, as questões raciais, a família enredada em episódios curiosos de uma decadência anunciada, as alterações urbanísticas do Rio de Janeiro, várias gerações de Eulálios entre o casarão de Botafogo e a casa dos fundos de uma Igreja Evangélica, morada última antes da cama de hospital de onde lhe ouvimos a vida antes que chegue a morte. Deixei Eulálio ontem à noite mas continua comigo, o velho Eulálio d’ Assumpção, Lalinho, Lálá, Lilico, a prova evidente de que Leite Derramado vale a pena.

também no Delito de Opinião

2 comentários:

  1. Apesar das três ou quatro horas diárias que dedico à actividade, ando a ler tão devagarinho, Leonor, que até assusta. Já levo «séculos» de livros de atraso. O Leite Derramado acaba de entrar na «bicha» directamente para a «secção» dos prioritários, pelo que conto não ter de esperar um século para o ler. Despertou-me muito interesse. (Será o meu primeiro Chico Buarque). :-)

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  2. Quem me dera, Luisa, tantas horas são um luxo para mim. Eu sou uma leitora lenta, mas ando a treinar-me para ver se consigo ler mais rápido, tenho tantos livros que gostaria de ler ainda... Gostei muito do livro, vale a pena e à distância começo a gostar ainda mais.

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